Vi o carnaval de Salvador pela primeira vez em 1960. Eu tinha 17 anos. Uma revelação. O que eu vi ali, com olhos de profeta, se confirmou ao longo dos anos.

Quando eu estava na cadeia, “Atrás do trio elétrico” tomava as ruas da Bahia e a cabeça do Brasil. Tudo o que conto que senti na volta do exílio, ao som de “Chuva, suor e cerveja” – e que Roberto Schwarz caracteriza como superstição kitsch – é vivido agora com mais intensidade a bordo do Navio Pirata do Baiana.

Começa que o trio deles é como os de 1972: caminhão pequeno, sem as salas com ar condicionado dos de blocos da indústria do carnaval. O essencial do namoro de Salvador com a Jamaica, do de Armandinho e Pepeu com o heavy metal, do do Carnaval com a contracultura; a história da axé music, com cantoras e cantores de trio, nos passos de Moraes, levando cantos dos blocos afro pra cima dos caminhões; o empreendedorismo dos criadores de blocos que, desde sempre com cordas e roupas próprias, trouxeram os trios para dentro, juntando dinheiro que deu também para elevar enormemente o nível da amplificação sonora; a volta da chula do Recôncavo no Tchan e no Harmonia, com o consequente pagodão;

Toda a história desse carnaval peculiar da Cidade do Salvador chega, neste momento, a um novo ápice, com a guitarra baiana de Roberto Barreto guiando Marcelo Seco no sentido de um som que leva Russo Passapusso a guiar a multidão. Gente de perder de vista.

Na subida do Cristo, entre a Barra e Ondina, a gente se pergunta: dezenas ou centenas de milhares? Abre-se uma, duas, três rodas no meio da turba, como quando começa uma briga perigosa. Mas não há briga. É um “respiro” (como diz Passapusso liderando) para que alguém (ou algum grupo de três ou cinco) possa se expressar, expandir seus movimentos particulares. Horda imensa. Abre-se uma nova roda e, no meio, uma moça mulata vestida de índia improvisa uma dança como que de cultura silvícola.

À contagem de 1,2,3,4 de Russo, chamando o refrão, um redemunho de cotoveladas, violentas mas doces, fazem a visão trepidar. É como se Boulos tivesse sido eleito presidente e Sônia Guajajara vice – e seu mandato estivesse dando certo.

Nos geniais pagodões do Psirico ou de Igor Kannario os gritos sugeridos pelos altofalantes e repetidos pelo povo falam de gueto e caralho e disgrama, podem também parecer salvas de facções violentas. Os do Sistema Baiana – este é o novo sistema que se propõe ao Brasil – falam “é só amor” e pedem barulho de aprovação às ideias de “educação”, “filhos”, “família”. Na balaustrada do Barravento umas 5 ou 7 meninas põem o polegar pra baixo, estendem o dedo médio e vaiam. Não são ouvidas, mas se fazem visíveis. Russo parece não ver; eu vejo com interesse e duas delas me reconhecem, o que as leva a intensificar a agressão. Não eram pretas. Não eram brancas. Pareciam moças comuns de Salvador. Morenas, mulatas, indistinguíveis das muitas. Como entender? Comparam com o Parangolé e acham chato? Rebelam-se contra o excessivo sucesso do que não entendem? Serão eleitoras de Bolsonaro? Seja como for, são absurdamente minoritárias: parece que toda a população de Salvador segue o BaianaSystem.

É um evidente exercício de civilidade, comoventemente iluminado por valores tidos como de classe média (amor? educação? filhos? família?), mas é instintivo e espontâneo, multitudinário e eficaz. A ideia de organizar uma coletividade solidária e cooperativa se dá num clima de êxtase dionisíaco. É como ter a chama do gueto sem a tirania do chefete. É aquilo para o que o carnaval baiano atravessou eras de ingenuidade, de mesquinharia, de grandeza criativa, de cobiça e crueldade.

É como se pudéssemos crer-nos preparados para eleger um Ciro Gomes (sim, Ciro, nada de antipolítica!), um Ciro capaz de conjurar as virtudes da Religião do Futuro de Roberto Mangabeira, teuto-anglo-baiano que nasceu numa parada de 2 de Julho, já pressupondo as balizas…

O Sistema Baiana é um experimento de maturação coletiva que não teremos mais o direito de desprezar. BNegão, convidado, versa sobre ondas de som psicodélico e batidas que parecem perfurar o solo. A invenção do rap pelos pretos americanos do Bronx, R&B banhado em eletrônica alemã e filmes de luta de Hong Kong, se justifica plenamente aqui, quando a multidão imensa repete os versos e dança aos trancos. Vandal de Verdade, o rapper baiano concentrado e amante da fidelidade à origem, confirma. Hiran, o jovem rapper de pelo tingido de louro, ironiza o anúncio da chegada do veadinho. Passapusso sempre volta ao comando na hora exata. A multidão mais entra em sintonia com ele do que obedece. A polícia, sempre acolhida com carinho pela turba, não sabe bem como agir: na Barra, aceita emburrada os aplausos. Em Ondina, onde muita gente que não veio com o Baiana espera o que vier, nem sempre entende que as aberturas de roda não são brigas. Nas multidões laterais ao desfile (ladeiras transversais, semi-anfiteatros para ver passar e dançar junto) alguma briga de fato acontece. Já perto do final, spray de pimenta é lançado, talvez por policiais desorientados, quem sabe em reação contra o fenômeno. Mas a literalmente esmagadora maioria segura a dignidade (palavra também lançada por Russo) e o desfile chega ao fim, na beira da praia de Ondina, sem que nada vença o amor, a solidariedade e a música.

 

 

 

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