“Las trincheras de ideas valen más que las trincheras de piedra”, escreveu José Martí en Nuestra America[1]. Quais são as ideias de que dispomos no início da terceira década do século XXI para analisar o que se passou sobretudo nas duas últimas décadas na América Latina e para nos orientar na década que agora se inicia? Não é tarefa fácil, sobretudo no caso de ideias orientadoras, porque a ideologia dominante tem vindo a desertificar o futuro com a fórmula paralisante de que “não há alternativa”. É como se as formas mais violentas e injustas da dominação capitalista, colonialista e patriarcal fossem a emanação da ordem natural das coisas. As ideias orientadoras continuam a existir, mas a sua recuperação exige que as concebamos como ruínas-sementes. Escolho quatro ideias. Concebo-as como ideias-metáfora, instalações pedagógicas. Tal como as instalações artísticas, estas instalações pedagógicas pretendem ser performativas, recorrem ao passado como se ele nunca tivesse passado e ao futuro como se ele estivesse aqui. São imagens mobilizadoras que semeiam a esperança entre as classes populares nos momentos em que estas mais se sentem esmagadas pelo medo. Fazem a ponte entre o passado e o futuro para que este não lhes seja roubado pelos mercadores de passados inventados e futuros falsos.

A instalação do interregno

A primeira ideia não é originária da América Latina, mas o continente oferece uma ilustração muito particular dela. Trata-se da ideia de interregno de Antonio Gramsci que este grande comunista italiano cunhou cerca de 1930, a ideia de que as sociedades passam por períodos em que o velho ainda não morreu e o novo ainda não nasceu plenamente (Gramsci, 1971: 275).[2] São períodos de especialmente difícil acomodação ou confrontação entre o novo e o velho, propícios à formação de monstros ou de formações mórbidas que desfiguram o que existe, ao mesmo tempo que criam imaginários novos, ora promissores ou destrutivos. Adaptando o conceito livremente ao nosso tempo, o velho é constituído pelas formas mais excludentes, violentas e retrógradas da tríplice dominação que caracteriza o mundo eurocêntrico desde o século XVI: capitalismo, colonialismo e patriarcado[3]. Por sua vez, o novo é gerado nas lutas sociais e políticas contra essa dominação. O interregno ocorre quando a confrontação ou acomodação entre o velho e o novo dominam a vida social e política do país.

Podemos dizer que a ideia de interregno é constitutiva da Nuestra America pelo menos desde o início do século XIX e reside nos próprios processos de independência e na persistência da interferência imperial das antigas potências colonizadoras e, desde o início do século XX, dos EUA. Com a grande (e tantas vezes esquecida) excepção do Haiti, os processos de independência, apesar de muito diferentes entre si, foram, em geral, protagonizados pelos descendentes dos colonos com o aproveitamento das rivalidades inter-imperiais. Por essa razão, caracterizaram-se por uma significativa sobrevivência da velha (des)ordem capitalista, colonialista e patriarcal. Essa sobrevivência traduziu-se em permanências institucionais ou estruturais, nomeadamente a forma de estado moderno, o regime de propriedade, o racismo, o sexismo e a manutenção de uma narrativa histórica que legitimou a herança eurocêntrica. As monstruosidades que daí derivaram variaram ao longo dos últimos duzentos anos, mas o seu lastro manteve-se sempre visível ainda que numas épocas mais que noutras.

Por outro lado, a intervenção imperial, ao mesmo tempo que conferiu uma dimensão continental ao interregno, teve sempre o efeito de prolongar a morte do velho para mais eficazmente impedir o nascimento pleno do novo. Quanto mais forte foi a irrupção do novo mais violenta foi a intervenção imperial para impedir que ele nascesse plenamente. Ao concluir Os Condenados da Terra Frantz Fanon afirma com a sua lucidez cortante: “Il y a deux siècles, une ancienne colonie européenne s’est mise en tête de rattraper l ‘Europe. Elle y a tellement réussi que des Etats-Unis d’Amérique sont devenus un monstre oil les tares, les maladies et l’inhumanité de l’Europe ont attaint des dimensions épouvantables” (Fanon, 1961: 230).[4]

Desde meados do século XX, a natureza mutante da intervenção do imperialismo norte-americano pode resumir-se em quatro guerras sucessivas (e, por vezes, simultâneas): guerra contra o comunismo, guerra contra o terrorismo, guerra contra as drogas e, por último, guerra contra a corrupção.  Por via destes dois factores (os processos de independência e a interferência permanente do imperialismo), mais do que dum período de interregno, devemos falar de uma larga duração histórica de interregno e, consequentemente, de monstruosidades que com o tempo se normalizaram. A permanência do interregno confere à América Latina uma característica muito específica: se é verdade que o novo nunca tem a possibilidade de emergir plenamente, não é menos verdade que o velho tão pouco consegue eliminar a memória, a vontade e as sementes do novo. Nisto reside o optimismo trágico do continente. Trata-se de um imaginário colectivo que tem dimensões sociais, políticas, culturais e estéticas e que bebe as suas raízes na longa resistência dos povos indígenas e dos povos descendentes dos escravos. Este imaginário tem muitas afinidades com o que Bolivar Echeverría designou por ethos barroco (2000)[5].

Mas esta larga duração teve vários períodos que se distinguiram precisamente pelo tipo de interregno e de monstros que os caracterizou. Podemos distinguir dois tipos de interregno: interregno em que domina a confrontação (interregno-confrontação) e interregno em que domina a acomodação ( interregno-acomodação), segundo os modos como se articulam e contradizem os objectivos do velho (não morrer totalmente) e do novo (nascer plenamente). Para nos confinarmos aos últimos sessenta anos e sem a preocupação de sermos exaustivos, podemos distinguir seis grandes interregnos-confrontação ainda que muito diferentes entre si: Cuba, 1959 (revolução cubana), Chile, 1970 (governo de Unidade Popular de Salvador Allende), Nicarágua, 1979 (revolução sandinista), Venezuela, 1998 (Hugo Chavez e revolução bolivariana), Bolívia 2006 (Evo Morales e o proceso de cambio), Equador, 2007 (Rafael Correa e a revolução cidadã). Em todos eles, o velho, para não morrer, contou com o apoio decisivo da intervenção imperialista dos EUA e a eficácia deste apoio tem variado ao longo do tempo. Os monstros que daí resultaram foram variados e incluíram assassinatos e tentativas de assassinato, embargos económicos, isolamento diplomático e financeiro, actos de contra-insurgência, demonização mediática, golpes de estado, etc. Entre os interregnos-acomodação, uma lista não exaustiva inclui o Chile, 1990 (governo de Concertación), a Colombia, 1991 (processo constituinte que conduziu à Constituição de 1991), o Uruguai, 1994 (governo de Frente Amplio), a Argentina, 2003 ( governo de Nestor Kirchner), o Brasil, 2003 (governo de Lula da Silva), as Honduras, 2006 (governo de Manuel Zelaya), o Paraguai, 2008 (governo de Fernando Lugo), o México 2018 (governo de Andrés Manuel Lopez Obrador).  As monstruosidades que melhor caracterizam estes interregnos são as convulsões por que tem passado a democracia liberal. O novo, simbolizado nas enormes expectativas que a democracia liberal em governos progressistas cria às classes populares, choca com o velho que se reafirma sob a forma de desfigurações da própria democracia no sentido de a subverter e neutralizar o seu potencial emancipatório. Tais desfigurações têm sido produzidas por três agentes institucionais e três agentes extra-institucionais. Os agentes institucionais têm sido os media (controle oligopolista), o sistema judicial (judicialização da política por via da lawfare, ou guerra jurídica) e o poder legislativo (financiamento dos partidos por grandes empresas e grupos financeiros, fakenews com manipulação de big data, fraude eleitoral). Os agentes extra-institucionais têm sido o narcotráfico (que é responsável, em parte pela corrupção e pela selectividade da luta contra ela), o paramilitarismo (que garante o controle territorial), o assassinato selectivo de líderes sociais (que intimida os oprimidos e elimina os construtores e as construtoras do novo). Estes agentes extrainstitucionais constituem hoje em muitos países um estado profundo, paralelo ao estado oficial. Em conjunto, os agentes institucionais e extrainstitucionais têm actuado para eliminar lideranças democráticas, fabricar vitórias eleitorais do velho, produzir golpes de estado brandos, ou seja, golpes com fachada democrática. Sobretudo no contexto da América Latina, o imperialismo norte-americano tem desempenhado um papel quase sempre decisivo na mobilização dos agentes de desfiguração democrática.

Quais foram as trajectórias destes interregnos nos últimos dez anos? Os interregnos-confrontação sofreram um cerco imperial brutal. Persistem, com dificuldades acrescidas, Cuba e Venezuela e também Nicarágua. No caso da Nicarágua há a assinalar uma monstruosidade perturbadora: o modo como dentro do novo se foi (re)criando um novo velho. Por sua vez, nos interregnos-acomodação têm-se vindo a agravar as desfigurações das democracias, e em muitos deles o velho acabou por prevalecer com maior ou menor intervenção imperial. No México, onde o governo progressista  apenas agora começou, já é visível a preparação de um golpe brando. O Brasil é um caso extremo de intervenção imperial em contexto de democracia liberal. O novo que, com todas as ambiguidades próprias do interregno-acomodação, se vinha a construir desde 2003, foi desestabilizado a partir de 2014 por uma conjugação tóxica das elites patrimonialistas internas e do imperialismo norte-americano. O golpe contra a Presidente Dilma Rousseff em 2016, a perseguição jurídico-política contra Lula da Silva e a eleição do neofascista Jair Bolsonaro são os momentos mais decisivos do fim provisório deste interregno.

No entanto, como é próprio dos interregnos latino-americanos, o velho nunca consegue consolidar-se plenamente, já que o novo teima em emergir e em renascer das cinzas. Três casos são paradigmáticos a este respeito: a Argentina, a Colômbia e o Chile. A meio da década passada, a Argentina elegeu um empresário e, com ele, comprometeu-se com o receituário neoliberal e a submissão ao imperialismo sob a forma do capitalismo financeiro mais grosseiramente especulador (fondos buitres). Significava o fim do interregno inaugurado pelo kirchnerismo. Foi um fim provisório dada a permanente resistência popular, em que se destacaram os movimentos de mulheres. As lutas sociais fizeram com que em finais de 2019 a Argentina regressasse a um kirchnerismo renovado e, assim se espera, expurgado de alguns dos erros do passado.

A Colômbia teve uma trajectória particularmente convulsionada na década passada. O acordo de paz de La Habana celebrado em 2016 entre o governo e o grupo guerrilheiro FARC teve um significado muito especial, porque assinalou a possibilidade de o interregno-acomodação se transformar num interregno-confrontação. Apesar de todos os acidentes durante o processo de aprovação,  o texto  do acordo configurava uma nova constituição política, em que o novo  se afirmava ante o velho através de uma promessa de paz com justiça social – a paz democrática. Ao fim de mais de cinquenta anos de violência política, o cumprimento do acordo significaria, sem dúvida, uma ruptura com as formas mais violentas de capitalismo, colonialismo e patriarcado, que sempre dominaram o país e que estiveram na origem da própria guerrilha. Infelizmente, as vicissitudes posteriores têm vindo a mostrar que as expectativas de paz democrática se estão a frustrar. Em vez dela, tem vindo a emergir a paz neoliberal, que, longe de ser uma paz verdadeira, é a continuação da violência política, agora sob forma aparentemente despolitizada. O controlo territorial da guerrilha é substituído pelo controlo territorial das empresas multinacionais e do narcotráfico. Esta substituição envolve a proliferação do assassinato selectivo de líderes sociais empenhados na defesa dos territórios ancestrais e camponeses.

Mas quando a velha (des)ordem se parecia consolidar, a resistência emergiu com uma amplitude que não se conhecia desde as décadas de 1970-1980. As lutas dos povos indígenas em defesa dos seus territórios e modos de vida, e das populações afro-descendentes de Buenaventura contra os megaprojectos portuários, abriram o caminho no último trimestre de 2019 para a mobilização de centenas de milhares de colombianos e colombianas em todas as cidades do país. Foi o paro civico que, no momento em que escrevo, continua em curso e em que o protagonismo dos jovens e das mulheres tem sido evidente. Nele têm participado cidadãos e cidadãs dos sectores populares urbanos que não têm filiação partidária, não são activistas de movimentos sociais e nunca antes tinham imaginado protestar ou desafiar nas ruas a repressão e o recolher obrigatório. O mal-estar generalizado perante as políticas anti-populares e austeritárias do governo, a falta de vontade política para cumprir o acordo de paz e a passividade ante o assassinato sistemático de líderes sociais foi canalizado por  forças políticas com capacidade de convocar e de sustentar a luta organizadas no Comité Nacional del Paro.

Durante os últimos quarenta anos, o Chile foi apresentado interna e internacionalmente como a prova do êxito e da sustentabilidade do neoliberalismo, uma sustentabilidade tanto maior quanto foi capaz de se reproduzir tanto em ditadura como em democracia. No entanto, ao longo da década passada foi-se tornando evidente o descontentamento social provocado por uma (des)ordem social muito desigual, feita de salários baixos e de pensões indignas, educação e saúde privatizadas e caras, arbitrariedade patronal e das grandes empresas, impunidade ante a contaminação ambiental, deficientes e caros transportes públicos, violência contra os povos indígenas mapuches, contra as mulheres, etc. Ao longo da década, a resistência activa foi protagonizda pelos mapuches e pelos estudantes, até que em Outubro de 2019 os protestos se generalizaram a todo o país envolvendo os mais diversos sectores da população. A centelha que incendiou o Chile foi a subida dos transportes públicos em Santiago, mas o mal estar social e o sentimento de injustiça  social estavam latentes em toda a sociedade e apenas esperavam que a taça transbordasse. A resposta do governo foi repressiva (estado de emergência, toque de recolher obrigatório, brutalidade policial) e revelou continuidades perturbadoras com a repressão estatal do tempo da ditadura, como a tortura (incluindo a violação) e a mutilação (barbaramente atingindo os olhos dos jovens manifestantes).

Os protestos assumiram formas inovadoras de organização horizontal e revelaram o descrédito geral das instituições políticas, especialmente dos partidos. O protagonismo dos movimentos de mulheres deve ser salientado, não só pela sua força, como pelo modo inovador como se tem posicionado nas mobilizações. Destaco La Asamblea Feminista Plurinacional, que al demandar el reconocimiento constitucional de  la plurinacionalidad estabelece una articulación con el movimento  indigena, muchissimo golpeado en tiempos recientes con la avalancha neoliberal del neo-extractivismo. A bandeira “a revolução será feminista o não será”  sustenta a proposta inovadora de una asamblea constituyente paritaria, plurinacional y popular[6]. Tudo isto indica que o interregno-acomodação que caracterizou o Chile nas últimas décadas parece transmutar-se em interregno-confrontação.

Com a instalação da ideia de interregno procurei mostrar que o velho e o novo continuam tecendo as suas articulações contraditórias e mutantes no continente. As vitórias e as derrotas das classes populares vão-se sucedendo sem grande sedimentação.  Novas formas de repressão da resistência popular vão bloqueando o caminho da libertação, mas paralelamente novas formas de resistência, de criatividade oposicional e de imaginários de libertação vão emergindo. Dessa oscilação se alimenta o optimismo trágico que caracteriza a esperança possível no continente.

Instalação: como se o futuro estivesse aqui

Colonialismo, terra e território

A primeira ideia foi formulada por muitos. Escolho a formulação de Frantz Fanon: “Pour le people colonisé la valeur la plus essentielle, parce que la plus concrète, c’est d’abord la terre: la terre qui doit assurer le pain et, bien sûr, la dignité” (1961: 13). O modo como os governos progressistas foram derrubados no continente durante a última década revelou a centralidade de dois temas que têm sido negligenciados pelo pensamento crítico de matriz eurocêntrica: a vigência do colonialismo e a questão da terra e do território. O pensamento crítico dominante aceitou durante muito tempo que o colonialismo tinha terminado com os processos de independência e que desde então a luta social era exclusivamente, ou prioritariamente, uma luta anti-capitalista. Na última década tornou-se mais evidente que nunca que esta ideia está equivocada. O colonialismo não terminou com as independências, apenas mudou de forma. O que terminou com as independências foi uma forma específica de colonialismo, o colonialismo histórico caracterizado pela ocupação territorial por uma potência estrangeira[7]. A partir de então, o colonialismo mudou de forma mas continuou até hoje e por vezes tem sido tão violento quanto o colonialismo histórico. Esta permanência foi assinalada na década sessenta do século passado por autores como Pablo Gonzalez Casanova (colonialismo interno, 1965)[8], Rodolfo Stavenhagen (aculturação e colonialismo, 1965)[9]  e Kwame Nkrumah (neocolonialismo)[10], mas o pensamento crítico não absorveu plenamente estas ideias pioneiras. De modo algo paradoxal, os governos progressistas da última década mostraram a necessidade urgente de rever a concepção de dominação a partir dos conhecimentos nascidos nas lutas sociais. Apesar de todas as conquistas na melhoria das condições de vida das classes populares por via da redistribuição social, estes governos revelaram uma continuidade perturbadora com o colonialismo histórico ao centrarem as suas políticas económicas no que se designou como neo-extractivismo, a exploração sem precedentes dos recursos naturais. Daqui resultaram fenómenos como: a relativa desindustrialização do país[11]; a  violação dos instrumentos internacionais que obrigam à consulta prévia dos povos indígenas e afrodescendentes sobre megaprojectos que afectam os seus territórios; a persistência e, por vezes, o agravamento do racismo estrutural e institucional; a persistência do assassinato de líderes sociais indígenas, quilombolas e camponeses empenhados na luta em defesa das suas terras e territórios; a tolerância da concentração de terra  e a pouca vontade política para levar a cabo a reforma agrária e a demarcação de terras ancestrais; a pouca sensibilidade ante a degradação ambiental e a catástrofe ecológica. Daqui resultou que o “novo” prometido pelos governos progressistas continha algumas características do “velho”. Tais características revelavam a articulação estrutural perturbadora entre o capitalismo e o colonialismo. Por outro lado, o aumento da agressividade do imperialismo norte-americano mostrou igualmente uma insidiosa continuidade com a matriz do colonialismo e das rivalidades entre impérios: a luta selvagem pelo acesso aos recursos naturais, de que a Venezuela, o Brasil e a Bolívia são os exemplos mais recentes e dramáticos.

Patriarcado, corpo, experiência e luta

A segunda ideia para a instalação “o futuro como se estivesse aqui” tem tido muitas formulações e a mais incisiva é a que tem sido proposta pelos movimentos feministas latino-americanos já acima referida: “a revolução será feminista ou não será”[12]. A última década mostrou que o capitalismo está vinculado não só ao colonialismo como ao patriarcado. De facto, apesar de todas as conquistas dos movimentos das mulheres contra a discriminação sexual e a violência sexual doméstica, pública, institucional e estrutural, a verdade é que tal violência, nomeadamente sob a forma mais brutal de feminicídio, permaneceu e nalguns caso até se agravou. A formulação mais recente e eloquente deste facto inquietante é da Comandanta Amada do movimento zapatista ao inaugurar o Segundo Encuentro Internacional las Mujeres que Luchan em 27 de Dezembro passado em Chiapas: “en todo el mundo siguen asesinando mujeres, las siguen desapareciendo, las siguen violentando, las siguen despreciando. en este año no se ha parado el número de violentadas, desaparecidas y asesinadas. Lo que sabemos es que ha aumentado. y nosotras como zapatistas lo miramos que es muy grave. Por eso convocamos a este segundo encuentro con un solo tema: la violencia contra las mujeres… Dicen que hay equidad de género porque en los malos gobiernos hay igual de hombres y mujeres mandones y mandonas. pero nos siguen asesinando. dicen que hay más derechos en la paga para las mujeres. pero nos siguen asesinando. dicen que hay mucho avance en las luchas feministas. pero nos siguen asesinando. dicen que ahora las mujeres tienen más voz. pero nos siguen asesinando. dicen que ahora ya se toma en cuenta a las mujeres. pero nos siguen asesinando. dicen que ahora hay más leyes que protegen a las mujeres. pero nos siguen asesinando. dicen que ahora es muy bien visto hablar bien de las mujeres y sus luchas. pero nos siguen asesinando. dicen que hay hombres que entienden la lucha de como mujeres que somos y hasta se dicen que son feministas. pero nos siguen asesinando. dicen que la mujer ya está en más espacios. pero nos siguen asesinando. dicen que ya hasta hay super héroas en las películas. pero nos siguen asesinando. dicen que ya hay más conciencia del respeto a la mujer. pero nos siguen asesinando. cada vez más asesinadas. cada vez con más brutalidad. cada vez con más saña, coraje, envidia y odio. y cada vez con más impunidad”[13]. O capitalismo tem vindo a mostrar que exige, para se reproduzir, não só  corpos racializados, mas também corpos sexualizados.

Mas, por outro lado, a última década também mostrou que o papel das mulheres na luta anti-capitalista e anti-colonialista tem vindo a assumir crescente protagonismo. Em todo o continente, e particularmente na Venezuela, na Argentina, na Colômbia, no Brasil e no Chile, as mulheres têm vindo a conseguir que as suas reivindicações sejam incluídas na agenda política. Mas sobretudo têm vindo a dar contributos preciosos para as lutas sociais: novas narrativas de libertação, novas formas de organização, novas articulações entre lutas no continente e para além deste[14]. Acima de tudo, têm vindo a dar crescente credibilidade à ética de cuidado, à economia de reciprocidade e à relação respeitosa com a natureza. Por isso mesmo, têm vindo a privilegiar as lutas extra-institucionais que possam conduzir a uma nova institucionalidade. As mediações partidárias, mesmo as de esquerda, têm vindo a ser submetidas a intenso e crítico escrutínio. São eloquentes as palavras de Marichuy, a pre-candidata indígena às eleições presidenciais do 2018 do México, porta-voz do Congreso Nacional Indígena (CNI):Queremos que los mismos pueblos digan y decidan qué hacer ellos al interior de sus propias comunidades[15]. Ao conceber o corpo como território, muitos feminismos latino-americanos incentivaram alianças entre os movimentos feministas e os movimentos indígenas. É assim que deve ser lida a proposta acima referida das mulheres chilenas de ser convocada uma assembleia constituinte plurinacional.

De facto, a obrigação principal das lutas protagonistas é dar visibilidade às lutas menos visíveis, mas igualmente importantes. Neste domínio, os movimentos feministas nem sempre têm estado à altura da sua responsabilidade. O incidente mais recente e perturbador foi a avaliação equivocada de algum feminismo latino americano branco e mestiço do golpe de estado contra o presidente Evo Morales.  Ante isto, não resisto a citar de novo as palavras sábias da Comandata Amada : “de repente tal vez te ayude en tu lucha el escuchar y conocer otras luchas de como mujeres que somos. aunque estemos de acuerdo o no estemos de acuerdo con otras luchas y sus modos y geografías, pues a todas nos sirve escuchar y aprender. por eso no se trata de competir para ver cuál es la mejor lucha, sino de compartir y de compartirnos. por eso te pedimos que siempre tengas respeto a los diferentes pensamientos y modos. todas las que estamos aquí, y muchas más que no están presentes, somos mujeres que luchan. tenemos diferentes modos, es cierto. pero ya ves que nuestro pensamiento como zapatistas que somos es que no sirve que todas somos iguales de pensamiento y modo. pensamos que la diferencia no es debilidad. pensamos que la diferencia es fuerza poderosa si hay respeto y hay acuerdo de luchar juntas pero no revueltas”.

A instalação da teia da dominação

À luz das lutas sociais da última década no continente torna-se urgente rever a concepção de dominação que orientou tanto os interregnos-acomodação como os interregnos-confrontação. A dominação assenta em três pilares principais: capitalismo, colonialismo e patriarcado. Há outros mecanismos de dominação, como sejam a religião fundamentalista, as castas ou o capacitismo, mas estes tendem a actuar como dominações-satélite ao serviço dos pilares principais. Estes pilares estão profundamente articulados e não operam uns sem os outros. No início do século XXI, a explicação marxista para tal articulação reside no facto, hoje mais visível que nunca, de que a exploração do trabalho livre, pressuposta pelo capitalismo, não se sustenta económica e politicamente sem a co-presença de trabalho altamente desvalorizado (super-explorado), ou seja, de trabalho escravo e de trabalho não pago. Estas últimas formas de trabalho são “fornecidas” por corpos racializados e sexualizados. A persistência do colonialismo e do patriarcado é assim condição necessária para a reprodução do capitalismo. Esta articulação entre capitalismo, colonialismo e patriarcado escapou durante muito tempo ao pensamento   crítico de matriz eurocêntrica.  O drama do nosso tempo reside em que, enquanto as três formas de dominação actuam articuladamente, as lutas sociais contra elas têm estado fragmentadas. Quantos movimentos anti-capitalistas não foram colonialistas, racistas e sexistas? Quantos movimentos anti-racistas não foram pro-capitalistas e sexistas? Quantos movimentos feministas não foram racistas, colonialistas e pro-capitalistas? Enquanto esta assimetria se mantiver não será possível sair do inferno capitalista, colonialista e patriarcal em que vivemos. As lutas anti-capitalistas, anti-colonialistas e anti-patriarcais são todas igualmente importantes, ainda que, dependendo dos contextos, algumas possam ser mais urgentes que outras.

A educação libertadora

Uma das grandes lições da última década é que a luta pela hegemonia é hoje mais complexa do que nunca. Os governos progressistas, que contribuíram decisivamente para o aumento das classes médias nos seus países, depararam-se com o distanciamento político destas a partir do momento em que surgiram as primeiras dificuldades em prosseguir as políticas redistributivas e as políticas sociais em geral. As próprias classes populares que, em resultado das mesmas políticas, tinham há pouco ultrapassado a linha da pobreza ou mesmo da miséria extrema, foram um terreno fácil para a propagação de ideologias conservadoras e mesmo reacionárias, com no caso do fundamentalismo religioso. A ideologia neoliberal da autonomia individual, sob a forma do empreendedorismo (autonomia sem reivindicação das condições sociais para se ser autónomo) e da satisfação pessoal medida pelo nível de consumo de bens e serviços,  penetrou fundo na sociedade, muitas vezes promovida pelos próprios governos que mais poderiam ser prejudicados por ela. A era da comunicação digital e do consumo de massa construiu um novo senso comum, que não só hostiliza as ideias fundamentais para a construção de uma sociedade anti-capitalista, anti-colonialista e anti-patriarcal (solidariedade, reciprocidade, cooperação, auto-determinação e bens comuns), como trivializa e sujeita a critérios de benefício pessoal as ideias próprias da sociedade democrática liberal, como cidadania, participação e  bem público[16]. Na era dos big data e dos algoritmos, a manipulação das opções políticas e de consumo combina facilmente a massificação com a personalização. Constrói-se assim um mundo imaginário de diferenças que, em vez de conduzir a uma cultura de diversidade e de pluralidade, cria guetos identitários, colectivos de diferença que cultivam uma total indiferença em relação a colectivos concebidos como diferentes. Num mundo que prega a prosperidade individual a qualquer preço, o outro é sempre o potencial concorrente desleal, o inimigo a abater. Nisto consiste a política do ressentimento. Quanto mais invisível se torna a dominação, mais facilmente as vítimas da exclusão social e da injustiça vêem em outras vítimas a causa dos seus males. O racismo e o sexismo são potenciadores poderosos da política do ressentimento. O discurso e a política do ódio encontram aqui o seu caldo de cultura e campo fértil de propagação. Em vez de adversários com os quais se discute, constroem-se inimigos a eliminar.

Os governos progressistas da última década promoveram a educação pública, mas não cuidaram suficientemente dos conteúdos dessa educação. Assumiram que a difusão da educação promovia por si uma educação desmercantilizada, descolonizada e despatriarcalizada[17]. Erro fatal. Também descuidaram a democratização e a diversificação da comunicação social. Promoveram os media oligopolistas na esperança de os neutralizar, uma esperança que se revelou tragicamente irrealista. A única excepção foi o kirchnerismo argentino e os resultados estão à vista. Em suma, esqueceram-se da instalação pedagógica que Paulo Freire lhes tinha oferecido com a Pedagogia do oprimido[18] e a Pedagogia da esperança[19]. E ninguém a poderia ter formulado mais eloquentemente que ele: “quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser opressor”.


[1] Martí, José (2005 [1871]), Nuestra América. Caracas: Biblioteca Ayacucho.

[2] Gramsci, Antonio (1971), Selections from the Prison Notebooks of Antonio Gramsci, ed. and trans. Quintin Hoare e Geoffrey Nowell-Smith. London: Lawrence & Wishart. O termo interregno é oriundo da antiga Roma, onde era usado para fazer referencia ao momento de intermediação jurídica e política que se seguia à morte do soberano e precedia o entronizamento de seu sucessor. A declaração de interregno acontecia pela proclamação do justitium, pois que ficavam suspensas quer a soberania, quer a legalidade. Gramsci usou este conceito de forma brilhante, aplicando-o à crise generalizada de autoridade que a Europa pré-II Guerra vivia, onde a ordem dominante tinha perdido a capacidade de liderar democraticamente, pelo consenso da maioria, abrindo um horizonte de possibilidades.

Theophanidis, Philippe (2016), “Interregnum as a Legal and Political Concept: A Brief Contextual Survey”,  Synthesis: an Anglophone Journal of Comparative Literary Studies, 0(9), 109-124. doi:http://dx.doi.org/10.12681/syn.16228

[3] Santos, Boaventura de Sousa (2014), Epistemologies of the South. Justice against Epistemicide. New York: Routledge.

[4] Fanon, Frantz (1961), Les Damnés de la Terre. Paris: Maspero.

[5] Echeverría, Bolivar (2000), La Modernidad de lo Barroco. Mexico, DF: Era.

[6] Veja-se, por exemplo, “Chile Vamos da portazo a mujeres e indígenas, y feministas anuncian huelga general”, disponível em https://radio.uchile.cl/2019/12/18/chile-vamos-da-portazo-a-mujeres-e-indigenas-y-feministas-anuncian-huelga-general/, acedido em janeiro de 2020.

[7] E nem sequer esta forma de colonialismo terminou, como mostram os casos da Palestina e do Sahara ocidental.

[8] Casanova, Pablo Gonzalez (1965), “Internal Colonialism and National Development”, Studies in Comparative International Development, 1(4): 27-37.

[9] Stavenhagen, Rodolfo (1965), “Classes, Colonialism, and Acculturation: Essay on a system of inter-ethnic relations in mesoamerica”, Studies in Comparative International Development, 1(6): 53-77.

[10] Nkrumah, Kwame (1965), Neo-Colonialism, The Last Stage of Imperialism. London: Thomas Nelson & Sons.

[11] No caso da Índia o colonialismo histórico do Reino Unido destruiu a indústria têxtil para proteger a indústria têxtil de Manchester.

[12]Veja-se, por exemplo, “13.10.2008La revolución socialista será feminista…o no será” em http://www.rebelion.org/docs/74223.pdf e em http://samarrilleres.org/es/revolucion-feminista/, acedidos em janeiro de 2020.

[13] “México: Palabras de las mujeres zapatistas en la inauguración del Segundo Encuentro Internacional de Mujeres que luchan”, disponível em https://kaosenlared.net/mexico-palabras-de-las-mujeres-zapatistas-en-la-inauguracion-del-segundo-encuentro-internacional-de-mujeres-que-luchan/, acedido em janeiro de 2020.

[14] Por exemplo, no Segundo Encuentro Internacional de Mujeres que luchan participaram mais de 4.000 mulheres, oriundas de 49 países entre os quais o México, Brasil, Chile, Argentina, Equador, Guatemala, Estados Unidos da América, Grécia, Dinamarca, Índia, Inglaterra, Sri Lanka, Turquia e Curdistão. Veja-se “Palabras zapatistas en el Segundo Encuentro Internacional de Mujeres que Luchan”, disponível em https://www.nodal.am/2020/01/palabras-zapatistas-en-el-segundo-encuentro-internacional-de-mujeres-que-luchan/, acedido em janeiro de 2020.

[15] “Marichuy, primera candidata indígena a la presidencia de México en 2018”, disponível em https://www.republica.com.uy/marichuy-primera-candidata-indigena-la-presidencia-mexico-2018/, acedido em janeiro de 2020.

[16] Santos, Boaventura de Sousa (2019), El Fin del Imperio Cognitivo. Madrid: Trotta.

[17] Santos, Boaventura de Sousa (2017), Decolonising the University, Cambridge: Cambridge Scholars; Santos, Boaventura de Sousa (2018), Construindo as Epistemologias do Sul. Antologia. Vol II. Buenos Aires: CLACSO.

[18] Freire, Paulo ( [1968]1994), Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro, Paz e Terra.

[19] Freire, Paulo (1997), Pedagogia da Esperança: um reencontro com a Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro, Paz e Terra.

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