Um caso clássico de como escolher a culpa esmaga a responsabilidade e as possibilidades de mudança

O português, como muitos outros idiomas possui gênero relacionado a categorias semânticas, ou seja, todos os substantivos possuem gênero. Consigo compreender que em muitos casos, senão a esmagadora maioria, a questão não está relacionada ao gênero social binário, mas sim a uma mera formalidade, classificação e concordância. E a gente aceita essas três qualidades sem grandes questionamentos ou erros seja durante o processo de alfabetização ou na vida adulta. É praticamente impossível encontrar um falante de português nativo se referindo a geladeiras no masculino, certo? Porque não existe concordância do ponto de vista semântico!

Já viveu aquela situação de estar passeando com seu bicho de estimação, alguém passar por vocês na rua e soltar um comentário “que cachorrinho fofinho” e você corrigir dizendo “ela é muito fofinha” e a pessoa sem grandes tensões seguir acertando os artigos e pronomes desse animal que sequer se importa com esse rolê de pronomes e artigos?

Pensando nesse exemplo de bichos de estimação não soa minimamente curioso que a única situação de erro incorrigível e descontrolada é quando estamos tratando de pessoas trans e travestis? E não é ao acaso, nem tampouco responsabilidade exclusiva de um idioma indoeuropeu, mas sim de como as estruturas de poder se utilizam da linguagem e de uma suposta formalidade (como no caso das categorias semânticas de gêneros substantivos) para seguir o curso de extermínio de todas aquelas pessoas que não concordam ou resistem a submissão compulsória das estruturas de poder. É essa mesma linguagem que concorda, que é formal e apenas classificatória que produz, por exemplo, toda uma estrutura de discriminação linguística com pessoas que sabem se comunicar, mas não dentro de seus moldes. E de novo, não me parece responsabilidade puramente da estrutura linguística, mas de como a conectamos as questões sociais que vão produzir o que é certo e o que não é certo. A comparação aqui, em relação a pessoas trans/travestis e preconceito linguístico bebem de fontes parecidas de poderes simbólicos que visam somente excluir, violar e desumanizar alguns grupos de pessoas.

A Lina fez de tudo, produziu uma estratégia que eu mesmo produziria e que acredito enormemente: a da generosidade com as outras pessoas, a esperança de que elas são capazes de aprender, se responsabilizar e mudar, porque de fato, quem sonha outro mundo, necessariamente precisa acreditar que a incompletude das outras pessoas e a nossa própria são os elementos fundamentais capazes de nos salvar do mundo de ruínas que produzimos ao longo de nossa história evolutiva.

Mas veja, não adianta correção na hora, correção didática ao vivo, paciência, generosidade, choro, empatia, compaixão, comunicação não violenta, agressividade, ou qualquer outra coisa que o valha se a pessoa cisgênero não admitir que aquilo é responsabilidade única e exclusivamente dela e me parece que na esmagadora maioria dos casos é dessa ausência que estamos falando. É, essencialmente, a falta de responsabilidade, a ausência de pensamento crítico com as outras pessoas, seu locus social e sistêmico e uma quantidade entediante de culpa traduzidos em justificativas medíocres que faz com que pronomes e artigos se tornem um evento violento, desrespeitoso e de uma sacanagem sem fim com outra pessoa.

Dentro ou fora do Big Brother Brasil a situação não muda em absolutamente nada! Eu sou uma pessoa transmasculina e submetido, involuntária e compulsoriamente, a leitura do homem cis até que, precise invocar, por qualquer razão de cadastro ou documento antigo, a Bianca (pessoa que fui durante 25 anos da minha vida) e não que eu tenha qualquer problema com ter sido Bianca por 25 anos, ao contrário, esse é um constrangimento que eu sempre deixo para quem o produz! Mas toda vez que minha história de transição de gênero se apresenta, a barba e qualquer leitura de homem cis cai por terra e passo a ser tratado no feminino. É assim mesmo, instantâneo! Não é o pronome que escolhi, não era o pronome com o qual estava sendo tratado anteriormente, mas o simples fato de ser uma pessoa trans aciona os antolhos da cisgeneridade que passa a agir como se ali naquela situação estivesse defendendo a espécie superior de humana que são todas as pessoas cisgênero. (risos)

Honestamente, eu me considero muito paciente, talvez por ser professor, talvez por ser sonhador, mas é exaustivo ter que escrever sobre um tema tão batido quando eu poderia estar aqui escrevendo sobre poeira estelar, caldo primordial da vida, evolução das espécies ou como a energia elétrica mudou o curso da humanidade, temas os quais são privilégio majoritário dedicado a pessoas cisgênero que não precisam falar ou insistir em sua própria cisgeneridade. Explico. A norma é retroalimentada pela cisgeneridade a tal ponto que até ócio criativo é algo que pessoas trans, majoritariamente, não dispõem e é precisamente por essa razão que eu tô aqui escrevendo mais uma vez como a boçalidade da cisgeneridade precisa ser desmistificada e tratada por quem a produz, outras pessoas cisgêneros! Porque se é um problema criado pela cisgeneridade e que somente a cisgeneridade se beneficia, nada mais coerente que ela mesma tome para si a responsabilidade efetiva de transformar essa realidade. E não, ao ser uma responsável você não se torna salvadora de nada nem de ninguém, somente uma pessoa que faz o que precisa ser feito: tratar todas as pessoas com a mesma humanidade e dignidade.

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