Bruno, menino preto, de 13 anos, de município do Sul da Bahia, queria cursar o ensino técnico, mas a participação da rede pública na expansão das matrículas na Educação Profissional Técnica de Nível Médio é de uma instabilidade desafiadora, tendo tido queda de 35% no último ano. Ensino Superior? Sonho distante. Menos da metade da população de 18 a 24 anos no país têm acesso! Para pretos como ele, cai para um terço. Para quem é da zona rural, como ele, cai para 12%.

A Campanha Nacional pelo Direito à Educação apresentou nesta semana o Balanço do Plano Nacional de Educação 2023, em audiência pública conjunta entre Comissão de Educação e Cultura e Comissão de Direitos Humanos no Senado Federal. O Balanço do PNE é o monitoramento anual que fazemos para identificar a que ritmo as metas da principal legislação da educação brasileira estão sendo cumpridas. Infelizmente, não é surpresa para ninguém que 90% delas não devem ser cumpridas até o final do prazo, no ano que vem. Mais da metade delas estão em retrocesso (65%); 85% não estão sendo cumpridas até o momento; há lacunas de dados para avaliar 35% delas; e apenas 15% das metas estão parcialmente cumpridas.

O caso de Bruno é um dos que apresentei na audiência, ao lado de outros personagens.

Eu e Daniel Cara, professor da FE-USP e dirigente da Campanha, argumentamos a senadoras/es que o tamanho da negação do direito à educação por parte do Estado brasileiro não tem a ver com supostas “metas inalcançáveis” do Plano, como alguns políticos, pessoas e organizações defendem. Para esses, dedicados a uma perspectiva de redução do Estado e de restrição de direitos, o PNE (2014-2024) é ousado demais.

Qual é a ousadia de universalizar a educação básica? De equiparar os anos de estudo da população negra com a população branca, da população do campo com a população urbana, das Regiões Norte e Nordeste com as do Sul e Sudeste? De financiar um CAQ (Custo Aluno-Qualidade) que garanta a mesma renda aos profissionais da educação que a média da população com a mesma formação?

Precisamos construir um novo PNE sem retrocessos, para que a garantia de uma educação pública de qualidade a todas as pessoas seja plenamente concretizada. Isso significa que a construção de um Novo PNE – cuja legislação deve tramitar neste ano no Congresso Nacional – pressupõe a garantia de investimentos públicos adequados à educação pública.

Além disso, como argumentou Daniel, é preciso que a economia esteja a serviço da educação, que o sistema federativo seja funcional, que as desigualdades sejam enfrentadas, e que o Estado não olhe para o Plano como um cardápio em que possa selecionar o que quer e deixar o que não quer fazer avançar. O PNE tem um planejamento interconectado, se um elo não avança, os demais serão prejudicados. Esse é nosso diagnóstico de motivos estruturais pelo descumprimento do PNE e essa é a nossa luta.

Reproduzo abaixo parte da minha fala na audiência, trazendo dados desagregados por raça/etnia, gênero, região, UFs, localidade e nível socioeconômico. As personagens são fictícias, mas as desigualdades que os números apresentam são muito reais – pois foram apontadas pelo nosso Balanço.

Lívia é um bebê de quatro meses, parda, da zona rural de Pernambuco. Ela tem duas vezes mais chances de não conseguir uma vaga em creche do que Maria, que mora no Recife. A mãe de Lívia, Rosângela, de 19 anos, preta, que não concluiu o Ensino Médio, não estuda, e ganha meio salário-mínimo como ajudante geral em tempo parcial, em um bico que conseguiu. Ela tem metade da chance de conseguir voltar a trabalhar no mês que vem – na volta do período pós-parto (porque o puerpério ainda não acabou) – do que Sofia, da mesma idade, mas branca, em sua família de classe média, em São Paulo, na capital. Apesar de toda essa situação, Rosângela tem mais chances de conseguir uma vaga na creche para sua filha para voltar a trabalhar, do que Gil, uma mulher indígena de Roraima.

Digamos que, a muito custo, Gil tenha conseguido matricular sua filha, de dois anos, também indígena, na Educação Infantil em Roraima. Daqui a quatro anos, talvez ela não tenha a mesma sorte ao tentar que ela siga seus estudos, no Ensino Fundamental, já que o estado tem o pior índice de acesso à etapa no país, tendo retrocedido 5,3 pp desde 2014. E 6% dos estudantes estavam sem acesso ao Ensino Fundamental, de acordo com o índice do estado. São milhares de alunas/os afetados, e uma delas poderá ser a filha de Gil. E nem conseguimos saber ao certo essa projeção, já que temos poucos dados desagregados disponíveis sobre a população indígena na área da educação em todo o país.

Lembra de Sofia, de 19 anos, branca, de família de classe média de São Paulo? Então, ela não precisou se preocupar sobre uma vaga na creche, para seguir seus estudos ou para trabalhar, porque ela teve acesso a políticas de educação sexual, teve acesso à saúde pública, e está se formando no Ensino Médio, e prestando o Enem. O mesmo não acontece com Luana, parda, de 16 anos, da periferia da cidade. Ela está ainda na escola, mas divide o tempo do seu dia entre aulas de brigadeiro caseiro, faltas de professores que estão adoecidos, cuidar de seu irmão mais novo, e fazer docinhos para vender e colaborar com a renda familiar. Ela não sabe se vai prestar o Enem, porque acha que não vai passar na universidade pública e não tem condições de criar mais uma despesa na família em uma universidade privada de baixo custo – e baixa qualidade. Ela queria ser diplomata, estudar história e direito. Mas as aulas dela vão só ajudar a vender os doces hoje, porque nem aula de sociologia ela tem mais, depois da Reforma do Ensino Médio.

Eu queria falar do João Vitor, menino paranaense de 13 anos, que é pessoa com deficiência. Mas eu não tenho dados para falar dele, já que a meta 4 do PNE tem gravíssimos problemas de falta de informações devido ao fato de não termos Censo Demográfico desde 2010, quando João Vitor nasceu. É possível que ele esteja em classe comum, compondo os 71% dos meninos de 4 a 17 anos em seu estado. Mas pode ser que ele não esteja na escola.

Joana, 14 anos, do Tocantins, estava em uma escola municipal de educação em tempo integral quando estudou no Ensino Fundamental. Acontece que não conseguiu vaga no Ensino Médio na educação em tempo integral, porque o percentual de escolas estaduais que oferecem esse tipo de vaga é menor que as municipais no país. Ainda, seu estado, o Tocantins, teve retrocesso de 17,5 pp. desde 2014 na oferta de vagas em tempo integral. É uma das metas mais importantes para a garantia do direito à educação e uma das mais instáveis e preocupantes.

A meta oito escancara as desigualdades nas nossas juventudes, de que falamos até aqui. A escolaridade média da população de 18 a 29 anos mais pobre é de 10,3 anos de estudo, contra 13,5 para a população mais rica. Pretos e pardos têm 11,3 anos de estudo em média, contra 12,4 para os brancos. Pessoas do campo cursam somente 10,3 anos de estudos em média, contra 11,9 anos entre a população urbana. Norte e Nordeste seguem atrás de Sudeste e Sul.

Mas não é somente a nossa juventude que ainda tem negado seu direito à educação. 18% da população com mais de 65 anos não sabe ler e escrever. Seu Boris, preto, de 63 anos, queria aprender, mas as turmas de Educação de Jovens e Adultos em seu bairro, em uma cidade do sul da Bahia, fecharam há anos. Ele faz parte do 1/3 da população de 15 a 64 anos no país que é analfabeta funcional. Teve uma camada imensa de direitos negados, a vida toda. Ele nunca pensou em ter Ensino Superior, mas ter passado pela educação profissional poderia tê-lo ajudado a dar um sustento para a família. Mas, hoje, só 3,5% de matrículas de EJA são integradas à educação profissional.

Seu neto, Bruno, com 13 anos, queria cursar o Ensino técnico, mas a participação da rede pública na expansão das matrículas na Educação Profissional Técnica de Nível Médio é de uma instabilidade desafiadora, tendo tido queda de 35% no último ano. Ensino Superior? Sonho distante. Menos da metade da população de 18 a 24 anos no país têm acesso! Para pretos como ele, cai para um terço. Para quem é da zona rural, como ele, cai para 12%.

Bruno não teve acesso à Educação Infantil, por falta de vaga, mas alguns de seus vizinhos tiveram. Acontece que suas professoras não tinham formação adequada, como acontece com 58% das e dos professores na Educação Infantil no Nordeste – e as outras regiões não estão muito melhor. E, veja, a rede privada, em situação mais precarizada que a pública, para surpresa do senso comum.
Situação parecida acontece nos anos iniciais do Ensino Fundamental, que Bruno cursou, e, pasmem, não é muito melhor o caso do Ensino Fundamental II e do Médio – nos anos finais do Ensino Fundamental, o percentual cai para 47%, e no Médio está acima, mas ainda em 63%. Só 40% dos professores da Educação Básica no país realizam cursos de formação continuada. Na Bahia, os professores de Bruno ganham só 79% do rendimento dos demais profissionais com a mesma escolaridade, considerando a média nacional. O estado da Bahia nem cumpre com todos os requisitos de plano de carreira e consideração do piso.

Os estudantes que citei até aqui não têm gestão democrática plena em suas escolas. Só 6% das escolas públicas selecionam diretores por processo seletivo qualificado e com participação da comunidade escolar. O caso é pior no Norte e Nordeste, nas zonas rurais e em âmbito municipal. E nossos estudantes pouco têm voz para contar a situação de violação de direitos por que passam e pensar em soluções coletivas, porque muito menos da metade das escolas do país têm colegiados intraescolares – conselho de classe, associação de pais e mestres, grêmios estudantis – e o caso, de novo, é mais grave no Norte e no Nordeste, na zona rural, a nível municipal. Só 13% no país têm grêmios estudantis. Não é à toa que o convívio escolar está terrível e temos tido casos sucessivos de ataques em escolas.

Uma série de fatores está por trás de tantas violações. A pobreza que tem assolado o país, impulsionada também pelas reformas de Estado como a reforma trabalhista e da previdência. O racismo e o sexismo, estruturais. Os impactos de uma pandemia não gerida, cujo alastramento foi incentivado pelo governo federal. O programa de escolas cívico-militares, gerando ainda menos democracia, mais violência. E um motivo estrutural central – diagnosticado, inaceitável, latente – é a falta de financiamento adequado.

Os 5,1% do PIB dedicados à educação dizem muito pouco perto do salário miserável docente, que em mais da metade do país sequer ganha o piso para atender centenas de alunos por ano em uma jornada extenuante e adoecedora; perto do valor por aluno, um dos piores comparados aos países da OCDE; perto de um Teto de Gastos, a única política tão devastadora constitucionalizada por 20 anos, no mundo; perto das empreitadas de colocar o Fundeb no arcabouço fiscal; perto da série de cortes e mais cortes na educação, para fins de uso escuso do dinheiro público.

E mais inadmissível que toda essa situação é ainda ter gente, organizações empresariais, membros eleitos pelo povo que defendem que o Plano Nacional de Educação 2014-2024 foi ousado. Lhes pergunto: qual a ousadia de universalizar a educação básica? Qual a ousadia de equiparar os anos de estudo da população negra com a população branca, da população do campo com a urbana, das regiões do Norte e Nordeste daquelas do Sul e Sudeste? Qual a ousadia de financiar um Custo Aluno-Qualidade que garanta a mesma renda aos profissionais da educação que a média da população com a mesma formação? Qual a ousadia de garantir banheiro, água potável, quadra poliesportiva, internet, tetos e janelas nas escolas? Qual a ousadia de querer uma educação em que os estudantes possam se expressar, ter aulas densas, com ferramentas, laboratórios, professores bem formados, em número adequado? Qual a ousadia em querer que a alimentação escolar seja digna?

Esses dados de descumprimento do PNE, depois de tanta luta para ele ser aprovado, um texto inédito e forte, que responda às demandas sociais, são estarrecedores. Mas diante deles não podemos, no momento de construção de um novo Plano, nos rebaixar como sociedade e como Estado e dizer que cumprir com a Constituição Federal de 1988 e garantir o primeiro direito social listado nela para toda a população é uma ousadia. Peço que esse Congresso reflita sobre isso e seja responsável com os debates que seguirão. Não podemos retroceder e, sim, temos que ser ousados se não quisermos mais casos como o de Lívia, Rosângela, Gil, Luana, João Vitor, Joana, Boris, Brunos e milhões de outras pessoas sem direito à educação e à justiça social no país.

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