Foto: Alexandre Gomes

Em 1993, o grupo de rap Racionais MC’s lançava o seu primeiro disco, “Raio-x do Brasil”. Foi ouvindo os versos do homônimo grupo que Israel Feliciano – o Rael – percebeu que ser um jovem preto numa sociedade intrinsecamente racista iria impô-lo alguns desafios ao longo da vida. Mas o jovem rapaz da Zona Sul de São Paulo, do Jardim Iporanga, não se deixou abalar e começou a escrever suas primeiras rimas logo cedo, e hoje tem uma carreira sólida e é referência para muitos jovens pretos que também querem trilhar o caminho do rap e se inserir na cultura Hip Hop.

Na entrevista de hoje, Rael fala um pouco mais sobre como os Racionais MC’s serviram de bússola para sua carreira e vida pessoal; além disso, conta também sobre os novos projetos em que está envolvido, incluindo feats e um programa de TV em horário nobre. E não só. Leiam com muita atenção. Rael busca ser cais, numa sociedade movida pelo ódio, pela ganância, pela indiferença. Com a palavra, Rael:

André Menezes – Cara, pra começarmos o nosso papo, como os Racionais MC’s moldaram o artista que você é hoje? Além disso, qual a influência deles na sua carreira e vida pessoal?

Rael – Os Racionais me influenciaram sim. Primeiramente, comecei dançando break, então eu usava Racionais para ouvir. Eu tinha oito anos, não entendia muito o que estava dizendo ali, mas me causava alguma coisa. E aí eu dancei dos oito aos dez. Quando parei de dançar, ficou essa coisa da música, me conectei com ela. Aos onze eu comecei a fazer cover de Racionais MC’s e aí eu comecei a entender toda aquela contextualização da letra, tudo aquilo. E foi quando me enxerguei como homem preto – eu me enxerguei como homem preto muito cedo.

Dali pra frente, comecei a me autoafirmar, já comecei a entender as coisas do racismo, que era uma coisa que não se falava na minha casa, não se falava na escola. Entrei de cabeça e me tornei essa pessoa que eu sou hoje. Com catorze anos já tinha black power, já entrava em conflito com muita coisa, falava “não” para vários empregos, ou também não conseguia porque tinha cabelo grande, essa coisa toda que nós pretos sofremos, vivemos. Os Racionais, praticamente, foram o meu resgate de identidade e que me ajudou a fazer minha formação acadêmica dentro do Hip Hop. O Hip Hop eu considero que fez a minha formação acadêmica como pessoa, de frequentar os bares, aprender a me vestir, me relacionar, a postura. Ouvi as ideias do KLJ lá no Sintonia e voltava pra casa e ficava debatendo com meus amigos: “Você viu aquela hora que o KLJ falou tal coisa?”.

Então, Racionais tem uma influência muito grande na minha vida e, até hoje, quando eu vou trocar uma ideia ou quando eu vou compor algumas letras mais introspectivas, penso em Racionais. Eles me ensinaram a sobreviver.

André Menezes – Como foi gravar com a Gloria Groove o seu novo single “Vem Com Tudo”?

Rael – Foi demais, mano. A Gloria Groove é uma artista que admiro muito; ela é uma pessoa completa, artisticamente falando. Como pessoa, uma pessoa maravilhosa também. E ela canta, ela dança, ela rima, né? Então, é difícil encontrar pessoas que fazem essas três coisas muito bem. E ela faz isso e tem esse lance também da diversidade dela, de ser uma drag queen participando, que eu acho que é muito interessante essa conexão, a gente fazer essa conexão. Então foi maravilhoso fazer esse single com ela e o Tropkillaz, a gente trazer esse contexto dos bailes, era justamente isso.

Eu tenho viajado; nos meus últimos anos viajei muito para África e esse ano eu fui pra Jamaica, então me conectei muito com essa coisa da dança também. Embora esses países tenham problemas similares aos do Brasil, eles têm essa coisa da dança, do sorriso, me lembra muito uma roda de samba também. Então, eu quis trazer essa coisa meio Jamaica, meio África e meio Funk brasileiro. Foi maravilhoso fazer isso com ela. Maravilhoso.

Foto: Augusto Wyss

André Menezes – Como está sendo essa experiência de comandar o programa “Música Preta Brasileira” com a Maju no Fantástico? O que esse programa representa para a nossa comunidade?

Rael – Ah, eu acho que, cara, primeiramente estou muito honrado, muito feliz de me sentar ao lado da realeza da Música Preta Brasileira, de trocar ideia com essas pessoas que agregaram, que pavimentaram essa estrada pra gente poder passar. Uma coisa maravilhosa pra mim. É mais do que uma série, é um documento histórico mesmo, que é a perspectiva desses criadores falando sobre suas inspirações, seus desafios e tal. Então tem sido uma coisa maravilhosa, um aprendizado.

E acho que em relação à comunidade, cara, é a primeira vez na história da televisão brasileira que a gente tem um programa com esse protagonismo negro, né? Em TV aberta, num horário nobre, é a primeira vez que tem isso. Então, eu acho que tem sido uma afronta ao mesmo tempo. É uma afronta, é um atrevimento nosso, né? Mas eu vejo também uma coisa de que as coisas estão mudando. As coisas estão mudando. Eu acho que é muito importante porque a gente não se via na televisão em lugar de protagonismo. Então a gente tem um programa com protagonismo negro, mas com conteúdo diverso, em TV aberta. Isso me diz muita coisa. Eu acho que as pessoas se sentem fazendo parte, se sentem homenageadas. Eu acho que, enfim, serve muito pras novas gerações. Eu acho que é importante pra comunidade nesse sentido.

E também de pontuar quem foi que fez o quê, quem são esses criadores, porque a música está assim hoje, porque essas pessoas contribuíram. Porque a música preta brasileira conta a história de um país, né, mano? Então, a gente ter isso contado dessa perspectiva dos criadores é outra coisa, né? E a equipe é majoritariamente preta também.

Enfim, a gente está tendo a possibilidade de controlar a nossa narrativa em horário nobre. E eu acho que é isso que agrega pra comunidade, entendeu? O que falta? Eu acho, é o coletivo da gente começar a expandir isso mais. Pra ter mais. Entendeu? Porque é um desafio. A gente vive num país extremamente racista e a gente vem com um programa chamado Música Preta Brasileira em horário nobre. A gente entra na casa deles sem pedir licença e eles vão ficar putos mesmo. Mas, ao mesmo tempo, é também educar, ao mesmo tempo, é tentar mostrar o quão rica é a nossa cultura através da música preta.

André Menezes – Você acha que a pauta racial avançou no Brasil?

Rael – Acho que avançou porque tem se falado mais. Antigamente não se falava de racismo, não tinham denúncias e tal. Mas acho que ainda faltam punições mesmo. As pessoas que cometeram esses atos, na hora que for procurar um trampo, tem que consultar lá no B.O. Tipo, opa, tem um B.O aqui, mano. Acho que as leis têm que ser um pouquinho mais rígidas, mas eu acho que a pauta racial avançou, sim. E tô vendo um esforço nas mídias pra ter um pouco mais de diversidade. Embora a gente, às vezes, entenda que não é que eles querem muito fazer isso. É porque já não tem mais pra onde correr, já tá escancarado. Isso precisa ser externado e esses espaços precisam ser preenchidos. Eu acho que tá rolando uma revolução, sim, mas lenta. Conforme a história do país, de acordo com o tamanho da população preta, essa revolução é lenta. Mas eu nasci em 1982, e desde quando me conheço como homem preto, vejo que eu nunca vi como agora. Eu nunca vi como agora também essas pautas e essas discussões, essa coisa sendo colocada na mesa. Pra mim é a primeira vez que isso tá acontecendo. Então, eu acho que é o primeiro passo pra essa pauta estar mais em evidência ainda.

André Menezes – Quais projetos você tem mais orgulho de ter feito?

Rael – Orgulho de ter feito, cara, pô… cada um é um com um sentimento ímpar, mas uma coisa que tive muito orgulho de ter feito foi ter colocado música na parede, que na época foi uma coisa que ninguém tinha feito ainda, acho que fui o único preto do mundo que colocou música na parede.

Foi um lançamento que fiz do disco Diversificando, que a gente criou um dispositivo, que a gente colocava dentro da parede e deixava só a saída do fone, quando as pessoas colocavam o fone, aí começava a ouvir o disco. Aí coloquei alguns pontos de São Paulo, coloquei no Rio de Janeiro, enfim, foi algo que foi pra um lado de tecnologia, de avanço do turismo. Mas tenho orgulho de músicas que fiz, né, como Envolvidão, por exemplo, que o meu parceiro Nave, produtor. Agora eu e ele, inclusive, estamos em estúdio pra fazer um… a gente fez Envolvidão, mas a gente nunca parou pra fazer um disco, agora a gente está em estúdio pra fazer um trabalho novo pra lançar no primeiro semestre de 2024. Enfim, é várias conquistas na verdade, né, irmão? Que a gente vai sentindo uma coisa, “olha, avancei aqui, avancei ali”, vou tendo orgulho.

André Menezes – Qual legado você quer deixar?

Rael – Acho que além de música de mensagem, eu acho que eu tenho deixado um registro meu, né? Uma marca dentro do cenário do Hip Hop, um legado de melodias, ser o cara de melodias, o cara que fala de amor, os MCs, os outros grupos de rap me chamam muito pra isso. Além das músicas de mensagem também. Eu acho que vou deixar o legado de ser um artista da música preta brasileira que contribuiu musicalmente falando, e com ideologias de impulsionar, de colocar as pessoas pra frente, de contextualizar também, de bater de frente contra essas questões raciais, sociais. Acho que esse é o legado que quando alguém for falar de mim, postumamente falando, vai dizer coisas desse tipo, sabe? De contribuir, de ter contribuído com a música, assim, nesse momento que a gente vive, que é tudo tão música líquida, tudo tão rápido. Eu tô fazendo isso há 24 anos e o que a gente faz ainda tem relevância, então eu acho que é por causa dessa contribuição, por causa dessa verdade também que existe no que a gente tá fazendo, sacou?

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