Aline Torres (Secretária de Cultura de SP)

Aline Torres assumiu em agosto de 2021 a Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, já fazendo história, ao ser a primeira mulher negra a ocupar o cargo. Formada em Relações Públicas e pós-graduada em Gestão Cultural pela USP (Universidade de São Paulo), possui amplo currículo na área de administração pública e cultura.

Na coluna de hoje, Aline avalia sua trajetória como Secretária Municipal de Cultura: a motivação em gerar impacto nas futuras gerações, a paixão pelo carnaval e a importância de descentralizar a produção cultural, incluindo as periferias nos roteiros culturais da cidade de São Paulo.

André Menezes – Como é ser a primeira mulher negra a ocupar a liderança da Secretaria de Cultura de uma cidade que é polo cultural da América Latina e do restante do mundo?

Aline Torres – Poxa, é uma missão, sabe? Eu acho que, na real, todos os primeiros a ocuparem uma posição, um lugar, uma missão, tiveram muitas dificuldades. E, naturalmente, eu tenho muitas dificuldades aqui, não só pelas ações do dia a dia: de conseguir fazer o meu trabalho, de executar orçamento público, de pensar políticas públicas, de ser uma líder – porque aqui eu tenho um “guarda-chuva” de mil e cem pessoas embaixo da minha asa. Uma responsabilidade gigante! É uma folha de RH grande. Mas, o principal, são os 12 milhões de habitantes que existem na cidade de São Paulo e que são os reais pagadores dessa minha folha de pagamento. E não necessariamente, nós devemos prestar contas a essas pessoas, mas trabalhar para essa sociedade. Então, a função em si já tem um sobrepeso muito grande, porque ser secretária municipal é uma função, de fato, árdua, pois ela tem dia e hora para acabar – e ela teve dia e hora para começar.

Sou diferente dos outros que já ocuparam esse lugar.

Gosto muito de colocar que vivemos numa capitania hereditária há muitos e muitos anos, pois são as mesmas pessoas, as mesmas famílias, os mesmos primos, os mesmos netos, bisnetos que ocupam determinados cargos – o ciclo se repete de uma maneira muito doentia, e ninguém vê, ninguém presta atenção nisso. Então, quando tem uma pessoa como eu ocupando este lugar, que não tem determinado sobrenome, nem tipo sanguíneo, nem relação com um ciclo anterior, é uma quebra de chave que ninguém consegue entender. – Ué, como foi que ela conseguiu quebrar esse ciclo mesmo? Como foi que ela conseguiu ultrapassar a ponte? E não é acordar cedo todos os dias e ser a melhor. Tem vários fatores aí no meio, para que isso possa acontecer. Não é somente ser uma boa gestora pública e trabalhar duro, tem uma conjuntura de ações que fizeram com que eu conseguisse alcançar este lugar, e espero que os orixás continuem me ajudando para que eu possa alcançar outros ainda mais altos.

André Menezes – Isso é verdade, quando nós entramos no mercado de trabalho, conseguimos essa diferença e somos colocados em dúvida o tempo inteiro por causa da nossa cor.

Aline Torres – E não só colocados em dúvida, as dificuldades biológicas e de acesso que eu tenho são diferentes dos que já ocuparam este lugar. Porque assim, – a galera – eles têm o mesmo helicóptero, a mesma casa na praia. Então o juiz, o procurador, eles se resolvem. Eu não faço parte deste ciclo. Dessa forma, para que eu não vá presa por qualquer besteira que diga, por má interpretação política ou por qualquer outra coisa que acontecer, a minha dedicação é me esforçar, três vezes mais. E é um ciclo mesmo, e como eu não faço parte, já é muito mais difícil, porque os meus amigos de infância no máximo foram presos, a outra metade morreu e os outros que sobraram conseguiram trabalhar e fazer o corre do dia a dia. Não tem absolutamente ninguém do meu ciclo de amizade de juventude e infância, que hoje, não sejam assalariados ou quiçá esteja desempregado, ou esteja preso. O meu ciclo tem outra característica, tem outra cara e outro DNA. E isso faz toda diferença! Porque este ciclo é que faz com que eles continuem onde estão por toda uma vida. Existe um coperativismo muito forte entre eles.

André Menezes – Eles acabam se protegendo e perpetuando a branquitude sempre no poder.

É e, além disso, estamos num momento geracional muito ruim. Tem um estudo da UNESCO que diz que gerações fortes constroem gerações fracas. Faz muito sentido se nós analisarmos a nossa sociedade contemporânea. Porque veja bem: a galera que brigou pelas Diretas Já construiu uma geração que não brigou por nada. Tem outra geração que brigou por conta dos R$5,00 na passagem – Ah, o gigante acordou! – , que não é lá bem uma grande briga assim, pois foi o que gerou o que entendemos hoje como polarização política caótica do “nós contra eles e eles contra nós”. Por conta disso, infelizmente, estamos vendo uma sociedade extremamente rasa, imediatista, que lê só a capa do livro, que não se aprofunda para poder entender a diferença de um para outro e de como realmente é possível seguir na luta. Sankofa nunca fez tanto sentido na vida quando está fazendo agora.

André Menezes – A cultura e outros setores precisam abrir espaço para mais profissionais negros. No seu atual cargo, como é possível contribuir com essa luta?

Aline Torres – Olha, nós temos um networking próximo. Eu trabalho com o meu ciclo e cada um trabalha com o seu. Mas tem um lugar muito delicado para se tocar que é: eu sempre tive bom relacionamento com empresários e, obviamente, como secretária de cultura, eu tenho uma entrada maior em várias outras esferas da sociedade. E aí eu vejo alguns amigos, algumas empresas falando: “poxa, não tem uma diversidade aqui”. E não é sobre cotas, é uma diversidade de estrutura de planejamento. Quando você tem uma equipe diversa – e, não só pensando numa cota para dizer que tem “x” funcionários negros, LGBTs e mulheres-; estou falando de uma equipe diversa, que está empenhada no mesmo andar de trabalho. Você acaba fazendo, no meu caso, políticas públicas mais diversas. A gente pensa em sociedade e leva para dentro do empresariado, nos lugares mais corporativos, fazendo ações de publicidade, marketing, mercadológica, independentemente da área, também mais diversa, porque aí conseguimos pensar: ah, tem uma pessoa gorda trabalhando, que não consegue comprar uma roupa tamanho 44; então vamos começar a pensar nas vestimentas dessa funcionária, propondo roupas tão legais como as pessoas de manequim 38. É essa a grande pegada.

André Menezes – E tem uma questão também de onde a pessoa vem. Pois os gestores terão um olhar diferente, uma análise, uma interpretação diferente.

Aline Torres – É isso: sempre vai nos tocar de um jeito diferente. E aí, como eu contribuo com isso? Lutando por mais diversidade. Desde quando cheguei aqui no time, nós estamos focando nessa pauta da descentralização, que é levar cultura para a periferia de modo real e visível todos os dias! E não só uma vez por mês ou somente na Consciência Negra. É sobre fazer todos os dias do mês, todos os meses do ano e estamos realmente fazendo a diferença. E aí, quando cheguei aqui e tinha um determinado time de coordenadores, mudei um pouco para que eu pudesse ter pessoas alinhadas ao meu pensamento, para que quando eu virasse e falasse: “gente, nós precisamos fazer agora a virada cultural de Parelheiros”, e a alguém olhar na minha cara e dizer: “ah, mas não tem ninguém em Parelheiros. Quem vai lá?”. A gente vai lá! Vai lá e ver as pessoas que estão lá! Ouvir as pessoas que estão lá! Então é isso: para eu mudar um pouco este time, eu tenho que ser um pouco mais diversa.

André Menezes – Desburocratizar os editais é uma forma de horizontalizar os acessos. Quais projetos você tem neste sentido, para que a periferia também possa ocupar os equipamentos culturais da Prefeitura de São Paulo?

Aline Torres – Massa! A descentralização foi a nossa primeira grande meta aqui quando chegamos e é neste lugar: de entender que grande parte do recurso ia para os equipamentos do centro da cidade e, aí, não chegava, direito, na ponta. Isso inclui: estrutura, contratação artística, reforma, zeladoria – em tudo. Então começamos a inverter um pouco a balança e começar a levar essa programação e esse recurso mais para a periferia. Mas nós temos um processo burocrático. Como eu contrato um artista muito da ponta, ele nunca parou para fazer um release – seu próprio release- , não tem dinheiro para pagar um produtor, porque ele nem trabalha 24h como artista. De repente, ele é professor e somente nos finais de semana que canta e não consegue sobreviver somente da arte e da cultura. Ou, ele nem está trabalhando como artista, ainda está tentando. Dessa forma, neste ano, estamos no lugar da formação, de fazer parceria de formação com estes artistas periféricos. E a lógica, é fazer com que este artista hoje consiga entrar no VAI, que é um edital com um valor menor, cuja linguagem é mais fácil de entender. Mas que esse artista tenha uma atenção, que ele termine participando do PROMAC – uma lei de incentivo fiscal mais robusta. E do PROMAC, ele possa acessar a Lei Rouanet, que é uma lei mais robusta ainda, de entendimento jurídico, e ele seja seu produtor também. Dessa maneira, conseguimos aumentar essa cadeia econômica produtiva de cultura, na periferia.

André Menezes – Como a cultura pode contribuir com a retomada econômica, depois de um período tão difícil, devido à pandemia?

Aline Torres – Na pandemia, a cultura foi o primeiro setor que realmente parou, foi bem difícil. Todo mundo ficou dentro de casa e, ao mesmo tempo que ela foi a primeira a parar, foi a principal ferramenta para que não pudéssemos enlouquecer. Ou as pessoas se debruçaram em livros, ou debruçaram em lives, ou viraram videomakers. A cultura está neste lugar. Eu conheço várias pessoas que não cantavam e começaram a cantar dentro de casa para não enlouquecer. Começaram a gravar, fazer arte, pintar, isso é cultura. E ela também é este motor de evolução, neste momento de pós-pandemia. Nós lançamos um edital de múltiplas linguagens, que foi este reportado no pós-pandemia, e de ocupação dos espaços. O Itaú Cultural também lançou junto com a Ministra da Cultura, comigo e a Secretária de Estado, um material incrível, em que mostra que o setor da cultura tem um índice de empregabilidade maior que o setor de automobilismo. A Cultura está neste lugar. Além de colocar a cultura em dados, colocamos ela neste lugar de importância também: a cultura está fazendo com que as pessoas voltem a trabalhar.

André Menezes – Falando um pouco sobre suas paixões, como é a sua relação com o samba e o Carnaval?

Aline Torres – A minha madrinha – que agora está no céu, há pouco tempo –, ela foi uma pessoa super importante na minha trajetória. A minha madrinha me ensinou a dançar samba rock com a porta. Ela era passista da Mocidade Alegre, numa época em que as passistas bordavam real em casa, não ia para atelier fazer roupas, aquela coisa toda! E eu vivi muito no meio das lantejoulas dela, além dela cozinhar maravilhosamente bem. Minha madrinha tinha um dom.

Quando eu abria a geladeira e falava “ai, não tem nada para comer”. Ela logo retrucava: “Ah, é?! Não tem nada? Peraí”. A geladeira podia estar vazia, mas ela fazia um banquete! Uma coisa que é muito nossa isso. Porque é isso, nós fazemos feijoada com resto de comida. Então, nós aprendemos com a nossa ancestralidade, a fazer do pouco, muito! E ela me ensinou isso: do pouco, dá para fazer muito! Eu tenho dois primos, o Douglas e o Diogo, e os dois foram repique de ouro no Camisa Verde, e os dois são apaixonados pela escola muito por causa dela. Então nós viemos deste berço. O pavilhão é um amor incondicional, de graça! Você se doa, você gasta dinheiro, tempo, chora com a escola passando – é um sentimento inexplicável! Mas é tudo tão bonito! Eu sou muito apaixonada pelo carnaval e Escola de Samba, justamente por causa deste amor, que nós vemos que as pessoas têm, porque é a produção de um ano, é uma produção gratuita das pessoas, mas o significado é o momento de glória delas. Eu gosto muito de dizer que é o momento em que, na avenida, a dona Maria vira rainha e o seu João vira rei.

André Menezes – Para finalizar, como a Aline se sente hoje? Deu para fazer tudo ou ainda há muito o que se fazer, como Secretária de Cultura? Qual legado você quer deixar?

Aline Torres – Se eu já fiz tudo? Ainda, não. Tem algumas metas que quero colocar em prática nesta gestão. Metas administrativas, entregas reais para a cidade. Essa questão da formação, eu quero vê-la até o ano que vem, dando resultados. Então, nós vamos levantar isso e trabalhar, diretamente na ponta, a desburocratização, que na administração é algo extremamente complexo. Mas a meta principal, administrativa, do que realmente falta para fazer, é deixar a casa organizada com base em leis, para que o próximo que sente aqui não diga “Ah, não quero”, “Ah, mas dessa forma é melhor”. Tudo que nós estamos fazendo hoje é olhando para frente. Nós não vamos necessariamente colher agora. E tudo bem.

Essa é uma coisa que muitas pessoas não entendem, porque ser secretária não é somente sobre fazer um evento, um show numa praça. Precisamos pensar em estratégias a longo prazo, que durem muitos anos.

Assim como Mário de Andrade, há mais de cem anos abriu uma carta no Theatro Municipal, com Oswald de Andrade e outras grandes personalidades, sobre o grande ordenamento da cultura no Brasil, daqui há uns anos, as ações que estamos fazendo hoje, terão impacto real nas futuras gerações. O que eu faço não é para colher agora, mas meu filho e meus netos, tenho certeza que vão colher. Agora qual o legado que eu quero deixar? É difícil responder, pois legado é uma palavra difícil. Mas o que mais me impacta aqui, todos os dias, literalmente todos os dias, – eu não gosto de usar essa palavra porque ela virou banal – é, a incrível, falta de representatividade. Eu recebo mensagens de pessoas dizendo “nossa, eu estou espantada!”. E eu pergunto: “mas por quê?”. E a pessoa responde: “eu não sabia que (podia) ter uma mulher negra como Secretária de Cultura. Você é responsável por 700 milhões de reais no seu CPF?”. – É, eu sou! Sou responsável por 700 milhões de reais no meu CPF. Então, o maior legado que eu vou deixar é o de inspiração: de ser reflexo, de representatividade real. E não apenas midiática, para compor uma narrativa.

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