O divórcio quase consensual do Presidente da República e seu Ministro da Justiça foi o assunto mais importante no país com a maior taxa de contágio de coronavírus do mundo, em meio a um colapso de cemitérios. Não é surreal? Moro queria distância do governo que nega a pandemia, evidências científicas e falsifica com subnotificações a tragédia da COVID-19. Bolsonaro, por sua vez, precisa blindar a Polícia Federal para que esse Departamento não o investigue, nem sua família e seus aliados. Blindar os últimos faz-se necessário para obter apoio do Centrão e garantir número suficiente de deputados para impedir a instauração do processo de impeachment: tratam-se de movimentos de quem está na corda bamba.

Conhecendo as intenções do presidente, será muito difícil que experientes delegados da PF aceitem ordens ilegais, ainda mais depois da fracassada tentativa de emplacar um novato na classe especial de delegados, com apenas 15 anos de Departamento, como é o caso do ex-quase-futuro-chefe da Polícia Federal. O Ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, em medida liminar, baseado na fumaça do bom direito e no perigo da demora, por indícios de desvio de finalidade, decidiu provisoriamente suspender a nomeação de Alexandre Ramagem para o cargo de chefe da Polícia Federal.

Bolsonaro trata a Polícia Federal como se estivéssemos no tempo da ditadura, quando o Departamento era chefiado por militares. Após a Constituição Federal de 1988, vieram leis que reestruturaram a PF, nos governos Fernando Henrique e, principalmente, nos de Lula e Dilma. Hoje, todos os policiais são concursados e possuem nível superior, muito diferente daquela época, quando até a gasolina de suas viaturas era bancada pela CIA (Central Intelligence Agency).

Os delegados vão aceitar fazer relatórios dos inquéritos que presidem para seus chefes? Vão interromper investigações contra parlamentares que agora fazem parte da base do governo? A PF não é um gabinete do governo Bolsonaro, nem um serviço de inteligência da Presidência da República e a imensa maioria dos policiais tem um nome a zelar. A PF não trabalha para governos, tem uma natureza jurídica e policial, presta contas à sociedade, pois exerce uma função essencial e exclusiva de Estado.

O Ministério Público Federal também representa a sociedade e, ao obter a prova material de um crime e suficientes indícios de autoria contra o Presidente da República, mesmo na dúvida, deve denunciá-lo, baseado no princípio in dubio pro societate. Até quando a Procuradoria-Geral da República será tratada como a “rainha do xadrez”? Afinal, foi com essas palavras que, com ar de esperteza, na frente do Palácio da Alvorada, Bolsonaro a ela se referiu. Tecnicamente, se o Procurador-Geral da República não apresentar “Denúncia” contra Bolsonaro por crime comum, o Supremo Tribunal Federal não poderá processar e julgar o Presidente da República.

Mas o projeto de Moro, que virou a Lei nº 13964/2019, sancionada por Bolsonaro, modificou o artigo 28 do Código de Processo Penal. Em caso de pedido de arquivamento, o inquérito nº 8802, instaurado pelo Ministro Celso de Mello, a pedido do Procurador-Geral da República, deve ser encaminhado a uma instância de revisão ministerial para fins de homologação, como manda o citado artigo 28 do CPP. Essa instância pode ser o Conselho Nacional do Ministério Público ou o Conselho Superior do Ministério Público, ambos com muitos membros que podem discordar do arquivamento. O artigo 51 da Lei Complementar nº 75 estabelece que cabe ao Conselho Superior do Ministério Público designar um Subprocurador-Geral da República até para denunciar por crime comum o Procurador-Geral da República. E mais, segundo o artigo 5º, inciso I, do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, compete ao Plenário do STF apreciar pedidos de arquivamento por atipicidade de conduta contra o Presidente da República. Levantei essas questões em três Agravos Regimentais contra os arquivamentos das notícias-crime 8740, 8749 e 8755 pelo Ministro Marco Aurélio de Mello, que protocolei contra o presidente Bolsonaro.

Portanto, os inquéritos na Polícia Federal contra aliados, familiares e o próprio Bolsonaro não devem parar, o que trará graves problemas ao Presidente da República. O Procurador-Geral da República, supostamente a “rainha do xadrez”, não tem poder de arquivar inquérito sem a homologação de seus pares ou instância mais ampla, inclusive integrada pela OAB, como é o caso do Conselho Nacional do Ministério Público.

Por fim, apresento mais uma curiosidade: o ex-quase-futuro- chefe da Polícia Federal, que voltou a comandar a Agência Brasileira de Inteligência (ABIN), havia dirigido a segurança do então candidato a Presidente do Brasil. Ocupando esses lugares, como ele não sabia que o vizinho de Bolsonaro era traficante de armas, tem patrimônio incompatível com sua renda e matou Marielle Franco?

Bolsonaro declarou que, no seu tabuleiro de xadrez, os demais ministros seriam peões, sendo que Moro, a torre, e Guedes, o cavalo. Vamos supor que os bispos sejam a Polícia Federal, situada ao lado do “autoproclamado rei” e da rainha, que é a PGR. Nesse jogo, os peões são capturados “en passant”, os bispos estão longe do rei, o cavalo pode ser trocado e a rainha está desprotegida, no meio tabuleiro. Encurralado no fundo por uma barreira formada por seus próprios peões, sem a proteção da torre, que caiu num roque mal dado, o rei está prestes a tomar um xeque-mate. Ao que parece, Bolsonaro não sabe jogar xadrez!

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