Por Lígia Ziggiotti e Rafael Kirchhoff

A madrugada de 28 de junho de 1969 foi paradigmática para a vivência queer nova-iorquina. Em mais um ataque violento da polícia a um bar frequentado por bichas, travas e sapas, uma verdadeira batalha fez deste mês e especificamente deste dia um marco internacional de celebração do orgulho LGBTI. 

Trans e negra, Marsha P. Johnson marcou as narrativas do duelo. Sob o legítimo protesto de embranquecimento da história, sempre reivindicou ter feito o primeiro arremesso de copos de vidro contra as viaturas que perseguiam os corpos desviantes. À época, a lei – nem sempre ao lado da justiça – impunha até um número mínimo de roupas adequadas ao gênero de quem as vestia. 

A cor da sua pele e a sua identidade de gênero a impediram até mesmo de entrar no espaço da exposição de Andy Warhol, Ladies and gentlemen, na qual foi retratada. Em julho de 1992, ancorado no Rio Hudson e sem vida, o corpo de Marsha P. Johnson caracterizaria outro daqueles tantos que não mobilizam explicação convincente das autoridades quando desaparecem, tampouco comoção relevante da maior parte da população quando morrem.

E o que Stonewall oferecia de especial? A possibilidade de viver, ainda que apenas por algumas horas, em consonância com o próprio desejo, conforme lembrou Mark Segal, um dos frequentadores do bar, à revista The New York Times. O preço de um desejo realizado, de fato, não é igualitariamente tributado. Para homens brancos, heterossexuais e cisgênero, sai bem mais barato. 

Ativistas feministas há muito denunciam a desigual distribuição da liberdade entre homens e mulheres. Liberdade de ocupar espaços, de circular em horários sem mácula moral, de autonomia sobre o próprio corpo. Stonewall permitiu o início de uma narrativa e de uma performance política para reação, denúncia e reivindicação de liberdade por quem vive segundo normas de gênero e de sexualidade à margem das hegemônicas.

Também é das feministas a denúncia sobre a cultura de estupro e a objetificação sexual precoce de meninas. O Brasil figura como líder em ranking de países que mais consomem pornografia com pessoas trans no mundo, e, igualmente, encabeça a lista dos que mais as assassinam. Qualquer busca virtual por sítios eletrônicos envolvendo o termo “lésbica” direciona para um amontado de opções estereotipadas de erotização destas experiências. 

Como se vê, o maestro do fluxo compartilhado de um só tipo de desejo obedece a uma norma totalitária – que é machista e LGBTIfóbica. Nesta orquestra fúnebre, os ruídos causados pelos corpos desviantes promovem um necessário curto-circuito para abrir espaço a desejos outros. Prazer feminino, relações não-monogâmicas, casamentos entre pessoas do mesmo sexo, documentos acordes à identidade de gênero autodeterminada são pautas crescentes em grupos críticos aos padrões engessados para gênero. 

De fato, desde Stonewall, lá e cá, muito mudou e muito permaneceu. 

Tome-se o lado debaixo do Equador como exemplo. O final dos anos 60, pano de fundo para aquele cenário ao Norte, segue entre nós mais aceso do que nunca em pleno século XXI. A ditadura militar de ontem se projeta, hoje, em um governo que a ela acena desde a campanha eleitoral. Prova cabal de que a humanidade não estampa só processos de evolução civilizatória, a atual e atrapalhada trupe da Presidência da República Brasileira encampa a guerra dos costumes como central para avançar em um amplo projeto de destruição de conquistas de direitos.

Quanto aos ataques às conquistas em gênero e sexualidade, o espetáculo de uma masculinidade ressentida, ilustrado por flexões pouco técnicas e por discursos oficiais de combate a golden shower, seria cômico se não fosse trágico. Projeta-se em um poderoso acervo de imagens e de palavras que fixa, junto ao imaginário majoritário, um estereótipo negativo destas vivências. Porém, ainda que com o custo do preconceito, temperado com o orgulho de se aproximar do próprio desejo, elas têm rejeitado um armário que não lhes serve. 

Por vencer a narrativa através desta estratégia de criação de pânico moral em relação à população homossexual, transexual e às feministas, o bolsonarismo também se mobiliza, com notável apoio, através de legislações e de políticas públicas. Mais de 50 mil mortes em uma pandemia constitui realidade em excesso para um contexto terra-planista. À frente estão riscos inexistentes e causas vazias, como as iniciativas contra a ideologia de gênero e a favor da abstinência sexual da juventude. 

Portanto, de passagem nesta nossa catastrófica tragédia sanitária, econômica e social, a data de 28 junho de 2020 atesta uma verdadeira ressaca da revolução afetiva, só menos amarga pela imposição de seguidas derrotas judiciais ao moralismo oportunista deste ano. Prevalece, ainda assim, o gosto de uma quarta-feira de cinzas por conta da aparente falta de perspectivas atribuída à maior crise dos últimos anos do país.

Manifestações como as iniciadas em Stonewall e consolidadas com paradas e marchas do orgulho mundo afora, tomadas por festa, luta e interação social, tornaram-se, hoje, impensáveis. O acesso seguro às ruas com que sonham historicamente os movimentos feministas e LGBTI não mais se reivindica sem fortes contradição e contraindicação impostas pelo coronavírus. O combate ao moralismo sexual agora atrita com a regra de se restringir qualquer encontro para além da esfera doméstica. O Reino Unido, por exemplo, durante a pandemia, tornou ilegal o sexo praticado entre pessoas que não dividem o mesmo teto. Em outro âmbito, para os coletivos e organizações sociais, a ausência da partilha física dos espaços tem significado uma exaustiva reinvenção de estratégias, uma incerta avaliação de custos e benefícios dos protestos tradicionais, e, ainda, uma intensa sensação de impotência frente a números, notícias e perspectivas incapazes de inspirar otimismo. 

Por outro lado, dentro da própria trajetória de questionamentos ao padrão hegemônico de se vivenciar o gênero, é possível lembrar de nossa radicalidade como constitutiva de nossos corpos. A mesma Nova York de Marsha P. Johnson testemunhava, entre as décadas de 80 e 90, uma borbulhante cultura queer periférica. Registrada pelo documentário “Paris is Burning”, a cena fez incorporados significantes importantes, e até hoje acionados para inspirar resistência, como a experiência das haus – casas lideradas por “pais” ou “mães” do movimento LGBTI onde se recebiam pessoas que haviam sido expulsas de seus lares de origem. A parceria destes coletivos significava melhor atendimento às necessidades afetivas e econômicas de cada uma das que eram feitas refugiadas pelo pensamento e pelas práticas dominantes.

Realidade também conhecida no contexto nacional, ainda que sem um signo de mesma abrangência como o norte-americano, a vida comunitária pós-pandemia pode ser uma promessa encampada por quem rechaça a vivência hegemônica de gênero em sociedade. 

Alternativa ao padrão burguês de família nuclear, provavelmente mais simpática à distribuição coletiva de cuidados de grupos vulnerados, e com potencial para o questionamento de estruturas fundantes de tantas relações afetivas, a vida comunitária pode inaugurar uma nova normalidade de oposição, e não de exacerbação, de um modelo heteropatriarcal e capitalista-selvagem que, ao fim e ao cabo, responsabiliza-se pelo cenário desértico em que se comemora, remotamente, o orgulho LGBTI em junho de 2020. A quem após este texto não conseguir celebrar por compreensível pessimismo, enfim, não custa lembrar do dito popular de que, às vezes, para se curar uma ressaca, nada melhor que um novo porre. 

Lígia Ziggiotti é doutora em Direitos Humanos e mestra em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná, professora de Direito Civil da Universidade Positivo e vice-presidente da Associação Nacional de Juristas pelos Direitos Humanos LGBTI – ANAJUDH (@anajudh_lgbti).

Rafael Kirchhoff é advogado, militante de direitos humanos e presidente da ANAJUDH (@anajudh_lgbti).

 

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