Vereadora Erika Hilton, de São Paulo. Foto: Midia NINJA.

Por Lígia Ziggiotti e Rafael Kirchhoff

Francisco Mallmann, dramaturgo e performer que invoca uma América marica, escreveu assim em um fino tecido de voal: “DEVOLVER A ELES ESSE GRANDE SUSTO”. Em 2018, as eleições significaram, para nós, um marco da queda livre institucional. As retrospectivas de 2020 parecem hipérbole deste biênio sem futuro. Um grande susto que não acaba. E devolvê-lo a eles foi promessa para um ano em que a esperança se tornou artigo ainda mais raro.

Em outubro de 2020, as eleições municipais energizaram certa potência de mobilização mesmo em tempos de pandemia. A Associação Nacional de Juristas pelos Direitos Humanos LGBTI (ANAJUDH-LGBTI) tentou radiografar, com a participação do antropólogo João Frederico Rickli e do designer Tiago Galvão, as tendências de candidaturas às prefeituras das capitais brasileiras em relação às temáticas mais relevantes para a diversidade sexual através do que resolvemos chamar de Termômetro das Eleições 2020. Medir a temperatura dos discursos contrários e favoráveis às nossas pautas parecia uma prevenção importante a mais vitórias de representantes do machismo e da LGBTIfobia.

Atendendo às solicitações por e-mail e redes sociais oficiais, 170 candidatas(os) acessaram o nosso formulário de perguntas para expressar o que pensam sobre temas caros à pauta LGBTI. Deste total 119 iniciaram o procedimento. Significa que abriam o formulário, o que permitia avançar para a próxima pergunta após responder a anterior. Apenas 34 finalizaram a pesquisa e nos permitiram conhecer, de fato, o que pensam sobre direitos e liberdades fundamentais, educação, saúde e acesso ao mercado de trabalho para esta parcela da população.

O resultado, ainda disponível em nossa página oficial, atesta que a maior parte das respostas completadas acena positivamente ao que queríamos como realidade. Houve quem perdesse um ou dois pontos de crédito em pautas mais tensas como criminalização da LGBTIfobia. E recebemos mesmo um acervo de respostas avessas a todos os direitos que elencamos como necessários por um único candidato, contrárias até mesmo àqueles menos polêmicos, como o de constituir família matrimonial.

Conduzido ao segundo turno, e, à ocasião, cobrado por lideranças locais, o candidato que supostamente rejeitou as pautas em nosso formulário contestou, através de assessoria, o resultado do Termômetro das Eleições 2020 solicitando que o seu nome fosse retirado da pesquisa. Atendemos o pedido. Ele, porém, não atendeu o nosso sobre o posicionamento que teria em relação àqueles temas. Filiado ao Republicanos, partido que abriga dois dos três filhos de Jair Messias Bolsonaro, venceu em segundo turno a corrida eleitoral de sua capital.

O Presidente da República, contudo, foi considerado em análises políticas recorrentes como derrotado nas últimas urnas municipais. Nomes importantes do bolsonarismo, como Capitão Wagner (PROS), em Fortaleza, e Delegado Eguchi (Patriota), em Belém do Pará, não avançaram para a posse. Isso não significou um atestado de vitória para o campo progressista, como também observam os noticiários mais críticos, em termos de alcance do Poder Executivo. Mas em algumas Câmaras Municipais, algum susto começa a ser devolvido.

Parlamentar mais votada do país em 2020, Erika Hilton (PSOL), negra, jovem e periférica, é a primeira vereadora trans a ocupar este cargo em São Paulo. Em entrevista ao El País, ela torceu para que “cada vez mais corpos pobres, negros, transviados e favelados cheguem aqui, para que este lugar tenha a cara do povo”, porque “o povo não é essa minoria branca, rica, cisgênero e heterossexual”. A América, afinal de contas, é marica, feminina, indígena e africana.

Com o apoio de Gisele Alessandra Schmidt e Silva, advogada e travesti que protagonizou importante conquista judicial para a população trans em 2017, a ANAJUDH-LGBTI conversou com a parlamentar para celebrar o dia nacional da visibilidade trans – 29 de janeiro.

Erika Hilton relatou que a corrida eleitoral do último ano não foi exatamente uma novidade para ela, porque em 2018 já havia sentido os efeitos deste processo ao participar de mandato coletivo, e mesmo em 2016, ao ter a sua candidatura impugnada para o cargo de vereadora de Itu, município do mesmo estado.

A propósito, em 2018, como participante da bancada ativista do PSOL junto à Assembleia Legislativa de São Paulo, ela sentiu “uma falta de compreensão das pessoas que compõem aquele mandato da seriedade, da urgência e da gravidade do debate racial, do debate de gênero e do debate de classe”.

Para a vereadora, em tal experiência, espremeram-se as suas pautas, e os ataques que frequentemente sofreu por ser “um corpo negro, um corpo de mulher, um corpo jovem, um corpo periférico LGBT” a encorajaram a assumir esta voz para uma disputa ainda mais efetiva de narrativas. Segundo Erika Hilton, “a chegada do meu corpo à esfera institucional é um escrachar das denúncias sobre onde estão as que vieram antes de mim e que tiveram as suas vidas ceifadas”. De fato, a expectativa de vida média para uma pessoa trans no país é de 35 anos, segundo a Associação Nacional de Transexuais e Travestis (ANTRA).

O processo de desumanização que Erika Hilton manifesta ter sofrido ao longo de sua trajetória é sentido por uma massa de pessoas que ela observa como crescentemente odiadas, especialmente, em um contexto bolsonarista e de agravamento de políticas neoliberais. Neste sentido, “chego para demarcar as nossas existências e alçar os nossos direitos, embasada coletivamente, a partir das nossas próprias historias”.

Dentre os projetos com que tem sonhado, a parlamentar pretende ampliar o Transcidadania, iniciativa presente em São Paulo desde 2015. Além disso, “o processo de retificação de nome e gênero em documentações de pessoas transgênero de forma gratuita e acessível em cartório” é citado pela vereadora como uma demanda central para esta população, carente de acesso aos direitos fundamentais básicos como “ao nome, à educação e à empregabilidade”.

Gisele Alessandra Schmidt, secretária adjunta da ANAJUDH-LGBTI, e primeira advogada trans a sustentar oralmente no Supremo Tribunal Federal, em 07 de junho de 2017. Nesta ocasião, a Corte decidiu pelo direito de pessoas trans mudarem nome e gênero em documentação oficial, sem necessidade de cirurgia ou de decisão judicial, e diretamente em cartórios.

Embora o mandato se destine à discussão de pautas que atinjam toda a população paulistana, a ativista percebe a necessidade de focar a sua atuação em favor daquelas pessoas “mais silenciadas, mais apagadas, mais vulneráveis e mais desumanizadas socialmente”.

Com efeito, Erika Hilton alega que espaços institucionais, universitários, de tomadas de decisão, e familiares têm limado as garantias da população trans, cujas vidas são constantemente invalidadas. Ela própria enfrentou realidades de rompimento e de reaproximação de núcleos familiares, interrompeu e retomou processos de formação estudantil, e, em dado momento, deparou-se com a prostituição como única forma de sobrevivência nas ruas. Por isso, considera que “cumpre um importante papel na concretização desses direitos em torno da dignidade humana, consideradas as pessoas negras, as mulheres, as pessoas LGBTQIA+, a juventude”.

De acordo com levantamento feito pela Aliança Nacional LGBTI+ e pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), pelo menos 88 representantes da comunidade LGBTI foram eleitas(os) para a vereança em suas cidades. Portanto, há destaque a outros nomes para além do eixo paulistano, como a travesti e professora Duda Salabert (PDT), liderança vitoriosa em Belo Horizonte.

É inegável a tensão produzida em estruturas gestadas pelo machismo, pela heterossexualidade compulsória e pela cisgeneridade quando vivências que se queriam aniquiladas as ocupam. 29 de janeiro de 2021 atesta a reivindicação de visibilidade à letra que representa subjetividades proibidas no imaginário cis-binário. Que o tom do ano seja dado pela conquista daquelas que lançaram o próprio corpo contra a opressão institucional é bom sinal. Como nos declarou a primeira vereadora trans eleita em São Paulo, experiências como a dela em espaços de poder carregam, ao mesmo tempo, denúncia e proposição. E a despeito de 2020 ter encarecido a esperança, houve, enfim, historias como a de Erika Hilton para renová-la.

Lígia Ziggiotti é doutora em Direitos Humanos e mestra em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná, professora de Direito Civil da Universidade Positivo e vice-presidente da Associação Nacional de Juristas pelos Direitos Humanos LGBTI – ANAJUDH (@anajudh_lgbti).

Rafael Kirchhoff é advogado, militante de direitos humanos, mestrando em Direitos Humanos e Democracia pela UFPR e presidente da ANAJUDH (@anajudh_lgbti).

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