Concentrações de gases de efeito estufa batendo recordes, uma lacuna gigante entre o corte necessário nas emissões e as promessas dos países. Diante de quadro tão grave, todos os países se dispuseram a contribuir com NDCs mais ambiciosas, com metas mais ousadas de redução das emissões, certo? Hmmm… não! Houve países que conseguiram a proeza de apresentar NDCs iguais ou piores às que apresentado antes! O artigo de hoje vai focar sobre o triste comportamento de um certo país que chegou à COP26 ultrapassando todos os limites da palavra “vexame”.

Desacoplamento às avessas

Existe uma fortíssima correlação entre crescimento econômico e emissões de carbono (uma expansão da economia em geral implica maior consumo de energia, o que leva ao uso de mais combustíveis fósseis). Economistas e políticos de diferentes matizes ideológicos sonham há anos com a quebra dessa correlação, o chamado “desacoplamento”.

No auge dos impactos da pandemia de Covid-19, o mundo permaneceu “acoplado”, com queda no PIB global de 3,1% acompanhada de queda nas emissões em 6,4%.

Já o Brasil inventou o desacoplamento às avessas: com a economia em frangalhos em função não apenas da pandemia, mas também de uma gestão calamitosa da crise sanitária e de uma política econômica não menos desastrosa, viu seu PIB despencar 4,1% em 2020, ao mesmo tempo em que as emissões de gases de efeito estufa subiram impressionantes 9,5%.

Os dados, anunciados pelo SEEG anunciados há poucos dias, não deixam dúvidas do tamanho do desastre. Foram 2,16 bilhões de toneladas de CO₂-equivalente contra 1,97 bilhões em 2020. Esse aumento se dá basicamente pelo aumento do desmatamento, com a queda nas emissões do setor de energia tendo sido basicamente canceladas pelo ligeiro aumento das emissões de metano e óxido nitroso da agropecuária e das emissões de resíduos.

O resumo é que quase 3/4 das emissões brasileiras são, hoje, associadas ao agronegócio e que, com a terrível parceria entre o agro, um governo federal ecocida e um parlamento tenebroso, retornamos ao patamar de emissões de 2006, ou seja, retrocedemos 15 anos em dois.

Brasil é destaque no mapa da vergonha

Fácil identificar o Brasil no mapa da vergonha aí em cima, reproduzido a partir do Emissions Gap Report 2021 (o relatório sobre a lacuna de emissões)… Mas quando se avalia o impacto dessas mudanças nas NDCs nas emissões de 2030, a conclusão é que a famosa “pedalada climática” do Brasil produziu, disparadamente, o pior impacto entre todos os países do mundo. Não à toa, o (des)governo tem corrido, de forma atabalhoada, nos últimos dias, para encobrir ou diminuir o disparate.
Como amplamente divulgado, a “pedalada” brasileira se deu mantendo os percentuais de redução nas emissões, só que aplicado a um valor de base (total de emissões de 2005) que havia sido reavaliado para cima, de 2,1 bilhões para 2,8 bilhões de toneladas de CO₂-equivalente.
Daí, a aritmética da vergonha entrou em cena: mantendo o percentual de redução em 43% das emissões, só que aplicado a um valor de base 700 milhões de toneladas maior, o Brasil simplesmente autorizou a si mesmo a emitir 300 milhões de toneladas a mais, em 2030, do que o previsto no compromisso assumido em Paris, em 2015. Acontece que ninguém caiu na pegadinha, como bem mostrou o Emissions Gap Report.

A pegadinha continua

Depois de tamanho vexame, o governo brasileiro quis remendar, anunciando um suposto aumento na meta de redução de emissões de gases de efeito estufa. Algo para escocês ver. O problema, de novo, é que nenhum governo é capaz de burlar a aritmética, tampouco enganar a atmosfera com contabilidade criativa.
Ora, 50% aplicados ao patamar revisado de emissões de 2005 (2,8 bilhões de toneladas de CO₂-equivalente) significa continuar emitindo 1,4 bilhões em 2030. A promessa anterior, de cortar 43% de 2,1 bilhões de toneladas, nos deixaria com 1,2 bilhões. A meta “mais ambiciosa” nos deixa, portanto, acima dos valores com os quais o Brasil se comprometeu em Paris, em 2015
Ainda há uma série de dúvidas e incertezas relacionados à concretização dessa meta, tanto quanto ao método de cálculo quanto ao patamar de referência que poderia ser, no limite, escolhido arbitrariamente (pasmem!) pelo presidente da república. E aí, mesmo que houvesse qualquer réstia de sobriedade nessa patacoada, entra a questão da credibilidade…
 

Para reduzir emissões, é preciso dar um basta ao “governo” anticlima!

Ninguém em sã consciência é ingênuo ao ponto de achar que será respeitado qualquer compromisso climático por parte de um governo que incentivou o “Dia do Fogo” e desmonta cotidianamente o arcabouço protetivo do meio-ambiente em nosso país. Ninguém em sã consciência pode conceder um mísero centavo de crédito a promessas feitas por um governo que ataca povos indígenas, aliando-se a madeireiras, garimpo e, óbvio, ao agro (que, no espaço oficial da COP26, parecia algo completamente misturado ao próprio governo).

Ninguém com um mínimo de informação e boa fé pode esperar qualquer coisa de positivo de um governo que ataca ciência, monitoramento e fiscalização ambiental, tratando como inimigos órgãos do próprio Estado incluindo INPE, IBAMA, ICMBio e tantos outros.

Se na COP26 as fagulhas restantes de esperança permanecem acesas bem mais do lado de fora (com juventude e povos originários liderando as mobilizações) do que do lado de dentro (com a contaminação da maquiagem “verde”/greenwashing, do lobby corporativo e das promessas vazias de governos), no Brasil a verdade é ainda mais crua. Por estas bandas, o compromisso climático sério que se pode assumir terá de vir do povo e começa, evidentemente, por defenestrar Bolsonaro e sua gangue ecocida do poder o quanto antes.

Em tempo

O texto já estava pronto quando, ao contrário do que alguns poderiam pensar, o desgoverno brasileiro ampliou ainda mais o vexame!
Primeiro, merecidamente ganhou bis no antiprêmio “Fóssil do Dia”, uma indicação para os países que mais representam obstáculos aos avanços climáticos nas COPs. Se no dia 05/11 o Brasil já havia sido “premiado” pelo tratamento inaceitável que o “governo” havia dado aos representantes indígenas presentes na COP26, no dia 10/11, o “reconhecimento” do papel bizarro ora cumprido por nosso país ficou por conta da frase bizarra do ministro do 1/2 ambiente, Joaquim Leite, que associou as florestas à “pobreza”…
Segundo, após ter feito alarde em cima da tal “nova meta” de 50%, verificou-se que a carta-adendo, disponível no site da Convenção-Quadro das Nações Unidas para Mudança Climática (UNFCCC, da sigla em inglês), não faz menção nenhuma a essa promessa. Pelo contrário, apenas afirma de maneira genérica a possibilidade futura de um “objetivo mais ambicioso” num “momento apropriado”. Vergonha à décima potência, pois, em meio à Emergência Climática, o momento mais apropriado para metas ambiciosas de redução das emissões é hoje, já, agora.

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