“Infelizmente a vontade política coletiva não foi suficiente para superar algumas contradições profundas”. “Estamos batendo na porta da catástrofe climática e precisamos entrar em modo de emergência”. Estas foram palavras de ninguém menos que António Guterres, secretário-geral das Nações Unidas. Alok Sharma, presidente da COP26, visivelmente emocionado e constrangido, pediu desculpas “pela forma como o processo de desenrolou”, referindo-se especificamente às mudanças de última hora, que tornaram o texto do Pacto de Glasgow ainda mais frágil, justamente em dois pontos cruciais: as propostas de banimento do carvão e dos subsídios aos combustíveis fósseis.

Alok Sharma, presidente da COP26, teve de conter as lágrimas no anúncio do texto final da Conferência, com recuo em tópicos essenciais

“Pactuação” muito aquém do necessário

A poeira de Glasgow ainda vai baixar, mas o tom dado pela própria ONU, que teria o máximo interesse em destacar as potencialidades dos seus fóruns, é de decepção e frustração. O próprio Alok Sharma, ao afirmar que o objetivo de 1,5°C “ainda está vivo”, reconhece que “seu pulso, porém, está fraco”.

Não é que não houve avanços no documento que ficou conhecido como “Pacto de Glasgow”. Poderíamos falar da linguagem mais forte, dos compromissos sobre o metano, etc. Mas ao fim e ao cabo o fosso entre o reconhecimento da crise e da urgência e as ações propostas continua gritante, repetindo o grave problema do Acordo de Paris. O documento da COP26 é muito mais fraco do que o necessário.

O banimento do carvão, proposto numa versão anterior do documento, antes da trágica emenda final, não era algo tirado da cartola. É uma necessidade vital, apontada em virtualmente todo cenário compatível com o limite de 1,5°C de aquecimento global. “Por que só o carvão?” era a pergunta feita pelos representantes da Índia (dispostos a manter o modelo de crescimento econômico baseado em termelétricas movidas a esse combustível), mas a resposta, se pretendesse mesmo se contrapor ao cinismo jamais seria subsituir “phase-out” (eliminação) por “phase-down” (redução), mas incluir indicações concretas para forçar o abandono progressivo, mas rápido, dos outros combustíveis fósseis também, citando petróleo e gás explicitamente.

Ao mesmo tempo, trocar o apontamento tão necessário do fim dos subsídios aos combustíveis fósseis pela retirada dos “subsídios ineficientes” soou como escárnio. Afinal, do ponto de vista da necessidade (reconhecida pelo próprio documento final da COP26) de cortar em 45% as emissões de gases de efeito estufa até 2030, qualquer subsídio fóssil mantido é ineficiente por definição. A introdução de um termo tão obviamente impreciso e subjetivo é justamente a brecha necessária para manter, sustentada com dinheiro público, a destruição planetária perpetrada pela indústria fóssil.

Seguir as regras de qual sistema? Do sistema climático ou do sistema econômico?

Mas tais absurdos acontecem porque a métrica no “Acordo”, repetida no “Pacto”, foi sempre o que é “possível” dentro dos marcos do sistema, sem impor às corporações responsáveis pela acumulação de gases de efeito estufa o ônus devido e sem equacionar a profunda injustiça que é condenar países quase sem qualquer responsabilidade sobre a crise climática a se tornarem inabitáveis pelo calor extremo ou pela exposição a secas, furacões, incêndios e tempestades recorrentes ou simplesmente por terem seu território submerso pelos oceanos.

Fato: temos dois sistemas que funcionam com regras diferentes e, hoje, incompatíveis. O sistema climático terrestre está sob risco de desestabilização de várias de suas componentes e a entrada irreversível nesse terreno perigoso demanda que acionemos o freio de emergência. O sistema capitalista, por outro lado, impõe-se na lógica de acumulação de riqueza, do encurtamento do tempo, da ampliação das demandas de matéria e energia e só reconhece o pedal do acelerador. A proteção de um dos dois sistemas implica expor o outro ao colapso. E até agora, as mesas de negociação de todas as COPs terminam ou optando explicitamente pelo sistema econômico ou tentando conciliar o inconciliável.

Meio cheio ou meio vazio?

É verdade que a pressão puxou o provável aquecimento futuro do planeta para baixo em alguns décimos de grau, só que de maneira muito insuficiente. No entanto, não se trata aqui de pensar na lógica de “copo meio cheio ou meio vazio” e sim entender o todo, pois o que menos interessa são as nossas “percepções”. Na frieza (ou no calor) da Física do Clima, a água no copo que veio da Escócia é insuficiente para aplacar a sede (ou apagar o incêndio) de uma atmosfera completamente deslocada de seu estado de equilíbrio.

Os limites profundos do processo ficam explícitos quando constatamos que, mesmo assumindo que as declarações genéricas e promessas de “zero líquido” serão transformadas em planos reais e que estes serão cumpridos integralmente, apontamos para 2,1°C ou, na melhor de todas as hipóteses, 1,8°C, marginalmente cumprindo o Acordo de Paris, mas ainda assim com uma margem de risco por demais elevada. O que temos, de fato, consolidado nas Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs) é que se todos os compromissos assumidos para 2030 na COP26 forem cumpridos à risca, ainda ficamos numa rota de emissões muito parecida com o “cenário intermediário” de emissões de gases de efeito estufa, segundo o Climate Action Tracker, o que, para o final do século XXI nos dá 2,4°C de aquecimento em relação ao patamar pré-industrial.

Análise do site Climate Action Tracker mostra que as metas oficiais dos países, por meio das suas NDCs, nos colocam numa rota de de 2,4°C até 2100 e que, por meio das complexas retroalimentações do sistema climático, tenderia a produzir um aquecimento ainda maior nos séculos seguintes.

Segundo o AR6 do IPCC, esse tipo de “cenário intermediário” ou “caminho do meio” (tecnicamente o cenário SSP2-4.5), além de produzir, já neste século, um caos climático causado pela multiplicação de eventos extremos (ondas de calor, incêndios, secas e tempestades), não estabiliza o clima e mantém uma rota de aquecimento rumo a 3,3°C em 2300 (sendo este o valor mais provável, mas podendo chegar até 4,6°C). Em outras palavras, não há, literalmente, “meio-termo” ou “caminho do meio” neste caso.
Duas bifurcações
Estamos portanto, numa situação de bifurcação, em que o sistema climático pode, de um lado, acomodar-se numa trajetória marginalmente compatível com os padrões climáticos do mundo que conhecemos ou ser empurrado, pela inação e pelos interesses dominantes, a um clima muito mais parecido com aquele do “Período Quente do Plioceno Médio”, colocando a biosfera do planeta e a humanidade à força numa máquina do tempo com relógio configurado para 3,3 milhões de anos atrás. Receita para transformar amplas áreas do planeta em locais praticamente inabitáveis para muitos milhares de espécies (inclusive a nossa). Receita para praticamente acabar com os mantos de gelo da Groenlândia e da Antártica Ocidental. Receita para elevar os oceanos em 20 metros.
E se o sistema climático está diante dessa bifurcação, nós também estamos diante de uma. Não temos mundo em comum com os bilionários, como estes mesmos já fazem questão de afirmar (confere, Jeff Bezos?). Não existe mundo em comum entre carbono e capital, entre natureza e mercadoria. Está cada vez mais evidente que, muito mais do que somente disputar a pretensa racionalidade do terreno das COPs, é preciso disputar o poder político e econômico, em todas as esferas, a fim de encerrar o trágico sequestro do futuro, refém neste exato momento das corporações e dos governos por elas capturados. Lutemos. Mudemos o sistema, não o clima!

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