A quem interessa a beleza e sobre qual perspectiva a mesma é fabricada? Já começo esta coluna realizando tal questionamento justamente pela insensibilidade do que veio a acontecer no Mister Trans Brasil deste ano (2021).

Para quem não sabe, esse espaço é um local que busca pensar e repensar os padrões de estética voltados a área não somente da beleza, como também do corpo e, consequentemente, da moda. Isto quer dizer que, teria como objetivo central travar e romper com o cismaginário que atravessa o nosso contexto interpessoal e social no cenário artístico e cultural. Contudo, a própria organização cumpre a sua finalidade?

Antes de respondermos essa pergunta, já adianto que não tenho como meta neste artigo cancelar tanto o festival, quanto o participante Bernardo Rabello que ganhou essa edição. O tecimento desse texto está exclusivamente e unicamente voltado a analisar as opressões existentes e os mecanismos hegemônicos de representatividade.

Bernardo Rabello no Mister/ Tomás Araújo

Busco também aquilo que Audre Lorde (1977) nos ensina: “o que me dava tanto medo? Questionar e dizer o que pensava podia provocar dor, ou a morte. Mas, todas sofremos de tantas maneiras todo o tempo, sem que por isso a dor diminua ou desapareça. A morte não é mais do que o silêncio final. E pode chegar rapidamente, agora mesmo, mesmo antes de eu ter dito o que precisava dizer”. Ou seja, não devemos nos silenciar sobre qualquer ato que viole nossa condição de ser e existir, por isso é que escrevo este artigo até mesmo para descentralizar a história única (Chimamanda) dentro do movimento T, que inclusive não devemos encarar como comunidade, mas sim como uma população, constato essa hipótese a partir do que nos ensina Jaqueline Gomes de Jesus.

Primeiramente, iremos refletir sobre beleza, sendo assim lhe pergunto: qual é o significado de beleza pra você? E dentro daquilo que você considera genoíno, o meu corpo deveria cumprir qual pacto social e cultural para não ter, mas possuir e ser a beleza? Se assim for, só o fato de associarmos a beleza como um objeto nos diz muito não apenas sobre a trans(ex)clussão, como também sobre a higienização e a fetichização. Afinal, o conceito de beleza ocidente-europeu não seria aquilo que é belo, mas aqui que é estético e, por ser, seria um objeto a ser negociado. O que me lembra e ensina Patrícia Hill Collins ao pontuar sobre as imagens de controle e, sobre como as mesmas segregam e escravizam, as pessoas a seguirem determinados padrões.

Ou seja, analisaremos agora determinados casos: entre um corpo negro e branco, qual você escolheria? E se fosse o negro, porque escolheria? Seria por mero fetiche, ou por espontaneidade? Aprofundando o debate, entre um negro cisgênero e transmasculino/homem trans, qual seria o mais apropriado neste debate a ganhar a sua concepção do que é belo? Além disso, como se daria essa escolha quando dialogamos com negros com deficiência e sem deficiência? O que seria e qual seria a sua curadoria da beleza? Quais são os métodos de castrar a essência de um corpo? Seria a fita, ou a sua métrica?

Assim sendo, poderemos analisar que quer queira quer não, todos esses questionamentos foram moldados e solidificados a partir dos meios de imprensa e comunicação. Isto é, quais são os corpos estampados nos cartazes de anúncios, ou até mesmo nas propagandas de televisão? Se considerarmos a presença masculina nesta perspectiva, veremos que em 84% dos casos essas corporeidades são brancas. Além de que pessoas com deficiência ocupam apenas 1% dessas propagandas. Desta forma, como toda essa higienização impacta no seu e no meu comportamento social?

Se notarmos que nossas ações e reações também são resultantes de intra-projeções, poderemos concluir que o conceito de beleza também é uma construção estrutural e estruturante. Se as corporeidades ousarem em antagonizar esse movimento imposto a elas, como teria este corpo um álibi de existência? E se não o tem, como poderiam existir? Portanto, as estimulações e os sensores de sensitividade que perpassam toda a nossa esfera corporal e a nossa ideologia da régua de embelezamento são atravessamentos do que potencialmente vemos, ou do que somos ensinados a ser.

Neste sentido, desde cedo existe uma narrativa apelativa a (cis)branquitude ser a única figura persuasiva a conquistar alguém e/ou alguma coisa. Ou seja, nos vendem uma micropolítica do atraente para sermos atraídos e, com isso, impactar e gerar o consumo a partir da grafia corporal embranquecida. Poderemos usar esse mesmo mecanismo eurocêntrico em uma exemplificação gordofóbica.

Na infância existe um método educativo em que nos ilustram e direcionam a pensamentos onde ser magro é colocado como obrigação, caso haja uma distorção imagética desse padrão na fase adulta seremos gordos e obesos. Mas o que isso quer dizer? Seria essa preocupação saudável no que diz respeito à saúde física e mental das crianças? Poderia transcurecidamente destacar que não, afinal esse ensinamento é regido a partir do duplo vínculo. Neste caso, a palavra gorda deixou de ser substantiva e até mesmo subjetiva, e tornou-se um adjetivo que qualifica o outro a partir da feiúra.

Todavia, esses comportamentos são propositais ou apenas reproduzidos em formatos inconscientes? Se considerarmos que a inconsciência é também gerada pela classe dominante e que a partir dela existe um interesse a determinados aparatos sociais e econômicos, poderemos constatar que não há inocência social. Ou seja, o comparativo entre gordo e magro reverbera numa nuance onde a gordura é pontuada, esteticamente dizendo, como um fator negativo. Caso você seja das artes cênicas, mais precisamente do teatro, com certeza você já deve ter ouvido as pessoas denominando como gordura aquilo que é desnecessário para o desenvolvimento do trabalho.

Mas se dentro de uma pedagogia é necessário que haja um produto final a ser aprendido e executado, poderíamos notar que todo esse processo cíclico ensina a criança a não querer ser gorda, como também a discriminar quem o é e, assim, identificá-la como feia. Poderíamos, então, nomear este fenômeno como o monopólio da beleza ocidental, isto é, a Europa e a ciscolonização impondo padrões inalcançáveis com a finalidade de destacar a estética da perfeição de um corpo.

Entretanto, existe a necessidade de revermos e nos alimentarmos da cultura Amefricana, como proposto pela Lélia Gonzalez, para que não estejamos condicionados a essa narrativa.  Sendo assim, não trago como análise apenas o aquilombamento, como também o travestilombamento e o transaquilombamento dessas narrativas. Para que isso aconteça, é extremamente relevante resgatar a partir da origem da diáspora o significado de beleza.

De acordo com o Yorubà, beleza não se adequaria ao que o ocidente-europeu considera como estético, afinal a sua terminologia é expressa pela palavra odara, que contém, simultaneamente, os conceitos de bondade e utilidade. Que busquemos, assim, estar odara.

No entanto, ser e estar odara não significa tentar se encaixar no molde da heterocisnorma, e muito menos na humanização. Afinal, de acordo com Leal (2021), buscar a humanização pela perspectiva hegemônica tem o mesmo valor e sentido de estar à mercê da sua cultura. Porquanto, só sou possível e passível de ser humana enquanto corpo trans e travesti, quando há um processo de embranquecisgenerização. O que por sua vez, nos torna o experimento laboratorial da cisbranquitude.

Mas o que debatemos até agora tem a ver com o título da coluna? Quando questiono se a beleza do Mister Trans Brasil é branca, ou até mesmo normativa, faço uma análise a todo esse processo de monopolização da beleza. Vejamos a seguir os exemplos: a) na busca pela diversidade, o evento se atropela em seu objetivo, afinal só de analisar os perfis dos finalistas (homens trans que fizeram mastectomia, magros e brancos) poderemos visualizar tamanha contradição, até porque como bem pontua Giulianna Nonato “o acesso amplo e gratuito a procedimentos cirúrgicos, como a mastectomia, que garantam a saúde física e mental dessas pessoas” ainda é uma luta histórica e sócio-política do movimento, afinal de acordo com a mesma “ainda não é uma realidade e a maioria dos meninos apenas sonha com a sua mastec, sem condições de realizá-las”, como é o caso de transmasculinos/homens trans pobres, pretos e periféricos, e até mesmo gordos, visto que como cláusula há uma demanda de emagrecimento para poder passar por esse processo; b) além disso, Bernardo Rabello (vencedor do Mister Trans Brasil), homem T branco, em uma entrevista afirmou: “sofro por ser padrão, mas sou o homem que eu sempre quis”. Só que nessa frase é possível observar alguns equívocos, sendo o primeiro deles o fato de ponderar que ser padrão lhe causa sofrimento, uma coisa é ser obrigado a performar o padrão, outra é não compreender o acesso que o mesmo por si só tem em detrimento de outros que fogem da normatividade. Neste sentido, vale racializar o debate: homens trans/transmasculinos pretos estão submetidos a 28 anos como expectativa de vida, o que diverge de um corpo T branco, até porque 80% das pessoas trans e travestis assassinadas são pretas. Ademais, quando Bernardo individualiza a si mesmo a luta de toda uma comunidade, ele está esvaziando toda a pauta de um movimento político e, consequentemente, a narrativa de travestis pretas, como no caso da Jovanna Cardoso (uma das fundadoras do movimento T no Brasil). Até mesmo quando se trata do suicídio entre o seu próprio segmento, até porque segundo o Departamento de Antropologia e Arqueologia, 87,7% dos homens trans/transmasculinos já pensaram em suicídio ou tentaram cometer o ato. Uma circunstância apontada por Giulianna Nonato que deve ser considerada é o fato da imagem do Demétrio Campos ao fundo do festival ser um puro cinismo, afinal se “estivesse vivo, ele provavelmente não estaria naquele palco. Sequer entraram em contato com Dona Ivone, sua mãe e grande aliada da luta de pessoas trans pretas”.

Sendo assim, poderemos observar com todos esses acontecimentos como que a busca por representatividade a partir da hegemonia sustenta valores onde o corpo sempre tencionado, mesmo quando já é atravessado por recortes sociais que fogem do padrão cisgênero, sempre favorecerá características e signos que ainda estão em conforme com a cultura trans(cis)branquecida em um corpo, como é o caso do Mister Trans Brasil não só desse ano, como de todos os anteriores. Afinal, por qual motivo Nathan Santos (homem trans, preto, gordo e periférico) não teria ganhado se a maioria da comunidade estaria torcendo e se sentindo representada pelo mesmo? Até porque como o mesmo diz: “a maior resistência que eu tenho feito hoje é participar desse concurso que é totalmente embranquecido, com meu corpo gordo aqui”.

Nathan Santos no Mister. Foto: Tomás Araújo

Neste sentido, concordo com a Linn da Quebrada quando a mesma tece uma crítica a respeito do movimento de representatividade. Afinal, esse espaço não é meramente a solução, mas ao menos deveria ser encarada como o mínimo. Porque se esse espaço produz álibis de existências, quais são os álibis construídos e constituídos nesses espaços, nas artes cênicas e nos meios midiáticos referente a corporeidades trans e travestis pretas? Além, é claro, de corpos T indígenas, gordos, com deficiência, entre tantos outros.

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