No Mês da Consciência Negra, diversos eventos vão acontecer por todo o Brasil e, pessoas negras, ao entrarem em alguns deles, vão ser assediadas e sofrer abordagens abusivas nas revistas, simplesmente por serem negras, estarem com seus black powers e usando pente-garfo.

Recentemente, enquanto eu estava trabalhando na produção executiva de um festival, fui notificada de que pessoas negras sofreram racismo e tiveram seus pentes-garfo confiscados por serem considerados como armas. Infelizmente, não há nada de novo no Brasil do racismo estrutural. Ao contrário, o histórico relacionado à cultura da violência racial, a perseguição, criminalização dos símbolos de resistência negra e a incorporação desses símbolos como ponto de atenção e repressão nos procedimentos operacionais padrão da segurança pública e privada fazem parte da história do Brasil. Há tempos sabemos que o mundo ama a cultura que produzimos, mas odeia nos ver exercendo nossos direitos culturais. Amam nossa música, mas odeiam a afirmação da nossa identidade. No entanto, o episódio recente em um festival em Brasília me fez pensar em trazer ou reforçar essa discussão para a responsabilidade compartilhada no âmbito da produção cultural.

Inconformada com esse “episódio”, além de, junto da equipe, agirmos na hora para revisar o protocolo da equipe de segurança, eu busquei, nos dias que se seguiram, alguns profissionais da área, assim como alguns advogados próximos, para entender melhor qual a recorrência e orientação sobre isso. Uma unanimidade de profissionais da área de segurança confirmaram comigo que apreender o pente-garfo é, ainda em 2023, um procedimento operacional padrão, não sendo utilizado apenas no caso em que os produtores dos eventos solicitem, expressamente, que esse procedimento não seja adotado.

Acontece que a Lei de Contravenções Penais, publicada nos anos 1940 e que ainda está em vigor, enquadra o pente-garfo como “arma branca”, não sendo considerado como crime o seu porte. Sem uma definição nítida ali do que seja arma branca, só essa discussão em si já rende muito pano pra manga. Como o pente-garfo foi parar nos protocolos de segurança privada? Pior, porque o black power, pente-garfo e as pessoas negras nunca saem da mira? Como ainda tem gente que não acredita que o racismo estrutural se faz presente diariamente na sociedade e que se reproduz na cadeia produtiva dos eventos?

Por mais que seja cansativo ou repetitivo, ainda é necessário retomar e ampliar esse debate. Principalmente nós, gestores, gestoras e produtores culturais: que tipo de abordagens e revistas acontecem nos nossos eventos? Como podemos SER e treinar nossas equipes de segurança para serem verdadeiramente antirracistas, garantindo que a “segurança do público” não venha a autorizar o crime de racismo?

Quanto à abordagem às pessoas com cabelo black power nos eventos, a situação é ainda mais grave, adicionando-se o fato de que grande parte dos profissionais de segurança privada insistem em realizar revistas invasivas. Depois de tanto letramento racial gratuito oferecido exaustivamente pelos movimentos negros, a maioria não têm mais coragem de admitir que consideram jovens negros com seus black powers suspeitos. Mas, aí, usam a justificativa de que a revista é para evitar que algum entorpecente ou arma seja ocultado dentro do cabelo (socorro!).

Desde o dia 1 de Brasil, pessoas negras e indígenas pagaram com as próprias vidas por afirmar suas identidades e as manifestações culturais. Até 1930, era crime previsto no código penal praticar capoeira, candomblé e samba no Brasil. Até hoje, muitas pessoas acreditam que a ditadura militar ignorou os movimentos negros e seus símbolos, mas existem diversos depoimentos de ativistas negros e relatórios aterrorizantes que comprovam que cabelos black powers e pentes-garfo orientaram uma série de monitoramentos e violações contra movimentos e pessoas negras. Por que amam tanto nossa cultura e odeiam nossas existências?

Fica a pergunta: nós estamos em 1500, em 1964 ou em 2023? Em qualquer uma dessas épocas o racismo deveria ser inadmissível.

Eles chamam de arma branca. Nós, de coisa de preto.