Bauru e Osasco em quadra. Foto: João Pires / Fotojump

“Respeito” foi uma das palavras mais usadas por Tandara ao se posicionar sobre o direito de Tifanny atuar na Superliga feminina, respeito, respeito, respeito, e no final veio o famoso “mas”, o “mas” bem brasileiro do “respeito, mas não concordo”, pra fechar em seguida com a cereja do bolo: “isso é fisiologia, não homofobia”. A oposta do Volêi Nestlé/Osasco ainda afirmou que essa opinião independe do fato de a Tifanny fazer ou não diferença nas quadras, uma vez que houve jogos em que a oposta do Vôlei Bauru passou batida.

Coisas e mais coisas pra se pensar. Primeiro, não quero dar a entender que o posicionamento de Tandara deva ser ignorado, mas sim pensar o que ele significa, o que ele propõe no final das contas. A argumentação dela foca no corpo, o tal do quadril mais fino da Tifanny (mais fino do que o de quem?) que a permite saltar mais alto (mais alto do que quem?), os seus pulmões maiores e o fôlego maior que ela apresenta (quais os critérios dessa medição? olhômetro, desconfiômetro? e maior que o de quem?), sempre reafirmando que o que dá embasamento à sua perspectiva é “a fisiologia, não a homofobia” e que, por conta da atleta trans ter passado a puberdade e se formado inteira como sexo masculino, ela vai defender esse posicionamento mesmo que a Tifanny seja neutralizada nas quadras.

Perceba-se já de cara que isso não é apenas sobre a Tifanny, com seus 1,94m de altura, mas sobre a presença de qualquer mulher trans na categoria feminina e, logo, no esporte de forma geral. O argumento supostamente biológico (e desse tipo de biologicismo que assume ares de incontornável, indiscutível, determinismo mesmo) vai sugerir que mulheres trans sempre terão vantagem para cima de mulheres cis, independente da altura que tenham, da massa muscular, da estrutura óssea, do momento em que iniciarem a terapia hormonal.

A conclusão óbvia seria, então, que mulheres trans devem disputar apenas nas modalidades masculinas e isso mesmo que tenham feito cirurgia de redesignação sexual, mesmo que estejam fazendo uso de bloqueadores de testosterona há anos, mesmo que o machismo e a LGBTfobia tornem impensável essa possibilidade. Ou seja, o que o posicionamento de Tandara propõe é que ou a gente faz a transição ou disputa um lugar ao sol no mundo dos esportes de alto rendimento. Não dá pra querer as duas coisas: esse espaço e suas regras não foram pensados para ter que lidar com corpos trans e, logo, não precisam se repensar para inventar maneira de comportar nossos corpos.

É um posicionamento legítimo, sobretudo num país assumidamente transfóbico e orgulhoso de ostentar o posto de campeão mundial de assassinatos de pessoas trans. O que, no entanto, eu sinto falta é um mínimo de dados concretos que sustentem essas posições. Oras, lembro da mídia já nos anos 90 sendo capaz de precisar a velocidade dum chute do Roberto Carlos em 137km/h, um dos mais rápidos da história, mas não vejo um mínimo de esforço nessa direção para demonstrar que de fato as cortadas de Tifanny são mais fortes do que quaisquer outras.

Falta interesse em fornecer essas evidências? Falta e, enquanto isso, sobra espaço pra achismo e ouvi falar. Mas o que falta também, aliás, é uma análise honesta da atuação da Tifanny em quadra, algo que não é possível por quem acompanha o caso apenas por VTs dos melhores momentos, manchetes e matérias sensacionalistas ou, pior ainda, tuítes. O que viu quem foi ao estádio?

Dois sets de atuação completamente apagada do Bauru como um todo mas sobretudo da Tifanny, com comemoração ostensiva da torcida do Osasco a cada um dos erros que ela cometeu ou bloqueios que levou (pontuar em cima dela era quase como ganhar um set e por aí a gente já vê o tamanho da pressão que a jogadora enfrenta). Parecia que íamos embora mais cedo, outro 3×0 como contra o Camponesa/Minas, quando o Bauru de repente acordou, igual contra o Dentil/Praia Clube, ganhou os dois sets seguintes, com atuação de gala da Tifanny, e levou a partida para o set desempate, onde o cansaço visivelmente falou mais alto e acabaram trucidadas (a diferença chegou a ser de 12 a 3, acabando 15 a 10).

Nos sets em que o Bauru jogou bem, a Tifanny brilhou no ataque, mas (e ressalte-se isso) apenas no ataque. Se a bola vinha redonda, ela anotava o ponto, mas olhar somente isso é esquecer que ela errou mais da metade dos saques, não conseguiu chegar em várias bolas e que no levantamento e nos passes ela deixou muito a desejar. Habilidades notórias no ataque, excelente sobretudo nesse quesito, mas com deficiências em outros vários, como qualquer jogadora, e com um time que joga em função dela.

Tandara, por exemplo, se mostrou uma jogadora muitíssimo mais completa, com uma sequência destruidora de saques, passando bem, levantando bem, conseguindo surpreender em várias posições e, sobretudo, anotando os mesmos 31 pontos que a oposta do Vôlei Bauru, mesmo medindo 10cm a menos do que ela. Não à toa levou o prêmio de melhor do jogo. A pergunta que me ocorre é se Tifanny, assim como as discussões sugerem, teria lugar fácil em qualquer equipe do mundo, pergunta que talvez não dê tanto ibope quanto dizer, de forma irresponsável e descontextualizada, que ela, uma mulher trans, bateu um recorde xis da Tandara.

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