*esse texto contém spoiler pra caramba 🙂

Cheguei atrasada à festa das séries do ano passado. Estive em janeiro me atualizando até chegar em Big Little Lies, que ganhou 35 dos 51 prêmios indicados, incluindo Melhor Atriz em série de tv no Golden Globes para Nicole Kidman (categoria da qual as outras duas principais também disputaram) e  melhor Mini Série de Tv.  A série chama atenção do público por retratar violências físicas, mentais e sexuais contra mulheres na era de #MeToo e #TimesUp.

Agora, passado o choque do último episódio (principalmente para quem não leu o livro homônimo que deu argumento a série, de Liane Moriarty), fica uma pergunta retumbante na minha cabeça: Quem era Bonnie Carlson e porque é ela quem mata Perry Wright?

Zöe Kravitz como Bonnie Carlson em Big Little Lies

Podemos começar pelo fato de que séries como essa (The Handmaid’s Tale, por exemplo) não serem exatamente acessíveis – elas não estão em grandes plataformas de streaming como o netflix. Uma é transmitida pela HBO, na tv fechada e a outra é da HULU. De qualquer forma a internet está aí e se você quiser assistir, eu vi por aqui.

Voltando a Bonnie, de cara somos levadas a não gostar da personagem. Somos apresentadas inicialmente a Madeline Mackenzie, a ex mulher do seu atual marido, que passa a série inteira a caracterizando como uma “mulher negra livre” – um estereótipo estético não muito explorado no Brasil, cuja o conceito/movimento simboliza nos Estados Unidos a oposição de retratar mulheres negras sempre preocupadas, sisudas, sérias, oprimidas por uma realidade violenta e além – explicitamente conscientes, 24 horas por dia.

Para olhares viciados como um meu foi uma dinâmica interessante de acompanhar. Por muitas vezes eu caía na armadilha e concordava com as reclamações de Madeline, eu mesma rejeitando que tags como ioga, comida de horta e elevação espiritual estivessem ligadas a uma pessoa negra, porque cresci entendendo que, bem, isso é coisa de branco.

E são ligadas a eles porque ter tempo para essas coisas significa não estar preocupada com o fato que você pode levar um tiro da polícia na próxima vez que você for na rua. Bonnie não parecia estar preocupada com esse tipo de coisa e não se preocupar é um luxo de pessoas brancas. E justamente por isso o Carefree Black Girl é tão importante.

Ao longo da série outras perguntas surgiam na minha cabeça sobre a vivência de Bonnie em Monterey (cidade onde se passa toda a série): O que ela sentia sendo a única negra em vários espaços? O que ela observava de diferente no tratamento da sua filha na escola onde todos eram brancos, loiros e lisos? Como ela se sentiu ao ser sexualizada pela sua forma de dançar numa festa infantil? Como ela era tratada por outras esposas quando descobriram que ela era a segunda mulher (e mais jovem e “descolada”)? Qual era sua relação com Abigail, sua enteada, uma clássica adolescente branca que via nela sua salvação em vários momentos?  

Essas perguntas foram tiradas de cenas pequenas, onde Zöe Kravitz (que interpreta Bonnie) brilhantemente a representava por poucos minutos, muitas vezes para dar vazão a conflitos dos outros homens da trama e não a sua própria história. Pelos capítulos, podemos ver as histórias de Celeste, Madeline e Jane, as personagens principais, mas também vemos muito de Renata, a antagonista bem sucedida, mas muito pouco de Bonnie. Ela não era nada além da imagem do terror das esposas.

O grande final começa com Madeline tendo uma crise de culpa por ter traído seu marido, Jane a busca para consolá-la. Renata chega para pedir desculpa pelas injustiças que cometeu com Jane e então Celeste também se junta a elas, parecendo perturbada. Mas bem antes disso Bonnie já está seguindo o casal Celeste e Perry com os olhos, notando ali um comportamento atípico da parte dele. De alguma forma, Bonnie sabe que Celeste está em perigo.

Bonnie e Madeleine em cena em Big Little Lies

 

Ao fim, quando Perry parte para cima de Celeste, todas suas amigas tentam ajudá-la, batendo como podiam em Perry e o puxando para longe dela. Mas é Bonnie, a menor e mais magra de todas que surge do alto das escadas e o empurra para a morte.

Sem saber da sua história, a primeira coisa que ficou marcada em mim foi: precisaram de uma pessoa negra para fazer o que era necessário – tirar ele de perto (e não necessariamente matá-lo). E vai para os lados da questão: só uma pessoa negra teve a coragem de fazê-lo e ao mesmo tempo, quiseram imputar a pessoa negra a carga de ser uma assassina.

E claro que essas interpretações surgem porque, pasmem,  a história da única personagem negra significante do enredo não foi contada. Quando questionado do porque, David E. Kelley, o criador da série, explica: “Cinematograficamente, queríamos terminar a série sem diálogo. Eu acho que nos últimos 10 minutos ou mais da série, ninguém estava dizendo nada. Nós estávamos contando a história só com a câmera e há limite no que pode ser feito assim. Não conseguimos colocar ali a história do personagem. Nós realmente não precisávamos disso. As peças estavam lá. O personagem, a atriz que interpretava o personagem, conhecia sua história, e enquanto seguirmos essa verdade, poderíamos honrar o que o livro diz, sem necessariamente ser fiel a cada página”.

Em outras palavras, não era importante contar ao público que Bonnie viu sua mãe ser violentada pelo seu pai durante a infância e por isso sabia reconhecer os sinais de um homem violento e por isso sabia que algo estava acontecendo aquela noite. E justamente por ter um histórico sentimental com cena de violência contra mulher, ela teria ímpeto diferente de suas amigas. Bonnie empurrou Perry porque ela sabia que ele não ia parar e de alguma forma, foi como fazer justiça.

Talvez o desenvolvimento pouco satisfatório de Bonnie é o resultado que temos quando é um homem branco que escreve uma série que busca dar luz a problemas de mulheres. Uma mulher negra sem passado, futuro, desejos próprios, apequenada, insultada, sexualizada e porque não, humilhada, Madeline também vomita nela. Nem as cenas de felicidade na praia, onde se subentende uma suposta sororidade resolvem esse caso – Bonnie precisou matar alguém para merecer um lugar no clube.

Renata, Madeleine, Celeste, Bonnie e Jane

A própria morte é observação a parte – nos comentários sobre a série a maioria das pessoas celebrando a morte do espancador-estuprador são pessoas brancas. Não estou dizendo que pessoas negras não tenham o mesmo desejo em alguma escala, afinal vivemos numa sociedade punitivista, mas creio que isso pode significar algo sobre a valorização da vida na ótica de pessoas brancas.

Ao fim, sabendo de tudo isso, essa série continua sendo uma das minhas favoritas, mas minhas perguntas acabam se resumindo em uma:

O que as mulheres brancas sentiram ao ver Bonnie na tela?

Conheça outros colunistas e suas opiniões!

Colunista NINJA

Memória, verdade e justiça

FODA

Qual a relação entre a expressão de gênero e a violência no Carnaval?

Márcio Santilli

Guerras e polarização política bloqueiam avanços na conferência do clima

Colunista NINJA

Vitória de Milei: é preciso compor uma nova canção

Márcio Santilli

Ponto de não retorno

Márcio Santilli

Através do Equador

XEPA

Cozinhar ou não cozinhar: eis a questão?!

Mônica Francisco

O Caso Marielle Franco caminha para revelar à sociedade a face do Estado Miliciano

Colunista NINJA

A ‘água boa’ da qual Mato Grosso e Brasil dependem

Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida

Na defesa da vida e no combate ao veneno, a Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos completa 13 anos

Casa NINJA Amazônia

O Fogo e a Raiz: Mulheres indígenas na linha de frente do resgate das culturas ancestrais

Rede Justiça Criminal

O impacto da nova Lei das saidinhas na vida das mulheres, famílias e comunidades

Movimento Sem Terra

Jornada de Lutas em Defesa da Reforma Agrária do MST levanta coro: “Ocupar, para o Brasil Alimentar!”

Bella Gonçalves

As periferias no centro do orçamento das cidades

Márcio Santilli

Desintegração latino-americana