Tiffany Pereira de Abreu, primeira atleta trans da história do vôlei brasileiro.  Divulgação / Vôlei Bauru

Por ora somos capazes de contar nos dedos o número de pessoas trans participando de modalidades esportivas de alto rendimento, nos dedos, nenhuma delas tendo ganhado o que quer que seja, nenhuma sequer tendo alcançado índice olímpico ou convocação para as seleções nacionais. O que não impede de já começarem a projetar cenários apocalípticos, como o fim do protagonismo de mulheres não-trans (as mulheres cis) nos esportes femininos. Primeiro ponto.

Segundo, os esportes de alto rendimento foram pensados todos antes de nós, pessoas trans, efetivamente conseguirmos nos fazer presentes e visíveis nessa sociedade, o que implica que suas regras nunca nos levaram em consideração, nunca imaginaram nossos corpos como corpos que competem. Hoje, no entanto, uma vez que estamos aqui e que já não podem ignorar nossa existência, vai se fazendo necessário repensar essas regras para que as competições passem de fato a ser justas, inclusive para nós.

Justiça para quem? Terceiro ponto. Pessoas trans são vistas desde sempre como fraudes, como alguém que tenta passar pelo que não é. Isso faz, por exemplo, com que interpretem como má fé o fato de Tiffany haver transicionado só aos 29 anos e não na adolescência. Mas se ela tivesse começado a transição dez, quinze anos atrás, no país recordista mundial de assassinatos de pessoas trans, com a conhecida violência exercida pela família, pela escola, pela sociedade e ainda podendo contar com as portas fechadas do mercado formal de trabalho, estaria ela hoje em condições de disputar espaço em alguma das duas modalidades do vôlei, feminina ou masculina, ou mesmo em qualquer outro esporte? Você se lembra de atletas trans disputando algum esporte que seja dez anos atrás? Quantos nomes hoje você conhece, fora o dela? Atletas homossexuais seguem até hoje vítimas de severa exclusão nesse espaço, atletas trans nem se fale. A pergunta sobre os motivos de Tiffany haver transicionado só agora e não há xis anos só faria sentido num mundo que tivesse varrido a transfobia do mapa.

Por fim, o apagamento completo dos homens trans. Ou seja, considera-se somente a existência de mulheres trans nesse debate, como se não houvesse pessoas que, tendo sido criadas para ser mulher por conta da vagina com que nasceram, reivindicassem uma identidade de homem. Homens trans que fizerem uso de testosterona, homens que nasceram com vagina e que têm barba na cara, como Thammy Miranda, Tarso Brant, João W. Nery, Buck Angel… seriam eles bem vindos em competições femininas? E mais, estarão essas pessoas todas que se levantam contra o direito de Tiffany disputar competições femininas preocupadas com as reais chances que homens trans teriam em competições masculinas? Estariam preocupadas com a segurança de homens trans nesses espaços?

Não, pouco importa, “quem mandou querer ser homem”. E isso só mostra o quanto a motivação dessas vozes é só uma: a manutenção da exclusão de atletas trans dos esportes de alto rendimento, a perpetuação desses espaços como espaços exclusivos de pessoas cis. A justiça, como se vê, nunca é pensada da nossa perspectiva, nunca se perguntam (nunca nos perguntam!) o que seria justo para nós.

O técnico do BRB Brasília, Sérgio Negrão, chegou a afirmar que Tiffany seria fraca demais para disputar com homens e forte demais com mulheres. De Mike Tyson jamais se diria que ele é forte demais para disputar com homens, porque parte-se do pressuposto de que ele seja efetiva e legitimamente homem, não importa a força que tenha, podendo-se pensar de forma igual em relação a Ronda Rousey, independente dos quatro anos em que manteve sua invencibilidade no MMA. O mesmo pressuposto não vale para Tiffany e, aliás, para nenhuma pessoa trans: justiça duma perspectiva sempre cis.

O técnico defendeu, ainda, a criação de uma liga especial para pessoas trans (sem chegar a especificar se seria só de mulheres trans ou se jogariam também homens trans no meio, tudo o que não se encaixa nas concepções padrões de homem e mulher), ideia tão descabida quanto propor a criação de um terceiro banheiro, querer obrigar cada mísero estabelecimento público a ter, a partir de agora, não importa o espaço de que disponha, três banheiros exclusivos e não mais apenas dois.

Os médicos da própria comissão que, baseando-se nos critérios do Comitê Olímpico Internacional (COI), liberou a participação de Tiffany também parecem querer voltar atrás, agora que ela se revela jogadora nível seleção brasileira. O argumento que surge é o de que sua estrutura corpórea teria inteira se formado antes da transição e que, segundo estudos misteriosos, talvez fossem precisos quinze anos de bloqueador de testosterona e não apenas um, como pede o COI, para que as condições sabe-se lá quais se igualassem entre uma mulher cis e uma trans. Que atleta pode esperar quinze anos, né? Pelo visto, nós.

A discussão tem dado ensejo, inclusive, para uma enxurrada de transfobia por parte de antigas celebridades do vôlei, como Ana Paula Henkel, que um ano e meio atrás chegou a postar um tuíte perguntando: “se todo homem tem um estuprador dentro de si, o que a gente faz com os trans que querem usar o banheiro que a sua filha usa?” No caso Tiffany, ela volta aos holofotes com uma carta aberta, defendendo que seria absurdo permitirem que “homens biológicos” (ela quis dizer mulheres trans) disputem com mulheres cis. “Como aceitar homens biológicos em competições como lutas, batendo impiedosamente em mulheres e ainda ganhando dinheiro, fama e medalhas por isso?”, é uma das perguntas feitas pela ex-jogadora, que se sairia bem como colunista da imprensa marrom. Em outra declaração afirma que “uma seleção feminina só com trans” seria imbatível. Deusa a ouça!

Uma jogadora conhecida, uma única, e já se aventa a possibilidade de uma seleção inteira composta apenas de mulheres trans (houve quem chegasse a defender que países “reconhecidamente trapaceiros”, como a Rússia, poderiam se valer dessa brecha para ir atrás de medalhas, argumento que, além de nojentamente xenófobo, ainda se esquece de que na Rússia LGBTs são criminalizados).

A cereja do bolo, no entanto, veio da bicampeã olímpica Sheilla Castro, que, tratando Tiffany no masculino, perguntou-se em seu Instagram: “imagina se todos os gays decidem jogar a Superliga? Vai ficar complicado, porque não temos como competir com eles”. Não importa quantas Dandaras, quantas Gisbertas, quantas Lauras Vermont sejam violentamente assassinadas todos os dias, ainda assim continuarão acreditando que ser trans é só apertar um botão e que gostar de homens é o primeiro passo…

Qualquer que seja o desfecho, o mais é importante terem consciência de que a decisão sobre o futuro de Tiffany na Superliga ultrapassa o mundo dos esportes. A permissão ou proibição de que ela jogue é sobretudo uma decisão política, uma mensagem para a sociedade. Impedi-la de participar é dizer que o nosso lugar, o nosso papel é no máximo carregando a bandeirinha do Brasil, país recordista de assasinatos de pessoas trans, no desfile de abertura das Olimpíadas, nunca dentro das quadras.

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