Quando a neblina do atual momento político rarear, haverá uma nova e surpreendente paisagem artística e cultural no audiovisual brasileiro.

Cena do filme “Nokun Txai – Nossos Txais” de Sérgio Carvalho

Goiânia tem atualmente 9 longas-metragens em fase de filmagem e finalização, segundo pesquisa realizada pela Gofilmes (associação de produtores do estado de Goiás). Oriunda dos últimos dois anos, vem aí uma safra maior que toda a cinematografia de um século para o estado. Em outras capitais do país com pouca tradição de cinema ocorre coisa semelhante. São Paulo e Rio de Janeiro vivem excelentes momentos em sua produção, obtendo sucesso de crítica e público em diversos filmes recentes. Pernambuco e Bahia são polos já reconhecidos e vibrantes.

A novidade hoje é a emergência de arranjos produtivos inéditos em estados como Paraíba, Piauí e Acre, entre outros.

Segundo a Agência Nacional do Cinema somente nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste há registro de mais de 400 projetos entre filmes, séries para TV pública e TV paga, e documentários para televisão ou cinema nos últimos anos.  Além disso, Minas Gerais e Espírito Santo e os três estados do Sul tiveram 197 projetos selecionados e investimentos de R$ 103,2 milhões nos sete anos recentes, segundo dados apresentados recentemente pela Ancine.

Essa nova cara do audiovisual brasileiro abrange cinema e produção independente para televisão. Um exemplo do primeiro grupo é Duas Irenes, do goiano Fabio Meira, que teve estreia internacional neste no Festival de Berlim e premiado com 4 prêmios no festival de Gramado. Ou podemos falar da ótima série acreana para as TVs públicas Nokun Txai – Nossos Txais (13 capítulos de 26 minutos), dirigia por Sergio de Carvalho (atual secretário municipal de Rio Branco), série recém lançada e que será exibida em televisões públicas.

Em Santa Catarina, levantamento do Santacine (sindicato das produtoras do estado) informa que apenas entre 2015 e 2016 foram R$ 16 milhões investidos no estado a partir de séries de televisão, animação e longas-metragens de ficção e documentário, mais de 25 projetos contemplados.

Ao mesmo tempo, vemos iniciativas como espaços de exibição, distribuição e comercialização, como o MAC em Fortaleza, o 3° ICUMAM LAB – LABORATÓRIO DE FOMENTO À PRODUÇÃO AUDIOVISUAL NO CENTRO-OESTE, em Goiânia, o 1° Ambiente de Mercado, que ocorrerá já no próximo Festival de Cinema de Brasília.

Um salto que não é obra do acaso.

Para que ele tenha acontecido foi necessária uma combinação de fatores: talentos locais, organização e militância histórica do audiovisual brasileiro, e é claro, ações determinantes de política cultural. Muitas oriundas dos últimos 15 anos: novidades como fundos de investimento, integração da TV paga no ambiente regulatório, indução a participação governamental de estados e prefeituras. Além do surgimento de cursos de audiovisual em universidades públicas e privadas.

A maioria das produções é financiada pelo Fundo Setorial do Audiovisual e alavancada pela inteligente política de cotas para a produção independente e regional criada na lei 12.485, de 2011. Essa legislação regulatória nasceu também da coragem que o governo federal teve, à época, de fazer valer o interesse público em meio às mudanças da tecnologia e dos modelos de distribuição de conteúdo.

Essa regulação econômica promoveu uma revolução silenciosa, permitindo que boa parte dessa diversidade cultural emergisse de águas submersas.

A configuração atual da economia audiovisual revela que muitos dos serviços podem ser prestados hoje com igual eficiência, inclusive a preços mais baixos, em lugares menos populosos e com qualidade de vida superior a dos grandes centros. Além, é claro, de trazer pontos de vista e criatividade. A vitalidade e diversidade cultural do Brasil.

E mais: em termos de recursos, esses novos polos crescem sem nada tirar de Rio e São Paulo, que continuam se desenvolvendo.

Países continentais (como o Brasil) tem o desafio imenso de gerar desenvolvimento equilibrado entre vastas regiões e populações. Nos EUA, atualmente, são inúmeros os Estados que criam estratégias para o audiovisual. Cito por exemplo Atlanta, nos EUA, que promove geração de empregos a partir da sua film comission – ver vídeo aqui. E mesmo a Califórnia tem enormes incentivos públicos para manter fiéis os tradicionais estúdios de cinema.

Participei há pouco do Cine Ceará no seminário que marcou o nascimento da CONNE – Conexão Audiovisual Centro-Oeste, Norte e Nordeste, uma associação dos realizadores de estados do Norte, Centro-oeste, Nordeste do Brasil que tem como lema consolidar o avanço audiovisual dessas regiões.

Iniciativas assim são fundamentais no atual contexto. O movimento não reúne apenas a área cultural, mas jornalistas, militantes, políticos, universidades, instituições governamentais e não-governamentais.

Há dois anos, quando criávamos a Spcine em São Paulo, um dos compromissos assumidos na construção da política audiovisual é que ela seria feita a partir de São Paulo… mas não seria restrita à cidade, sugerindo assim relação e diálogo com toda a produção brasileira. Por isso,  buscamos e explicitamos elos de ligação da cidade com outras regiões do Brasil. Em idos de 2015, promovemos um debate sobre a produção regional com lideranças e cineastas das regiões norte, nordeste, sul e centro-oeste.

Alguns podem alegar que a descentralização esbarrará no gargalo técnico. Mas a democratização e barateamento da tecnologia, além de espaços formativos em linguagem e roteiro, vem permitindo superar essa barreira.

A diversidade regional ganha mais relevo hoje que nos períodos Vera Cruz-Atlântida (de iniciativa industrial) e a cinema novo-Embrafilme (onde o Estado passou a intervir nesse mercado).

Vale discutir como essa nova produção vai dialogar com uma parte imensa da população que não vai ao cinema. Que novas imagens, leituras e narrativas do Brasil estão surgindo? Quais seus efeitos- certamente benéficos – de longo prazo?

Para que este momento seja duradouro é preciso ir além do fomento à produção, incluindo ferramentas de distribuição e promoção locais, relação com TV e streaming, e circuitos de salas de cinema para formar plateias. Não basta produzir sem fortalecer as etapas de distribuição e diálogo com os diferentes públicos. Além disso é preciso implantar as film comissions nessas regiões. Como vem fazendo a são paulo film comission, da Spcine, devem se tornar escritórios regionais, leves e eficientes, capazes de atrair produções e investimentos.

Pode-se dizer que a televisão aberta brasileira moldou a autoimagem da maioria dos brasileiros em cinco décadas, quase sempre a partir de um ponto vista enraizado no sudeste-maravilha.

Se essa imagem ajudou a criar uma “unidade” e uma sensação de ser brasileiro em todas as partes, ela é hoje artificial, insuficiente e desajustada da realidade.

Por isso é importante comemorar a diversidade regional como fisionomia da nova produção. É possível imaginar que o Brasil irá atualizar sua imagem – para nós mesmos, e para os que nos veem de fora. E isso não é pouco.

Quando a neblina do atual momento político rarear, haverá uma nova e surpreendente paisagem artística e cultural no audiovisual brasileiro. Em meio a muitos e dramáticos retrocessos em curso, os novos olhares que emergem dessa produção podem ser vitais para restabelecer um novo projeto de país em bases democráticas. É preciso ressaltar, blindar e apoiar este genuíno movimento sócio-cultural, bem como os mecanismos públicos que o garantem. Ao promover a diversidade cultural ele impacta, em última instância, a qualidade e futuro da democracia brasileira.

 

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