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Gosto de passar despercebida quando estou na rua, roupas discretas, pouca ou zero maquiagem, olhar sempre pra baixo, mulher que ninguém se interessaria em analisar de perto. Por quê?

Porque, se meu corpo chamar atenção, vai acabar ressaltando detalhes que passam batidos à primeira vista, a altura, o tamanho do corpo, ombros, mãos, as minhas poucas curvas, aí traços do rosto que remetem a um padrão entendido como masculino, voz, e aí, batata, começam cotovelos a se cutucar, risinhos, piadas, xingamentos, quando não ameaças de agressão ou agressões propriamente ditas.

Já teve vez em que um rapaz jogou o amigo pra cima de mim dizendo rindo que eu era a mulher da vida dele, outras várias em que um cara assovia e grita que eu sou linda e me assedia pro riso dos presentes, aí o tanto de vezes que de carro buzinam pra nós e gritam “é homem” (e só conheço outro grupo que, como esse aí, sinta tanto prazer em nos chamar assim, o que não deixa de ser uma coincidência curiosa). Tudo na brincadeira, mas a um passo de virar agressão.

Pra travesti, viver é estar a mercê desses olhares, é o tempo todo se sentir vigiada, ser lembrada de que nossos corpos não fazem sentido, de que não cabemos nos padrões vigentes. E é curioso pensar que, acostumadas a receber esse tratamento, muitas vezes a gente começa também a sofrer imaginando o que a pessoa ao nosso lado, seja ela amiga, namorada, colega de trabalho, tanto faz, está sentindo por estar com a gente.

Dia desses fui para a cidade de uma amiga e, como ela também estava em viagem, o marido dela, que não é das militâncias, foi me buscar no aeroporto e ainda me levou pra almoçar. Churrascaria conhecida, território por excelência da família tradicional brasileira, e eu querendo sair dali o mais rápido possível, me esconder num buteco, pedir marmita, sei lá, por medo de fazer com que ele passasse algum constrangimento ao ser visto com “uma travesti”.

Nesses momentos é como se eu deixasse de ser eu mesma, Amara Moira, e me tornasse apenas “uma travesti”.

Com todos os desdobramentos que isso acarreta. “Os comentários que ele vai ouvir”, eu pensava. “E se encontrar algum conhecido?” O curioso é que, em momento algum, ele deu sinal de que estivesse incomodado ou constrangido. Foi super tranquilo o almoço, tão tranquilo que eu me sentia normal ali, não um peso, uma ameaça.

Mas nem dá tempo de ficar feliz. Toda hora a gente lembra das pessoas que dizem gostar da gente e não nos adicionam por medo (“– minha família tá nas redes também, entende?”), das tantas que criam fake pra só então se sentirem seguras pra dizer que somos bonitas, das vezes em que tivemos que ficar com alguém sem que ninguém mais soubesse, segredo de estado, das outras em que não pudemos andar de mãos dadas, trocar carinho, conhecer amigos, família.

Andar com a gente, por conta desse estigma todo, dessas narrativas únicas que povoam o imaginário social a nosso respeito, “depravadas”, “doentes”, “violentas”, “sem caráter”, “fraudes”, torna-se um ato de coragem: é preciso ser descontruído pra dar conta de estar ao nosso lado, mesmo pra coisas simples como tomar um café na padaria, conversar de boas no metrô, que dirá pegar na nossa mão em público, dar mostras de afeto sem tremer, sem se sentir herói.

Eu só consegui começar minha transição e passar a existir como Amara porque, antes de mim, vi outras reivindicando esse direito e me mostrando que era possível, que o mundo tinha que ser nosso também. Mas é uma luta diária levantar da cama e botar o pé na rua, quando a gente sabe o que vai vir pela frente. A única coisa que me alegra é saber que, se foi preciso outras virem antes pra eu acreditar que também podia, agora existem essas todas e mais eu e mais cada uma que dia após dia vai descobrindo forças pra sair do armário e se juntar a nós… e esse número só tende a aumentar.

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