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Sexta, 30/06, dia de greve no país, foi meu aniversário. Cada um tem o seu jeito de celebrar seu próprio aniversário. Pessoalmente, eu passo eles de cabelo trançado.

Esse ano eu queria uma trança diferente das que já tinha feito, queria marley twists. São tranças que ao invés de trançadas são “torcidas”. E pra algumas pessoas tem um aspecto de dread. O que deixou a coisa mais especial é que quem garantiu a tradição de 2017 foi a linda Nátaly Néri. Ela não só me deu o cabelo como também me trançou, dia 16 de junho. Entre as cinco horas que ficamos ali, conversamos de várias coisas e uma delas foi uma confissão minha: eu me sentia mais negra trançada. O que desencadeou outra série de discussões, mas eu saí dali me sentindo uma versão melhor de mim mesma.

No dia seguinte, fui comprar pão. Sábado de manhã, Rua Augusta, São Paulo. Assim que atravesso a rua, dois homens brancos me notam e tomam um susto. Me olham de olho arregalado, dão dois passos pra trás, voltam a andar olhando pra outra direção. Dois dias depois, duas mulheres me olham e trocam de rua. No seguinte, no meio do bolinho de gente parada esperando o sinal, uma senhora alta e grisalha olha pro meu cabelo, faz cara de nojo e vira o rosto.

Para essas pessoas brancas, meu cabelo assustava, meu cabelo repelia, meu cabelo fedia. Foi só então que eu entendi que não era só pra mim mesma ou pros movimentos sociais que agora eu tinha uma leitura mais obviamente negra. Era para eles também. Negro assusta, repele, fede.

Pula pro último fim de semana. De novo Rua Augusta, dia de São João. Minha cabeça flutuando sobre outra tradição nessa data, a festa da família no quintal do sítio da minha vó no interior de Mato Grosso.Volto da quermesse da Roosevelt com gostinho de paçoca na boca, enquanto a Augusta estava lotada e na tentativa de andar melhor contra o vento, prendi minhas tranças pra cima.

Doze horas depois, um dos meus contatinhos me manda uma mensagem. Me viu na rua, mas não me cumprimentou, ficou em dúvida se era eu. Segundo ele ficou parado ali me olhando amarrar as tranças, mas não falou comigo porque tinha que encontrar outra mulher. Minha experiência não consegue parar de imaginar que a outra era branca e que me ver ali mais preta que nunca o fez escolher em quem investir aquela noite.

Essa conexão foi feita baseada no fato de que uma semana no tinder com a foto de cabelo twisted, eu tive o total de zero matchs e o aplicativo me sugeriu trocar a foto para outra de cabelo mais alisado. Até os contatinho entendiam que eu tava mais preta.

Terça-feira dessa semana, meio de tarde, Temer estava falando que não sabe como Deus colocou ele ali. Mesmo dia que um link surge nos chats e então eu vejo o policial atirar quatro vezes em Philando Castille, enquanto o rapaz seguia as ordens do oficial. E depois a namorada dele respondendo sim senhor, enquanto Phill sangrava até a morte ao seu lado.

Isso me fez levantar e chorar quinze minutos no chão do banheiro. Ali no chão branco entendi que quando eles não nos matavam com armas, nos matavam com memórias como essa. Seja nessa ou das centenas de vezes que recebemos fotos e vídeos de crianças sangrando na porta das escolas do Rio de Janeiro no inbox da Mídia NINJA, o que doeu não foi a impotência da mídia nessas situações.

O que dói é ver que ele se parece com meu primo. Ou que poderia ser eu.

Começo a perceber que há outras formas que estou me sentindo “mais negra”. Os últimos doze meses foram de leituras, debates, presenças, falas, escritas – aprendizado negro. Conscientemente falando, me sinto mais negra. Não que seja necessário – na hora de apanhar não perguntam pra você se você é empoderada ou se sente negra. Mas me sinto uma negra melhor por ser uma uma negra que se importa mais com outras pessoas e comigo mesma.

Repensando sobre as minhas tradições celebrativas do aniversário decidi comemorar estar viva. Não só porque estaticamente estou viva, desafiando as regras do jogo, mas porque estou viva e com vontade de viver.

Vou comemorar as fontes dessa vontade: estar no Fora do Eixo que me mantém sã, protegida e estimulada com as possibilidades de mudança do mundo; Estar próxima da família, que tem seus mortos e presos, mas mesmo assim tem o melhor abraço de todos; Ter a oportunidade de ter as minhas referências tão próximas e disponíveis; E por último, mas não menos importante – as minhas tranças marley.

Comemorem comigo e da próxima vez que ver uma mina de marley/trança/dread/afro por aí, dá um sorriso – sem esperar um de volta porque também não somos obrigadas a ficar sorrindo pra estranho na rua. Mas dê um sorriso e seja parte das boas memórias.

PS: Ironicamente falando, neste exato momento estou na cama com uma gripe terrível. Ou como homens cis héteros brancos gostam de dizer: “estou morrendo…”

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