Por Eloisa Artuso*

A força de trabalho da cadeia têxtil e de confecção é composta majoritariamente por mulheres. No Brasil elas somam 60% de 1,34 milhão de empregos formais e 8 milhões considerando os indiretos e efeito renda.

De forma geral, a participação das mulheres no mercado de trabalho ainda está muito abaixo da dos homens, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) aponta que pouco mais da metade delas (54,5%) somam a força de trabalho feminina, contra 73,7% masculina.

Por carregarem quase o dobro da responsabilidade por tarefas domésticas e cuidados, a participação das mulheres no mercado de trabalho é reduzida ou direcionada para ocupações de menor remuneração, sendo que as diferenças se acentuam no caso de mulheres pretas ou pardas, colocando-as em situação de maior vulnerabilidade.

Além da sobrecarga causada pelo acúmulo de funções profissionais e domésticas, as mulheres também estão mais sujeitas à informalidade ou ao trabalho subqualificado, o que adiciona a esse contexto uma carga de invisibilidade.

A cientista política e historiadora especialista em estudos pós-coloniais, Françoise Vergès, afirma que o “capitalismo produz inevitavelmente trabalhos invisíveis e vidas descartáveis”. Ao examinar o trabalho das mulheres (racializadas) que formam a indústria da limpeza na França, ela nota que “invisíveis, elas abrem a cidade”, ou seja, o trabalho dessas mulheres que mantém as ruas, os escritórios e as escolas limpas todos os dias passa despercebido e é completamente desvalorizado. A tarefa de limpar o mundo, indispensável ao funcionamento de qualquer sociedade, é também insalubre, subqualificada, explorada, sujeita a assédios, violências e baixos salários, conclui.

Do mesmo modo, a indústria da moda mantém suas próprias estruturas em que desigualdades persistem, de maneira invisível. Afinal, o trabalho das mulheres da costura, responsáveis pelas roupas que vestimos todos os dias, está muito longe de ser valorizado nas páginas de revistas ou destacado nos grandes eventos de moda e, longe dos olhos de todos, elas também estão expostas a diversos tipos de abusos, violações de direitos e condições degradantes de trabalho, como eu conto na coluna 8M: Não queremos parabéns nem presentes. Queremos visibilizar as lutas dos outros 364 dias.

Quando olhamos para a verticalidade das relações de poder estabelecidas nas sociedades – e, consequentemente, nas cadeias de fornecimento – os motivos das desigualdades (e invisibilidade) ficam cada vez mais nítidos.

Trazer luz a essa questão pela lente da interseccionalidade nos ajuda a compreender o lugar que as mulheres que compõem a base da indústria da moda ocupam a partir das sobreposições de suas identidades sociais.

De acordo com Patricia Hill Collins e Sirma Bilge, professoras, sociólogas e autoras do livro “Interseccionalidade”, as relações de poder que envolvem raça, classe e gênero, por exemplo, não se manifestam como entidades distintas e mutuamente excludentes, mas se sobrepõem e funcionam de maneira unificada e, apesar de geralmente invisíveis, essas relações interseccionais de poder afetam todos os aspectos do convívio social.

Em relação a isso, no Brasil, Lélia Gonzalez, uma das nossas mais importantes intelectuais e pioneira nos estudos sobre cultura negra no país, mostrou que existe a ideia de que “está tudo bem” o fato de “a mulher em geral e a negra, em particular, desempenharem papéis sociais desvalorizados em termos de população economicamente ativa” e a aceitação, por exemplo, de que haja diferença salarial entre homens e mulheres ocupando a mesma função. Para ela, ser negra e mulher no país acumula uma camada tripla de discriminação, “uma vez que os estereótipos gerados pelo racismo e pelo sexismo a colocam no nível mais alto de opressão”.

No setor de confecção vemos que essas desigualdades, exploração e discriminação são acentuadas com o aumento de estratégias que priorizam o trabalho barato e precarizado.

O relatório Mulheres na Confecção: Estudo sobre gênero e condições de trabalho na Indústria da Moda, de 2022, aponta que há uma disparidade salarial entre mulheres de diferentes raças, com as indígenas e negras recebendo salários menores do que as brancas. Além disso, o estudo mostra que a precariedade e informalidade do setor dificultam o acesso a políticas e serviços de saúde e de cuidado e obstruem o pleno exercício da maternidade, em um mercado de trabalho em que somente 30,9% das brasileiras têm carteira assinada.

A atividade da costura, alicerce fundamental para o setor, faz uso intensivo de mão de obra frequentemente terceirizada, o que implica em uma fragmentação e maior vulnerabilidade no trabalho e empurra mulheres, principalmente aquelas que somatizam às opressões sociais, para empregos desvalorizados e, muitas vezes, sem a garantia de direitos básicos. Portanto, tomando emprestado a constatação de Françoise Vergès, eu digo: invisíveis, as mulheres da costura sustentam a indústria da moda.

*Eloisa Artuso é pesquisadora, designer estratégica e educadora com foco em justiça socioambiental na intersecção entre clima, gênero e moda. É cofundadora do Instituto Febre e do Fashion Revolution Brasil e professora de design sustentável no IED-SP. @eloartuso / eloisaartuso.com

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