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Paulo Alexandre Nogueira Salgado Martins, ou simplesmente Salgadinho, é a maior referência do pagode nacional. Autodidata, teve seu talento descoberto por professores que viram seu potencial ainda na época do colegial. Conseguiu ascensão em sua carreira como cavaquinista do grupo paulistano de pagode, Katinguelê, no qual se tornou principal cantor e compositor durante a década de 1990. Hoje, segue carreira solo como artista e produtor musical. Salgadinho busca abrir portas para novos sambistas e artistas que também figuram em outros ritmos musicais.

Nesta entrevista, Salgadinho fala um pouco sobre família, carreira, racismo e a importância da preservação do samba como patrimônio do povo brasileiro.

Com vocês: Salgadinho. Leiam com toda a calma do mundo.

Você é uma referência para muitos sambistas e pagodeiros. Como surgiu a sua paixão pela música?

Salgadinho – Olha, a minha avó e meu avô vieram de Minas Gerais para São Paulo quando tinham 14/15 anos com os filhos e uma dessas era minha mãe, dona Catarina. Eu cresci num ambiente onde tinha muita música. Meu avô tinha uma sanfona velha que ele arranhava um pouco e minha avó arranhava um pouco de cavaquinho também. Ir para São Paulo foi uma forma de driblar as dificuldades que eles passavam no sul de Minas. Os meus bisavós, por exemplo, foram escravizados. Naquela época ainda existia fazenda de escravos no Brasil. Apesar de tudo, a minha avó sempre foi muito corajosa, tinha muitos netos, e ela gostava sempre de arranhar seu cavaquinho. Minha mãe até conta uma história de que certa vez meu tio – tio Luizinho – , que herdou o cavaquinho da minha avó quando ela morreu, foi na nossa casa, eu devia ter uns dois anos nesta época, e eu havia pegado o cavaquinho dele e só conseguiram tirá-lo de mim quando eu dormi. Fique até com os dedos cheio de bolhas.

Foi aí que começou a minha história na música. Eu olho às vezes para o cavaquinho e penso: “putz, não é possível!”. Isso porque eu tive muitas conquistas através dele. Ao longo da minha trajetória, eu dei aula de cavaquinho, antes mesmo de ser famoso e conhecido pelo Brasil inteiro. Mesmo fazendo muitos shows, eu continuava dando aulas; quando eu não conseguia dar aulas, eu tinha vontade de gravar videoaulas tocando cavaquinho porque naquela época não existia, só existia para outros instrumentos como contrabaixo e teclado. Então, fui pioneiro em fazer vídeo ensinando a tocar cavaquinho no mundo junto da Editora Cortez. E deu super certo, porque a partir daí, se observarmos no mercado do pagode e da música hoje, tem vários artistas que começaram com o cavaquinho, como uma galera do sertanejo, que viram minhas videoaulas, o próprio Fejuca, Lincoln de Lima, cavaquinista do Ferrugem, e eles gostam muito de falar mesmo que sou referência, e isso me deixa muito feliz.

Quando somos mais jovens, parece que o futebol é a nossa única referência, pois não víamos engenheiros, médicos ou advogados pretos. Como foi essa questão das referências na sua vida?

Salgadinho – Tive mais a referência da minha família, porque assim, meus primos todos jogavam bola, e eu sempre joguei muito, sempre sendo o “camisa dez”. Eu achava que era impossível não seguir esse sonho porque eu jogava muito. E eu jogava tanto no meio da molecada quanto com os caras mais velhos. Só que, ao mesmo tempo, na minha família também tinha o pessoal que gostava de música.

Pra você ter uma ideia, eu repeti a sexta série porque eu faltava aula para jogar bola. Mas eu sempre fui muito bom no colégio também. Eu tive até dois professores nesta época, de português e de ciências: professor Hernanes e a professora Maria Aparecida, principalmente ela, viu um potencial em mim, porque mesmo faltando tanto, eu era muito inteligente, mesmo faltando a aula só para jogar. Isso foi na quarta série. E olha que eu já estava perto de estourar a idade para os testes, cheguei a fazer teste para a base do São Paulo, do Corinthians, mas na época não tínhamos muitas condições e cheguei até a passar fome e era muito difícil. Mas essa professora viu potencial em mim, chegou até a chamar a minha mãe para falar sobre. Na época também, eu lembro que essa professora gostava muito de fazer jogral dentro da sala de aula, em que ela separava os meninos das meninas e pedia para lermos em voz alta e isso ficava muito musical.

Uma vez eu voltei atrasado do recreio, e ela me pôs de castigo. Falou que eu iria ter que cantar uma música. E ela me pediu para cantar aquela música “Lua, escrava lua, o céu é verde e amarelo”, só que eu cantava essa música numa oitava acima e ficava muito legal e bem afinadinho e todo mundo batia palma depois. E ela disse isso para minha mãe: “você precisa observar seu filho”. Até então, eu não tinha me interessado por música, eu achava que a minha vida seria seguir no futebol.

E quando você percebeu que a carreira musical poderia realmente acontecer na sua vida?

Salgadinho – Nesta época, eu não tinha condição nenhuma de viver de música. O mercado que existe hoje no pagode não existia. Foi a minha geração que construiu esse mercado. Existiam os grandes ícones da música, mas o samba era muito nichado. Lembrando lá da quarta série, meus professores viram um potencial em algo que eu pudesse desenvolver e eles faziam isso com todos os alunos que se interessavam. O professor de ciências dava aula também de filosofia, e a filosofia foi fundamental na minha vida, você aprende a raciocinar por si, a nossa subjetividade. E ali foi onde eu comecei a entender quem eu era, o que me interessava. E foram essas coisas que salvaram a minha vontade de resolver a minha curiosidade.

Ao longo da sua trajetória, qual foi o momento que mais te marcou?

Salgadinho – Teve um show que fiz com o grupo Katinguelê, um show marcante, com mais de 4 milhões de pessoas no CERTE (Centro Esportivo, Recreativo e Educativo do Trabalhador). Também teve participações em grandes emissoras de TV, em que as pessoas começaram a me chamar de “gatinho do pagode”, mesmo eu querendo ser chamado de “pretinho do pagode”. E essas coisas também ferem muito a sociedade, das pessoas perguntarem o que esse cara tem que eu não tenho. Então, essas coisas são muito marcantes. Hoje, nós também temos muitas demandas em nosso escritório, e isso também é muito significativo. Chegar aqui no escritório e ver que um diretor que lá atrás me chamou para trabalhar com ele, hoje é meu sócio e meu empresário. E nós cuidamos de outros artistas do mercado musical e não somente do samba, e isso é muito importante, porque aprendemos a valorizar cada um para que eles possam crescer. Então, tudo isso me marcou muito.

Você acha que teve mais desafios sendo um homem negro que buscou uma carreira musical?

Salgadinho – Não é nem questão de achar, né? De fato, eu tive. Uma situação que passei há um tempo, quando fui levantar uma questão de que queria ir mais para TV, e uma pessoa virou para mim e falou que a minha música é linda e romântica, mas não combinava com a minha imagem. Quando entrei na sala dela, entendi na hora: tinham cartazes do João Paulo e Daniel, mas ele estava cortado no meio e só tinha o Daniel. E como eu iria explicar essa situação para o meu empresário na época? Não tinha como. Mas, mesmo assim, nós fomos para a TV e éramos apresentados como os gatinhos do pagode, porque cantávamos músicas que falavam de amor e estávamos sendo muito ousados. E nós queríamos falar de amor porque o preto também é afeto. Não podemos esquecer do afeto. Nós transamos, fazemos poesia, não falamos apenas de tristeza, de raiva. Eu virei poeta e não abro mão disso, por mais que sabemos que viver debaixo da pele preta neste país é o lugar mais perigoso do mundo.

Qual a importância da preservação desses ritmos para a comunidade negra?

Salgadinho – Nós precisamos preservar principalmente as coisas mais simples do samba, como o pagode, que é essa reunião dos sambistas. Nada mais é do que socializar com as pessoas, com os nossos. O pagode que leva o samba. Infelizmente, as multinacionais dividiram isso como se o pagode fosse um subgênero do samba. Não é. Uma coisa que fiz para driblar isso, foi criar a marca Pagode 90, da minha empresa. As pessoas começaram a tratar o pagode como um subgênero, mas a minha marca faz com que elas possam lembrar que o samba é um só, não existe isso de divisão. E é até natural que com o passar do tempo, os jovens entendam que a composição harmônica ou de uma melodia, ela pode ser diferente, e eles têm mais intuito de fazer isso, é até legal, mas é melhor quando isso acontece dentro do mesmo segmento: o samba. Essa é a importância de preservar. E é importante também entender que o samba é um ritmo brasileiro, e não do povo preto.

O que mais você se orgulha da sua carreira até aqui, e quais objetivos para o futuro?

Salgadinho – Eu quero ter meu jatinho, né? Hahahahaha! Eu tenho muito orgulho da minha família e de onde eu venho. De ter sido fruto de uma boa relação familiar. Dos meus avós terem tido a coragem de sair de onde eles saíram e de eu ter conseguido chegar até aqui. Tenho orgulho de muitas das minhas primas que são advogadas, médicas. E não foi somente o Salgadinho que deu certo na família. As mães da família que criaram suas famílias e conseguiram tocar suas carreiras, elas também deram certo, os pais também, apesar das dificuldades. Então, são pessoas que resolveram trilhar o caminho do amor, de ter mais paciência e sucumbir às diversas coisas que normalmente nós sucumbimos nas periferias e ter orgulho de estar vivo, de poder contribuir com as pautas sociais. Tenho orgulho da minha carreira com o grupo Katinguelê em todos os aspectos. Mas o que mais me deixa feliz mesmo é olhar para o meu cavaquinho e falar “cara, essa herança da minha avó me ajudou a abrir caminhos para mim e para os meus”.

Eu quero também poder colaborar para que os artistas pretos entendam o potencial que eles têm, que eles possam opinar e não ter que se encaixar em um formato em que sua voz não seja ativa. Hoje em dia, isso ainda acontece muito, mas a ascensão das redes sociais deu mais independência para os artistas, felizmente. Agora podemos falar e contestar.

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