Paulo Freire, em sua obra, defende um modelo educacional pautado na prática da liberdade. Essa educação é substancialmente aquela capaz de construir o ferramental nos sujeitos de forma que possam superar as forças de dominação e opressão na sociedade, as forças que desumanizam e, assim, afirmar uma vocação “no anseio de liberdade, de justiça, de luta pela recuperação de sua humanidade roubada”.

Tal libertação, segundo o educador, só pode ocorrer “quando implica uma consciência crítica da relação implícita entre consciência e mundo” e, ainda, é um processo pelo qual “o educador convida o educando a reconhecer e a desvelar a realidade criticamente”, ensina Freire. Para que essa educação possa acontecer, é preciso que as condições mínimas estejam colocadas: boa formação inicial e continuada e valorização docente; infraestrutura adequada, com condições de acesso, permanência, e inclusão; um currículo substancial, profundo, e ao mesmo tempo em um processo de gestão democrática em que, juntos, permitam a construção dialógica e crítica do conhecimento entre pares e entre educadores e educandos. E essa educação, definitivamente, não é aquela ofertada pelo novo ensino médio, pelo contrário.

Em 2022, por ocasião das Eleições, dez organizações científicas e da sociedade civil, entre elas a Campanha Nacional pelo Direito à Educação – rede da qual faço parte –, escreveram uma Carta Aberta em Defesa da Revogação da Reforma do Ensino Médio. Esta carta conta hoje com o apoio de mais de 300 entidades do campo educacional, com representação de todo o país de professores, trabalhadores da educação, estudantes, pesquisadores, orientadores educacionais, dirigentes, conselheiros, etc.

Na carta, se apresentam 10 pontos que comprovam que “o compromisso da atual Reforma do Ensino Médio não é com a consolidação do Estado Democrático de Direito e nem com o combate às desigualdades sociais e educacionais no país. A Reforma está serviço de um projeto autoritário de desmonte do Direito à Educação como preconizado na Constituição de 1988”. De fato, os primeiros impactos concretos da implementação da Reforma nos estados vão mostrando que a Lei 13.415/2017 vincula-se a um projeto de educação avesso à democracia, à equidade e ao combate das desigualdades educacionais, uma vez que ela:

1) Fragiliza o conceito de Ensino Médio como parte da educação básica, assegurado na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), na medida em que esta etapa deixa de ser uma formação geral para todos. A incorporação do Ensino Médio na educação básica foi uma conquista recente do processo de democratização, e ainda não consolidada. Diante de um ensino secundário historicamente elitista, estratificado e propedêutico, a integração do Ensino Médio à educação básica foi uma medida importante para democratizar esta etapa, juntamente com a garantia de oferta de ensino noturno adequado às condições dos estudantes trabalhadores e da modalidade de Educação de Jovens e Adultos (EJA) – ambos negligenciados pela Lei 13.415/2017;

2) Amplia a adoção do modelo de Ensino Médio em Tempo Integral sem assegurar investimentos suficientes para garantir condições de acesso e permanência dos estudantes, excluindo das escolas de jornada ampliada estudantes trabalhadores e aqueles de nível socioeconômico mais baixo, bem como estimulando o fechamento de classes do período noturno e da EJA;

3) Induz jovens de escolas públicas a cursarem itinerários de qualificação profissional de baixa complexidade e ofertados de maneira precária em escolas sem infraestrutura. Evidência disso é o Projeto de Lei 6.494/2019 que tramita na Câmara dos Deputados e visa alterar a LDB, propondo o aproveitamento “das horas de trabalho em aprendizagem para efeitos de integralização da carga horária do Ensino Médio até o limite de 200 horas por ano”. Mais uma vez, o que se propõe é a interdição do acesso qualificado ao conhecimento científico, à arte, ao pensamento crítico e reflexivo para a imensa maioria dos jovens que estudam nas escolas públicas, e que respondem por mais de 80% das matrículas do Ensino Médio no país;

4) Coloca em risco o modelo de Ensino Médio público mais bem-sucedido e democrático do país: o Ensino Médio Integrado praticado pelos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia. Trata-se de um modelo que adota cotas sociais e raciais de ingresso desde 2012 e que apresenta resultados excelentes em avaliações de larga escala como o PISA. Seu centro organizador é a integração entre uma Formação Geral Básica fundada nos princípios do trabalho, ciência, cultura e tecnologia e a Educação Profissional de Nível Técnico. A Lei 13.415/2017 rebaixa a educação profissional à condição de “itinerário formativo”, dissociando a formação geral básica da educação profissional;

5) Aumenta consideravelmente o número de componentes curriculares e acentua a fragmentação. Uma das justificativas para a Reforma do Ensino Médio era justamente a necessidade de diminuir o número de disciplinas escolares obrigatórias. Contudo, a implementação da Reforma nos estados vem realizando exatamente o contrário. Embora existam variações entre as redes estaduais, no estado de São Paulo – a título de exemplo – o 2º ano do Ensino Médio em 2022 possui 20 componentes curriculares;

6) Desregulamenta a profissão docente, o que se apresenta de duas formas: 1) construção de itinerários formativos que objetivam a aquisição de competências instrumentais, desmontando a construção dos conhecimentos e métodos científicos que caracterizam as disciplinas escolares em que foram formados os docentes, desenraizando a formação da atuação profissional; e 2) oferta das disciplinas da educação profissional por pessoas sem formação docente e contratadas precariamente para lidar com jovens em ambiente escolar. Tudo isso fere a construção de uma formação ampla e articulada aos diversos aspectos que envolvem a docência – ensino, aprendizagem, planejamento pedagógico, gestão democrática e diálogo com a comunidade;

7) Amplia e acentua o processo de desescolarização no país, terceirizando partes da formação escolar para agentes exógenos ao sistema educacional (empresas, institutos empresariais, organizações sociais, associações e indivíduos sem qualificação profissional para atividades letivas). Uma das dimensões desse problema é a possibilidade de ofertar tanto a formação geral quanto a formação profissionalizante do Ensino Médio a distância, o que transfere a responsabilidade do Estado de garantir a oferta de educação pública para agentes do mercado, com efeitos potencialmente catastróficos para a oferta educacional num país com desigualdades sociais já tão acentuadas;

8) Compromete a qualidade do ensino público por meio da oferta massiva de Educação a Distância (EaD). A experiência com o ensino remoto emergencial durante a pandemia da Covid-19 demonstrou a imensa exclusão digital da maioria da população brasileira, que impediu milhões de estudantes das escolas públicas de acessarem plataformas digitais e ambientes virtuais de aprendizagem. As mesmas ferramentas utilizadas durante a pandemia estão agora sendo empregadas pelos estados na oferta regular do Ensino Médio, precarizando ainda mais as condições de escolarização dos estudantes mais pobres;

9) Segmenta e aprofunda as desigualdades educacionais – e, por extensão, as desigualdades sociais –, ao instituir uma diversificação curricular por meio de itinerários formativos que privam estudantes do acesso a conhecimentos básicos necessários à sua formação, conforme atestam pesquisas comparadas que analisaram sistemas de ensino de vários países; e

10) Delega aos sistemas de ensino as formas e até a opção pelo cumprimento dos objetivos, tornando ainda mais distante a consolidação de um Sistema Nacional de Educação, como preconiza o Plano Nacional de Educação 2014-2024 (Lei 13.005/2014).

Diante das evidências – empíricas e científicas –, não há como defender esta reforma. Ainda, ela é equivocada em sua base – como já mostramos – e em sua origem e forma de elaboração: criada em institutos e fundações de cunho empresarial, descoladas completamente da comunidade educacional, e por meio de uma medida provisória, mecanismo verticalizado. Não há, portanto, remendo que solucione o tamanho do problema.

O novo ensino médio é, ao contrário da educação defendida por Freire, da qual tratamos no início dessa conversa, uma educação alienante. Ele alimenta a domesticação e o mecanicismo, aprofunda as desigualdades sociais, colabora com uma sociedade que reduz as camadas pobres e marginalizadas à subserviência, à condição de exploração que impedem às pessoas de ser mais.

Precisamos defender, radicalmente, que a educação seja humanizante, seja avessa à injustiça e à desigualdade, seja emancipatória. Para isso, precisamos revogar o NEM, precisamos iniciar um processo de construção democrática de uma educação prática da liberdade, precisamos fazer história:

Espero que muitos de nós estejamos aprendendo como é difícil fazer história, e como é importante aprender que nós estamos sendo feitos pela história que fazemos no processo social dentro da história. (Paulo Freire e Myles Horton, em O Caminho se faz caminhando, 2003).

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