“Nosso território não é uma coisa, nem um conjunto de coisas utilizáveis, exploráveis, nem tampouco um conjunto de recursos (…) nosso território, com suas florestas, suas montanhas, seus rios, suas lagoas e pântanos, com seus lugares sagrados onde vivem os supai (deuses protetores), os seus solos negros, vermelhos e arenosos e suas argilas, é um ente vivo que nos dá vida, nos fornece água e ar; cuida de nós, nos dá comida e saúde; nos dá conhecimento e energia; nos dá gerações e uma história, um presente e um futuro; nos dá identidade e cultura; nos dá autonomia e liberdade. Assim, juntamente com o território é vida e juntamente com a vida é dignidade; juntamente com o território é a nossa autodeterminação como povos”.
Povo Kichua de Pastaza, Amazonia do Equador

A mineração ilegal – o garimpo – é a extração de minerais sem as devidas permissões e autorizações governamentais. É um problema comum para muitos países latino-americanos e é especialmente preocupante porque afeta diretamente os povos indígenas e a biodiversidade territorial.

É uma problemática alarmante no contexto latino-americano e seu tratamento é totalmente relevante no início do 23º ano do novo século. A mineração ilegal se expandiu nos últimos anos devido a uma resposta política fraca e à falta de medidas eficazes por parte da maioria dos governos para combatê-la. Nesse contexto, embora as emergências ambientais sejam globais, nosso “território” está vivenciando essa realidade decorrente da exploração irracional e mercantilista dos seus recursos.

Estamos falando de uma questão complexa ligada à economia regional que afeta todos os países da América Latina, particularmente os da Amazônia. Afeta as populações indígenas, a biodiversidade territorial, a saúde ambiental, os direitos humanos, especialmente das mulheres.

Envolve frequentemente grupos criminosos (uma espécie de cartéis do garimpo, em alguns casos com vínculos para além do continente), que se aproveitam das comunidades locais, dos trabalhadores e da precariedade das administrações governamentais. Esta situação traduz-se em contínuas violações dos direitos humanos, abusos laborais, racismo, discriminação e violência contra as mulheres, além do trabalho infantil.

Em termos ambientais, a mineração ilegal utiliza técnicas inseguras, predatórias e poluentes, o que está levando a uma grave degradação das águas, dos solos e à perda da biodiversidade. Entre essas técnicas, o uso extensivo do mercúrio no tratamento da separação do ouro está provocando graves consequências para a saúde humana e animal.

Portanto, concentremos nossa atenção na monumental Amazônia, que é sem dúvida um dos ecossistemas mais ricos em termos de biodiversidade de todo o planeta e é, em correlação, uma das áreas mais afetadas pelo garimpo na América Latina. São nove os países que fazem parte dela: Brasil, Peru, Colômbia, Venezuela, Equador, Bolívia, Suriname, Guiana e Guiana Francesa.

É necessário que nós, habitantes da maior floresta contínua do mundo, estabeleçamos limites, cuidados e acordos de co-responsabilidade. Somos um continente emergente, que tem a sorte de ser habitado por populações ricas em ancestralidade e culturas que marcam identidade, ligações diretas com rios, florestas e seus habitantes habituais de fauna e flora, sentidos autênticos de conhecimento e cuidado.

Para explicar o problema, destacamos alguns dados específicos de quatro países amazônicos que ilustram e exemplificam a sua magnitude como um todo:

No Brasil, o presidente Lula afirmou que: “Mais do que uma crise humanitária, o que eu vi em Roraima foi um genocídio, um crime premeditado contra os Yanomami, cometido por um governo insensível ao sofrimento do povo brasileiro”. Ele falava sobre sua visita ao povo Yanomami no segundo mês de seu mandato. Cerca de 600 crianças desta comunidade indígena morreram nos últimos quatro anos devido à desnutrição, malária e outros problemas de saúde.

Para o povo Yanomami do Brasil, a crise alimentar e sanitária teve origem em 2019 com a invasão de seu território por mais de 20.000 garimpeiros ilegais, promovida pelo ex-presidente de extrema direita Jair Bolsonaro.

A Bolívia, outro país amazônico, está entre os maiores importadores mundiais de mercúrio – juntamente com a China, os Emirados Árabes Unidos, a Federação Russa e a Índia – de acordo com o relatório ‘Mercúrio, mineração de ouro em pequena escala e direitos humanos’ apresentado à Organização das Nações Unidas (ONU).

O problema é ainda mais complicado devido às provas de que os cidadãos chineses estão operando na área para extrair ouro. Empregados e residentes locais afirmam que trabalham para empresas chinesas que se escondem atrás de cooperativas mineiras em troca de uma renda.

A extração de ouro destruiu a natureza nessas aldeias e o impacto chega a Madidi, uma das áreas mais importantes do mundo em termos de biodiversidade. Todos os dias, milhares de litros de água contendo metais pesados e outros poluentes mancham os rios que correm para a área protegida de Madidi.

Para a Colômbia, a extração ilegal de ouro não é um fenômeno recente, mas está afetando cada vez mais o ecossistema. Grandes retroescavadeiras sugam sedimentos de rios em áreas de cultivo de ouro. Para extrair o minério, eles amalgamam o sedimento com substâncias tóxicas e proibidas, como o mercúrio; uma vez separado o ouro, o mercúrio retorna aos rios, envenenando tudo em seu caminho.

O relatório ‘Alluvial gold mining: evidence from remote sensing 2021’ revelou que 65% da mineração de ouro no país, excluindo a mineração subterrânea e de subsistência, é ilegal. Os dados preocupantes do relatório não param por aí. Ele também constatou que 49.469 hectares de mineração de ouro estão em áreas ambientalmente protegidas, como reservas florestais, parques nacionais ou sítios de Ramsar (Zonas Úmidas de Importância Internacional).

No Peru, a mineração ilegal está destruindo florestas numa das regiões mais biodiversas do país, grandes áreas naturais protegidas, como a Reserva Nacional de Tambopata, a Reserva Comunal de Amarakaeri e o Parque Nacional de Manu.

O último relatório da ‘Conservación Amazónica ACCA’, publicado em maio de 2022, afirma que a perda de floresta nesta região está avançando a um ritmo acelerado, com 3688 hectares de floresta desmatados entre 2019 e março de 2022.

“Os mineiros ilegais exploram os depósitos sem considerar se se trata de uma área natural protegida ou se existe uma comunidade indígena. Como parte das suas atividades, destroem não só a floresta, mas também toda a camada de solo e o substrato, que acaba por ser praticamente irrecuperável”, acrescenta Novoa da Conservación Amazónica-ACCA.

Um estudo realizado pela Rede Amazônica de Informação Socioambiental Georreferenciada indica que 26% das florestas amazônicas foram transformadas de maneira irreversível e apresentam um alto nível de degradação. A savanização da Amazônia já está presente no Brasil e na Bolívia, enquanto Equador, Colômbia e Peru estão avançando no mesmo sentido.

“Estamos destruindo a água, a biodiversidade, os alimentos. Os seres humanos, as empresas extrativistas e os governos continuam com uma economia de combustíveis fósseis e estão destruindo nosso presente e nosso futuro. Esta é uma chamada de emergência”, disse José Gregorio Díaz Mirabal, coordenador geral da Coordenação das Organizações Indígenas da Bacia Amazônica (COICA).

A integração latino-americana é fundamental para enfrentar essa crise socioambiental e defender nosso território. Devemos trabalhar juntos para estabelecer políticas e estratégias que permitam proteger os recursos naturais, combater firmemente a mineração ilegal, proteger as populações indígenas que habitam seus territórios, encorajar práticas sustentáveis e promover a conservação da biodiversidade.

O Brasil empreendeu operações de segurança pela polícia federal, medidas legais para proteger a saúde das populações afetadas e desativação de infraestrutura de garimpos ilegais.

Na última reunião, representantes dos 33 países da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC) aplaudiram unanimemente o retorno do Brasil ao fórum regional, o que implica um fortalecimento regional em questões como defesa da Amazônia, meio ambiente, integração econômica e cooperação mútua.

Os presidentes da Colômbia e da Bolívia declararam que pretendem realizar projetos regionais para enfrentar a crise climática, gerar energia limpa, contribuindo para a descarbonização das economias mundiais.

A luta contra a mineração ilegal certamente deverá envolver ações integrais, transfronteiriças, programas regionais, mecanismos colaborativos em diversos aspectos e algo que consideramos fundamental: a participação direta nas soluções das populações afetadas, dos povos que vivem ancestralmente na região amazônica.

O território, como disseram acima os povos quechuas, segundo a concepção dos povos indígenas, habitantes ancestrais da América Latina, integra os elementos da vida em toda sua diversidade natural e espiritual. Os ecossistemas naturais são considerados como habitat dos deuses protetores da diversidade da vida e graças a eles se mantém a integridade e o equilíbrio da floresta, dos rios, dos lagos e a fertilidade do solo, o que permite que as plantas e animais possam viver e reproduzir-se.

“Nossa tradição ancestral nos ensina que o território não é um recurso a ser explorado, é um espaço vivo. Homens e mulheres são uma comunhão parte desse espaço natural onde compartilhamos a vida com outros seres vivos em uma relação de reciprocidade”.

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