Desfile do bloco Dehja8. Foto: Arquivo pessoal

 

Por Lenine Guevara

No último decênio que antecedeu a pandemia, no Brasil inteiro testemunhamos o retorno do carnaval de blocos, fantasias, ocupações de ruas e avenidas por movimentações independentes. Em Salvador não foi diferente. Desde 2012, amigos do samba, artistas e fazedores de cultura, moradores e frequentadores do bairro Santo Antônio Além do Carmo ocupam as ruas do bairro no sábado antes do carnaval com o bloco Dehja8, expressão baiana que significa “de hoje até daqui a uma semana”.

Saímos no sábado que antecede o carnaval oficial da cidade, com intuito de nos divertirmos ao realizar uma festa para o bairro, com a presença de crianças, famílias e conversa constante com a comunidade. Nosso objetivo desde o início foi fortalecer e valorizar o samba da Bahia, que na década passada havia praticamente esvaído da agenda carnavalesca da cidade, dominada pela indústria da Axé Music. Nossa ação central: cantar a memória de mestres como Ederaldo Gentil, Batatinha, Riachão, Guiga de Ogum, dos blocos de índio, da histórica local que foram motivos dos sambas-enredo. Nos movia também promover uma festa diversa, sem as cordas materiais e simbólicas que dividiram pagantes e pipoca na indústria do carnaval.

Para tanto, nascemos pequenos, do tamanho do bairro e logo ganhamos público específico que ao longo dos anos fazia guarda para a bateria passar sem cordas nas ruas do Santo Antônio. Para além do bairro, os amigos do bloco chamados de anjos, nos amparavam nas situações mil que envolvem nossa saída carnavalesca: trânsito, presença de carrinhos de cerveja de ambulantes, pedido carinhoso de atenção ao bairro para o uso apropriado dos banheiros, cuidados e confianças que renderam ao longo de 13 anos, 10 saídas carnavalescas que foram de 3 a 30 mil pessoas, sem o registro de nenhuma violência durante os sábados que antecedem o carnaval ano a ano.

Assim como diversos blocos das capitais brasileiras, enfrentamos durante esse percurso o inchamento da festa. Desde 2016 o inchamento do bloco vem fazendo repensar nosso lugar como coletivo. A atenção que até então era local, nessa saída que homenageou o cronista da cidade, o saudoso mestre Riachão em presença, nos colocou na agenda de Salvador.

Desde então, manter nosso lema de bloco sem cordas e sem patrão tornou-se uma resistência pública, que confrontou diversas dinâmicas da indústria do turismo, do entretenimento e da especulação no bairro do Santo Antônio. Até o ano de 2018, conseguimos manter a autonomia na produção de nossas saídas, ainda que o poder público, a indústria e patrocinadores do carnaval viessem tentando tomar a produção da festa, incidindo diretamente na característica independente.

Todos os anos os integrantes do bloco, produtores das artes e da cultura, pedem alvará de saída e apoio estruturante para a prefeitura que, quando colabora, oferta contingentes mínimos de apoio de banheiros químicos, limpeza urbana e fechamento de trânsito, o que era compreensível até o inchamento da festa. Em geral, todos esses quesitos em maior parte são produzidos pelos próprios integrantes do bloco, que além de ensaio de bateria, composição de samba-enredo, confecção de barracão para abre alas, porta-bandeira e mestre sala, fazem aluguel de estrutura sonora, de banheiros químicos, festas de arrecadação, cuidando do diálogo com o bairro através de reuniões e comunicações, além das interações com demais blocos do bairro e com os órgãos da prefeitura.

Mas o que aconteceu no bairro em 2018? O Santo Antônio já vinha se tornando foco e retornando a magia do centro antigo, antes abandonado pelos moradores de Salvador e destinado mais aos contingentes de turistas da cidade. O bairro, caracterizado por moradores antigos e por forte presença de comerciantes, teve seus altos e baixos em sua relação com a cidade. Frequentado por Gil na juventude por exemplo, observamos que o carnaval de bloco e a bohemia não era novidade, mas, dos anos 90 à primeira década de 2000, houve abandono de muitos moradores com o fenômeno de crescimento da violência urbana e busca de segurança da classe média na orla, em prédios e condomínios fechados.

O Bloco DEHJA8 surge em um momento em que diversos coletivos e artistas resolveram ocupar, produzir e viver no bairro. Na conjunção da presença do Grupo de Interferência Ambiental (GIA), da casa de arte Baluarte, dos grupos de capoeira, das rodas de samba do grupo Botequim, da presença de pessoas da cultura popular do Maranhão, de Pernambuco e de São Paulo, e por fim, da presença de Flávio Oliveiras que nasceu no bairro e que tinha um bar/galeria chamado Oliveiras abaixo de seu ateliê de artes e ofícios. Durante o primeiro ciclo de saídas do bloco (2012-2017), o Oliveiras, semente do samba, como cantamos em nosso enredo neste ano de 2023, homenageando a Flos (como era conhecido carinhosamente), era o principal ponto de encontro e refúgio. O Oliveiras era um bar daqueles que cada um tinha uma continha e ficava devendo ao amigo. Flávio era o nosso elo, era o chão do próprio bairro, aquela pessoa que fazia de dentro do bloco, a voz do bairro, era nosso prefeito, amigo, irmão.

Em 2018, entretanto, temos uma reviravolta na vida do bairro com a presença da novela “Segundo o Sol”, gravada lá e que tematizava justo a cidade de Salvador. Nesse percurso, o espaço cultural Oliveiras passa a integrar as revistas e programas de empresas aéreas. Se o bar já vinha saindo do caráter quase exclusivo de ponto de encontro entre amigos, a partir daquele momento o Oliveiras foi tomado por uma efervescência do tamanho da cidade.

Flos ganhou Salvador, fazendo grafite, trabalhos gráficos com a Sociedade da Prensa para tudo quanto é coletivo, grupo e artistas da cidade e comunidade do bairro, promovendo um recanto de música com galeria no Oliveiras.

Depois dessas atenções, se o bairro já vinha recebendo outros bloquinhos de outros bairros da cidade no sábado antes do carnaval, passamos para um embate direto com a indústria, quando na saída de 2019, enfrentamos o bloco “Harém” publicamente em reuniões de bairro, em jornais e em espaços de debate como o Sofá na Rua da Casa Ninja Bahia.

O que ocorreu foi que o Harém promoveu uma festa privada no dia da saída do DEHJA8. Até aí, tudo bem. Mas, para deixar seu público privado alegre, queria contratar uma banda para encontrar com o DEHJA8 na praça do Santo Antônio. Ou seja, aproveitar-se da multidão que seguia o bloco registrando com fotos e filmagem aéreas da multidão cada vez mais agalopada. Todo mundo lindo e fantasiado, como fosse a mesma coisa, um bloco que nasce na antítese de outro que promove gratuidade para as mulheres “mais bonitas da cidade”. Resultado: não aceitamos a “parceria” e mudamos a data da nossa saída.

Assim como o Harém, entretanto, muitos blocos da cidade passaram a promover festas privadas no dia da saída, como também a trazer suas movimentações para o bairro e para a data.

No ano seguinte, 2020, buscando um desfile com conforto e possibilidade de tocar, mantivemos a data, mas com o horário da saída pela manhã. Tivemos que, a contragosto, colocar um anteparo carnavalesco de proteção da bateria: uma cobra fofa de espuma entre bloco e foliões. O resultado foi razoável, mas boa parte da bateria passou mal com o sol do 12h.

Desfecho que nos deixou sem chão após a saída, porque assim como nosso público, nossos anjos, relatos de moradores do bairro, o agigantamento da multidão começava a mexer na nossa capacidade de se divertir com a saída.

Mal prevíamos a saudade que viria a seguir com o trancamento por dois anos sem saída devido à pandemia da Covid-19.

Antes de seguir, é importante dizer que desde 2016 enfrentamos não apenas o inchamento do bloco, mas uma mudança de postura no modo como nos articulamos e mesmo em nossas letras de samba-enredo, acompanhando o golpe e o pandemônio.

Iniciamos nossa jornada com o foco temático do samba da Bahia, que por si já é resistência. Mas aquele ano de 2016 simbolizou não apenas o momento ápice do “sucesso” do bloco, mas o ponto de virada para uma atuação cada vez mais aguerrida. Desde lá, nossos sambas enredo marcaram as perdas, a resistência diante do arbítrio, o alinhamento aos movimentos contrários ao golpe nas artes e nas culturas, o que se intensificou ainda mais com a eleição de 2018, até a pausa devido à crise sanitária.

A multidão, que há 3 anos estava sendo o maior mote de nossas pautas, virou um problema pandêmico, generalizado, global.

Temos certo que todos perderam algum conhecido ou ente querido na pandemia. O Bloco Dehja8 perdeu Flávio. O Santo Antônio Além do Carmo perdeu o Flavinho, o Flos. Salvador perdeu o Urso (apaixonado pelo Homem da meia noite de Olinda, Flos criara outro bloco chamado Urso da Meia Noite, no Oliveiras). Nós todos perdemos o abraço do Urso.

Homenagem a Flávio Flos. Foto: Arquivo pessoal

Durante o carnaval de 2021, sem festas formais, já observamos que o bairro virou o foco das multidões. De minha casa na rua Direita, não parava de passar uma multidão triste sem carnaval, como predizendo a perda que viríamos passar logo adiante com a morte do Flavão.
Ávidos pela cura que apenas a multidão também promove, o Bloco Dehja8 voltou às ruas do Santo Antônio esse ano homenageando este amigo, este menino rei como chamamos, coroado pela festa popular e pelos saberes de ofícios que o bairro testemunhou.

No Samba-enredo, pedimos a justiça de Xangô para cair sobre a vileza, a truculência daqueles que nos colocaram em tempos de ódio e de afastamento simbólico, mais violento do que o afastamento gerado pela crise sanitária.

Na saída, nosso carro de som pela primeira vez empacou, a multidão que chegou perto do espetáculo, boa parte vinda de outros bairros, países, não compreendia que movimentação era aquela nossa. Nessa 10ª saída, foi a primeira vez que havia mais pessoas que não nos conheciam. Instauramos uma data e muita gente nem se dá conta que é uma saída, como vemos um desfile de samba (diferente, menor, mais caótico e com poética própria).

Na minha leitura chegamos ao ponto que teremos de refazer os caminhos ao reafirmar o movimento do samba e de bloco, dentro do próprio evento que criamos.
Como uma espiral da história, o carnaval chegou até o Dehja8, emendando as datas e fazendo com que a cidade, encantada pelo bairro, agora vendido como imagem de Salvador, realmente possa conhecer o que é o carnaval independente e o bloco.

Foto: Arquivo pessoal

Compreendemos que os demais blocos da cidade queiram fazer parte dessa conjuntura, colocar o bloco na rua em um momento de tanto público, fazer sua festa na multidão.

Mas, vejam bem, principalmente àqueles que gostam de nós e do movimento que instauramos: nós somos um desfile, temos evoluções pelas ruas, abrimos roda e saudamos lugares importantes nessa caminhada, parceiros do bairro como o bar DeVenetta, responsável pelo Bloco Rodante, os bares da Cruz do Pascoal, a casa de Maria Maranhão e o Oliveiras. Tão conturbada estava a presença de outros blocos na passagem do Dehja8 que não conseguimos abrir uma roda e saravar nosso amigo Urso, homenageado em frente ao Oliveiras.

Vejam bem amigos, prefeitura, poderes públicos, são 10 saídas com inchamento, sem nenhuma violência.

Não temos mais como arcar com a responsabilidade de uma multidão de 30 mil pessoas, sem cooperação dos poderes públicos e sim, dos bloquinhos e demais entidades que estão ocupando o sábado.

Não queremos e não deixaremos o Santo Antônio virar circuito domado, promovendo a estética envelopada da prefeitura e o patrocínio de cervejarias. Nosso movimento nasceu avesso à essa estética e a essa política do carnaval. Demonstrar que respeitam nossa história e nossa tentativa de manter um carnaval de bairro que é oferenda pra cidade, porque não ganhamos um real com a produção, é reconhecer que sim, em uma multidão de 30 mil pessoas, precisamos das inteligências de trânsito, presença de polícia e bombeiros, maior quantitativo de banheiros, que nunca é cedido sobre a desculpa que estão em outros eventos da cidade.

São 10 anos de saída com a mesma desculpa e um abandono em cima da hora, por não vestirmos a logo da prefeitura. Mas condição há. O carnaval comprova o contingente, as festas de largo também. O poder público precisa compreender que sim, estamos mesmo do lado da minoria. Das pessoas mais velhas que habitam o bairro, dos nascidos no bairro assim como Flos, da poética menor, do tipo menor de carro de som e do movimento de samba.

Precisamos que o bairro, os blocos e poderes públicos compreendam a descaracterização do movimento e nos apoie. Precisamos que nossos foliões que nos acompanharam por tantas saídas acreditem que é possível voltarmos a uma festa de magia, olho no olho e de afirmação da diversidade, convivência intergeracional e comunhão. Senão vai ser mais um dia de carnaval com a transferência da experiência da Barra, Rio Vermelho para o Santo Antônio.

No Santo Antônio, não tiramos o pé do chão. Ouvir relatos de momentos assim é chamar a todos para ficarmos atentos ao delírio da multidão como sucesso, como imutável, como bastião da diversão per si. Foi a partir desse carnaval que quisemos fazer uma festa onde era possível se ver, se fantasiar, se encontrar, construir no presente a memória, o legado do samba e de “outros carnavais”.

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