Durante a pandemia de Covid, fechado em casa apenas com Silvana, minha companheira, por sugestão dela, fiz um plano de estudos para conhecer mais a fundo a história da formação do patriarcado. Em dias de reclusão, fui realizando minhas leituras e pesquisa, sobretudo a partir de literatura feminina. Com isso, histórias e referências que eu conhecia superficialmente, mesmo sendo historiador, foram se desvelando. Outras, passei a conhecer a partir daquele momento. Histórias escondidas, silenciadas, das mulheres do Brasil. São muitas!

Nessa série eu apresento apenas algumas histórias em forma de pequenos artigos, como retribuição do que fui conhecendo. Histórias de mulheres extraordinárias. Que sirvam de estímulo para o aprofundamento e novas descobertas. Cada qual daria roteiro para filmes ou séries, livros, exposições em Museus, aulas. No quinto e último artigo, escrevo sobre as origens do patriarcado. O patriarcado é a primeira de todas as opressões, foi quando surgiu a ideia de posse e exploração, primeiro dos homens sobre as mulheres. Depois, dos homens dominantes sobre os demais homens e mulheres. E dos humanos sobre os demais seres da natureza. Apesar dessa dominância, as mulheres fizeram e fazem história, conhecer essas histórias é o primeiro passo para superar a exploração e superar o patriarcado. E superar o patriarcado é libertar a humanidade. Por isso, é tarefa de todas, de todos e de todes.

Espero que apreciem as histórias.

Grato!

Célio Turino

Mulheres do Brasil: sufragistas

“Para uma mulher vencer na vida ela tem que se atirar. Se erra uma vez, tem que tentar outras cem. É justamente a nova geração a responsável por levar adiante a luta da mulher pela igualdade.”
(Berta Lutz – bióloga, líder feminista e sufragista)

Foi nos Estados Unidos que aconteceu a primeira Convenção pelos Direitos das Mulheres, em 1848. Ao final do encontro as mulheres aprovaram a Declaração de Direitos e Sentimentos:

“Nós insistimos que às mulheres seja dado acesso direto a todos os direitos e privilégios que lhes são devidos como cidadãs dos Estados Unidos. Nós empreendemos esse grande projeto que está diante de nós, mesmo que contemos com o fato de sermos mal compreendidas, erroneamente citadas e ridicularizadas; mas nós vamos usar de todos os meios que estão em nossas mãos para alcançar esse objetivo.”

A luta pela emancipação da mulher estava começando no continente americano. Na Europa, associações sufragistas eram formadas. Quanto mais as mulheres levavam adiante a luta pela igualdade, mais o patriarcado tentava impedi-las. Políticos, empresários, fazendeiros e jornalistas tentavam desfazer delas. Estudiosos homens buscavam “provas científicas” da inferioridade da mulher, um psiquiatra europeu, Julius Möbius chegou a escrever o tratado “Sobre a imbecilidade fisiológica da mulher”.

Mas nada deteve as mulheres, que reagiram na literatura, nas artes, na vida doméstica, no trabalho e na ação política. No Brasil, a jornalista e escritora pernambucana, Josefina Álvares de Azevedo reivindica que as mulheres poderiam ocupar os mesmos espaços que os homens, “do governo da família ao governo do Estado”. Em 1890, ela escreve o livro “A Mulher Moderna” e a peça teatral “O voto feminino”, encenada para influenciar a primeira Constituição da República, em 1891 (aproveito para sugerir novamente a encenação da peça, adaptada aos dias atuais). Em vão. Os homens da Assembleia Constituinte da nascente república não lhe dão ouvido e as mulheres seguem sem direito ao voto.

No século XIX a luta pela emancipação feminina esteve associada aos direitos educacionais para as mulheres, um Educacionismo que começou por Nisia Floresta, passou por Francisca Senhorinha até Leonilda Daltro, quase na virada do século.

Leonilda Daltro foi uma grande precursora do feminismo e sufragismo no Brasil, também defensora dos direitos dos povos indígenas, da alfabetização e da instrução laica. Dessas intelectuais e ativistas quase esquecidas nos tempos atuais. Em 1910, Leonilda, liderando muitas mulheres, fundou o primeiro partido político brasileiro exclusivamente formado por mulheres, o Partido Republicano Feminino, PRF. O direito ao voto seguia negado às mulheres, mas elas já tinham o seu partido político.

Na luta pela emancipação feminina, além do direito à educação para as mulheres e sufrágio feminino, as feministas no início do século XX defendiam: registro civil de nascimento, casamento e óbito, e que esse registro pudesse ser feito por mulheres e não somente por homens, como era à época; liberdade de culto religioso e direito à remuneração pelo trabalho. Temas e questões atualmente considerados naturais foram conquistas da cidadania, fruto de muita luta, alcançadas, sobretudo, pela luta das mulheres através do feminismo.

Em 1910, as mulheres do Partido Republicano Feminino se engajam na campanha de Hermes da Fonseca, muito por conta da esposa dele, Nair de Teffé, de quem citei no artigo anterior. Ainda assim não conseguiram o direito ao voto. Também se associaram ao deputado Maurício de Lacerda, tribuno bastante progressista para a época, e que intercedeu pelo direito ao voto feminino. Novamente, não conseguiram o intento.

Para amplificar a voz das sufragistas Leonilda Daltro e outras mulheres lançaram o jornal A Política, depois, a Tribuna Feminista; também a Escola Orsina da Fonseca, na capital Federal, voltada para a instrução de meninas e moças. No início do século XX os jornais feministas e a Escola Orsina da Fonseca tornam-se os centros luta social e política pelos direitos das mulheres no Brasil.

Mas a resistência do patriarcado também era dura. Os homens em espaços de poder chamavam as sufragistas brasileiras de “Mulheres-Homens”. Algo não muito diferente de tratamentos atuais, quando mulheres de movimentos feministas são atacadas como “inimigas dos homens”, “mal-amadas”, “vadias” e outros termos impublicáveis.

O ódio à mulher, a misoginia, é expressão do temor de parte dos homens de que as mulheres ocupem espaços antes reservados exclusivamente a eles. Isso se reflete nos ambientes domésticos, no trabalho, na política, o que torna o sexismo uma forma de poder. As ofensas gratuitas, os assédios, a disseminação de mentiras, era assim naquela época e em parte segue assim nos dias atuais, incluindo postura misógina no comportamento de certos parlamentares.

Em 1913, o jornal A Noite se refere às sufragistas brasileiras da seguinte maneira:

“As terríveis sufragistas tem praticado e continuam a praticar desatinos de que muito homem não seria capaz. Já não se limitam as fervorosas propagandistas a simples quebras de vitrines, mas assaltam e queimam edifícios, ameaçam, como há poucos dias, a Catedral de São Paulo, cometem atos de furioso vandalismo.”

Eram fakenews, palavra inexiste à época. Mentiras. Não há registro histórico de um único ato de violência registrado pelas sufragistas brasileiras, conforme o jornal A Noite dá a entender. Ao contrário, as sufragistas brasileiras sempre optaram pelo caminho da negociação, buscando aliados homens.

Quando muito o jornal poderia se referir a métodos de ação direta de suffragettes britânicas. Lideradas pela inglesa Emmeline Pankhurst, na Inglaterra houve greves de fome, quebra de vitrines e ações de sabotagem a trens ou uso de bombas caseiras, mas não no Brasil (há, inclusive, um interessante filme sobre esse período na Inglaterra, As Sufragistas, vale assistir). Mas mesmo no Reino Unido, as dimensões estavam muito aquém das propaladas pela imprensa. A manipulação era tanta que passaram a chamar Leonilda Daltro pelo apelido de Miss Pankhurst.

Foram muitas as sufragistas brasileiras. Nomes esquecidos. Aqui resgato algumas delas:

As potiguares, Celina Guimarães e Alzira Soriano, essa, atriz, e a primeira prefeita eleita para governar uma cidade brasileira. No Rio Grande do Norte, houve um grande movimento sufragista liderado por elas, onde pela primeira vez foi utilizada a palavra Eleitora. Diversas mulheres votaram nas eleições de 1928 naquele estado, quando o voto feminino ainda não havia no Brasil. No entanto, os votos das mulheres foram todos impugnados pelo Senado Federal.

A mineira Mietta Santiago. Havendo estudado na Europa, ela regressa ao Brasil com toda a disposição para lutar pelo voto das mulheres. Foi a primeira eleitora oficialmente registrada no país, via mandado de segurança, alegando que a proibição do voto às mulheres contrariava a Constituição da República. Com base nesse mandado também foi candidata a deputada federal, com idade de 25 anos. Uma jovem mulher a alargar o direito das demais mulheres.

Almerinda Gama, negra, alagoana, datilógrafa, jornalista, sindicalista, poeta, musicista, advogada e militante feminista. Almerinda foi a voz das mulheres trabalhadoras e negras no sufragismo, até então com maior presença de mulheres das classes dominantes ou médias.

Em paralelo, mas na mesma causa, as mulheres comunistas do Comitê Eleitoral de Mulheres Trabalhadoras do Bloco Operário e Camponês, BOC. As mulheres das lutas nos subúrbios e cortiços, nas portas das fábricas e oficinas, Laura Brandão, Margarida Pereira, Ericema Lacerda, Sylvia Casini, entre outras mulheres comunistas, que, por diversas vezes, foram presas e assediadas pelos policiais. Mulheres que não esmoreceram.

Além dessas, Bertha Lutz, a mais conhecida de todas, presente nas lutas feministas desde os anos 1920 até o seu falecimento, em 1976. Apesar de o nome de Berta ser razoavelmente conhecido, é preciso conhecê-la mais. Filha da enfermeira inglesa, Amy Fowler Lutz e do cientista pioneiro em medicina tropical, Adolfo Lutz, que dá nome ao famoso Instituto bacteriológico e de análises clínicas, Berta estudou Ciências na Universidade de Sorbonne, em Paris e foi uma das primeiras mulheres brasileiras a ingressar em carreira de nível universitário no serviço público federal.

Como bióloga, Berta Lutz trabalhou no Museu Nacional por 46 anos, até se aposentar como chefe do departamento de botânica do Museu, em 1964, recebendo o título de professora emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Especialista no estudo de anfíbios, suas pesquisas identificaram diversas novas espécies de répteis e anfíbios, sendo que alguns deles levam o nome dela. Também se notabilizou como uma precursora e grande incentivadora dos serviços educativos de Museus, como espaços para a aprendizagem, além de destacada defensora do meio ambiente.

Para além da carreira científica, Berta Lutz se notabilizou como grande defensora da causa da emancipação feminina. No Brasil e no exterior. Aos 24 anos de idade, havendo regressado ao Brasil, Bertha representa as mulheres brasileiras no Conselho Feminino Internacional da OIT (Organização Internacional do Trabalho), abraçando a causa pelos direitos iguais entre homens e mulheres, com igualdade salarial, direitos sociais e políticos. Em 1922, Bertha lidera a criação da Liga para a Emancipação Intelectual da Mulher e, no mesmo ano, após regressar dos EUA, organiza o Primeiro Congresso Internacional Feminista, reunindo sufragistas brasileiras e também deputados e senadores homens que começavam a abraçar a causa.

Foram muitas tentativas e abaixo-assinados reivindicando o direito ao voto, tantas tentativas, todas negadas durante a década de 1920. Para melhor defender a causa, Bertha decidiu estudar Direito, o que lhe foi muito útil anos depois, quando, após a chamada Revolução de Trinta, é nomeada para a Comissão de Juristas encarregados de elaborar um novo Código Eleitoral. Parlamentares ainda relutavam em aprovar o direito de as mulheres poderem votar e serem votadas, Bertha insistiu e conseguiu incluir o sufrágio feminino no Código Eleitoral Brasileiro. Era o ano de 1932.

Foi em 1934 que as mulheres do Brasil puderam votar e serem votadas pela primeira vez. A primeira deputada federal eleita foi Carlota Pereira de Queirós, médica paulista, filha de um rico fazendeiro da cidade de Jundiaí. Foi a única mulher eleita na Assembleia Constituinte de 1934. Há registro de uma significativa foto, em que ela, de vestido e chapéu branco, se destaca entre todos os demais deputados, todos de preto, com paletó e gravata. Berta Lutz também foi candidata, mas ficou como suplente e assume a cadeira de deputada federal em 1936, mas por um curto período. Em 1937, aconteceu o Golpe do Estado Novo, com fechamento do Congresso Nacional e instauração da Ditadura, que duraria até a deposição de Getúlio Vargas, em 1945. No curto período de mandato de Beta Lutz, ela apresenta propostas de lei regulamentando o trabalho das mulheres e dos menores de idade, com igualdade salarial e redução da jornada de trabalho. É de Berta Lutz a lei que assegura licença maternidade de três meses.

Mulher engajada e comprometida, Bertha Lutz participou intensamente da vida social e política do Brasil. Da fundação da União Universitária Feminina, em 1929, à Liga Eleitoral Independente, em 1932/34, se engajando na Federação Brasileira pelo Progresso Feminino e criando a União Profissional Feminina e a União das Funcionárias Públicas.

Bertha Lutz também representou o Brasil em diversos Congressos Internacionais, incluindo a Conferência de São Francisco, EUA, em 1945, que deu origem à ONU. Foram as delegadas de países da América Latina, lideradas por Bertha, que garantiram a menção sobre igualdade de gênero e os direitos das mulheres na Carta das Nações Unidas. Apenas quatro mulheres assinam a Carta da ONU, a brasileira Bertha Lutz é uma delas. Em 2016, a ONU publica vídeo sintetizando a fundamental participação da feminista brasileira Bertha Lutz na Conferência que deu origem à Organização das Nações Unidas. A Segunda Guerra Mundial estava chegando ao fim e em discurso na Assembleia que deu origem à ONU, Bertha Lutz declara:

“Nunca haverá paz no mundo enquanto as mulheres não ajudarem a cria-la”

As contribuições de Berta Lutz na Carta da ONU são as seguintes:

  • Inclusão da palavra MULHER quando o preâmbulo da ONU, citando “igualdade de direito de homens e mulheres”. Na minuta anterior estava escrito: “direitos humanos para os homens”;
  • No artigo 1, como função da ONU, é de emenda dela: “promover e estimular o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião”;
  • Na redação do artigo 8, “as Nações Unidas não farão restrições quanto à elegibilidade de homens e MULHERES destinados a participar em qualquer caráter e em condições de igualdade em seus órgãos principais e subsidiários”. Por iniciativa dela é incluída a palavra mulher.

Uma brasileira que lutou por toda a vida. Sua última participação deu-se no I Congresso Internacional da Mulher, organizado pela ONU, em 1975. Ela nunca se casou, nem teve filhos, e veio a falecer no ano seguinte, em um asilo para idosos. À Bertha Lutz e a todas as mulheres sufragistas do mundo, o meu respeito e admiração.

No próximo artigo, irei encerrar essa série com o texto sobre a Criação do Patriarcado. Registro que muito me auxiliou a leitura do livro “Cem anos da luta das mulheres pelo voto na Argentina, Brasil e Uruguai”, organizado por Ana Prestes, com 13 autoras e prefácio de Dilma Roussef e Flavia Biroli, pelo selo “E se fosse você?”.

Quem quiser escutar essa história acompanhada de música poderá ouvir o podcast no canal do Instituto Casa Comum no Spotify:

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