Conheci Lue pelo Linkedin, pesquisando sobre pessoas não binárias. Queria entender mais sobre e como colunista Mídia Ninja, dar voz a pessoas que precisam ser ouvidas, dando lugar de fala para que contassem suas histórias.

Foi incrível quando escutei o ”sim! Quero escrever para sua coluna!”. Sinto-me honrada em dar espaço para Luê Stracia compartilhar sua história pessoal e emocionante sobre a não-binariedade. Este texto é uma oportunidade para aprender e compreender mais sobre a jornada, desde a infância até a vida adulta, onde finalmente encontrou a liberdade de ser quem realmente é. A luta política e social da comunidade trans e não-binária é fundamental e, infelizmente, é ameaçada pelo patriarcado e pela cisgeneridade. Por isso, é crucial que cultivemos um ambiente de respeito e compreensão para estas pessoas e que continue a conversa sobre este tema tão importante.

Estou animada para que você, que chegou até aqui através de um link, uma chamada ou através do compartilhamento de alguém, leia e aprenda muito dessa história, assim como eu.

Sobre Luê Stracia: pessoa não-binária. Graduade em História pela USP, elu é apaixonade pelos estudos de gênero e sexualidade. Poeta, escritore, educadore e ativista pelos direitos da população trans. Concluiu cursos sobre diversidade na Universidade de Pittsburgh e completou o curso de Diversidade nas Organizações, na FGV. Entusiasta do samba e das culturas populares brasileiras. Instagram: @hastalavictoriax e Linkedin: https://www.linkedin.com/in/lue-stracia

“Nossos inimigos dizem: A luta terminou. Mas nós dizemos: ela apenas começou.” Uma coluna sobre não-binariedade por Luê Stracia

Começou bastante cedo, eu tinha por volta de 4 anos de idade. Um dia me revoltei contra todos e gritei: “EU NÃO SOU MENINA”. Eis que minha mãe questiona: “Então você é menino?”. Eu ainda “Não. Não quero ser nem menino nem menina”. Ela sorriu, brincadeira de criança esperta. Sempre foi assim, uma grande palhaçada para a cisgeneridade.

Nunca gostei das simbologias do feminino, me sentia vestindo uma fantasia estranha. Na infância usava bermudas e bonés; eles diziam: “Mais um capricho da infância!”. Quando meus seios cresceram, meus quadris se alargaram, a menstruação chegou, eu quis esconder todos os sinais.

Na adolescência, as violências de gênero ficaram mais evidentes. Performava uma jovem menina que não era. Se eu saísse minimamente “não-feminina”, escutava fortes represálias. E assim foi, tristemente, uma adolescência sendo alguém que nunca fui.

Na vida adulta, flertava com todas as possibilidades fluidas que o gênero e a sexualidade me permitiam. Começava a descobrir fatos tão assustadores e bonitos sobre mim. Eu tinha medo de encontrar Luê, mas os sintomas da não-binariedade me consumiam. Já não comia, não sonhava, não vivia. Sabia que, bem lá dentro, alguma força me impelia para a vida plena. Foi então que descobri a possibilidade de ser quem eu bem quisesse ser.

Foto: reprodução

Diria que minha vida é um a.L. e d.L. (antes de Luê e depois de Luê). Aí que eu pude bater no peito e rejeitar todas as referências CIS-centradas que me rodeavam. Lembro de pesquisar, pela primeira vez, sobre o universo TRANS NB* e encontrar um rap do cantor Triz, que na época se identificava como não-binário. O trecho era assim:

“E num tenho obrigação de dar satisfação. Mas aqui, cê tá ligado que é pura informação. E pra quem quer saber, o meu gênero é neutro. ‘Cê não precisa entender, só precisa ter respeito .“

Aquilo me arrematou. Além de ser uma escolha individual, entendi o cunho político de negar a minha “mulheridade”, o que se mostrou perigoso desde o início.

O patriarcado contesta tudo o que, biologicamente, é fêmea, mas difere da norma. O corpo trans, a vivência trans, é uma ameaça ao status quo da masculinidade. E, no Brasil, sabemos muito bem disso. Em 87, a Operação Tarântula dizimou milhares de corpos LGBT, com a premissa de combater o “surto da AIDS”. Ainda hoje, somos o país que mais mata pessoas trans, que mais consome pornografia com corpos trans, que mais atiça ódio contra o que não é CIS-HETERO-NORMATIVO.

Nesse ponto, eu já estava doente. Tossia em linguagem neutra, brigava com meus amigos mais antigos, raspava o cabelo constantemente, começava a ter desejos estranhos, de beijar outros corpos trans, corrigia todes que se dirigissem a mim como “ELA” ou “ELE”. Fiquei em êxtase, delírio, ou melhor, ainda estou. Será que conseguiram implantar a Ideologia de Gênero nos meus anos de escola? Só frequento banheiros sem gênero, e agora? Estou doente?

Lembro, na faculdade de História, de me encantar com o TED talk da Chimammanda Ngozi Adichie, que brilhantemente discorre sobre “O perigo de uma história única”. Pois bem, senti, anos depois, como a história contada pela cisgeneridade branca é falsa. Como, por anos e anos de trabalho, em escolas particulares de classe média alta, bastou eu ser “diferente” para me demitirem.

Muitos anos sem referências trans nas escolas, com medo do que os pais diriam sobre mim, me escondendo, fingindo estar em um lugar confortável. A verdade é que, se os alunos soubessem, com certeza seriam receptivos. Há pouco acompanhei o processo de transição de uma professora, que estava em dúvida sobre como os alunos reagiriam. Para a surpresa dela, eles perguntaram: “Ah, mas na prática é só te chamar no feminino e usar o nome que você pediu? Só isso? Ah, tá bom então. Seja bem-vinda!”. Outros ainda: “Parabéns por ter sido tão corajosa para fazer isso. Máximo respeito”.

Foi assim que ela “doutrinou” pequenos cérebros indefesos de crianças e adolescentes. Um grande absurdo, imagina se eles resolvem ser trans também! Ou pior, comecem a gostar de pessoas do mesmo gênero. Afinal, a cisgeneridade não tem um pingo de criticidade para diferenciar sexualidade de identidade de gênero… Imagina, o status quo dessas famílias sendo julgado por um monstro da existência humana, uma PESSOA, como qualquer outra, um ser humano disfuncional, uma aberração [contém traços de ironia].

O sistema de ensino privado é nocivo demais, bem como os pais de “famílias boas e cristãs”, que se sentem ameaçados com o mínimo indício de contestação e criticidade. Foi assim que, entendendo meu papel como educadore, me retirei dessas instituições. E entendam, falo de um lugar branco-classe média de privilégios, falo, ainda que trans, de um lugar sem interseccionalidades e de um lugar onde escolhas são possíveis. Entendam que nem toda vivência trans é igual, nem toda vivência trans é possível.

Entendível a imagem do sujeito trans ser visto como uma ameaça: No documentário “Revelação” (Disclosure), presente em alguns streamings, podemos ver como a transfobia foi construída nas telas de cinema e se perpetuar pelo imaginário popular. Filmes aclamados, como “Psicose”, de Alfred Hitchcock, constroem a transgeneridade como um traço ora de violência, de descontrole emocional, ora como algo engraçado e estapafúrdio.

Pensando em TRASncentrar, discutindo com minhes amigues, percebi que precisava trabalhar em prol da comunidade Trans. Encontrei uma rede incrível de profissionais que trabalham com D&I, um respiro ao mundo caótico. Me fiz, refiz, ressignifiquei. Costumo dizer que a transição é um processo ad infinitum em nossas vidas, não existe uma lista que damos “check” (mastectomia, hormônios, cabelo), na verdade cada universo trans individual é um universo. Muitas pessoas, como eu mesme, não sentem a necessidade de hormonização. E isso não nos faz menos trans.

A questão é que, nesse nicho em que Diversidade e Inclusão é quase uma pauta obrigatória nas grandes empresas, as vozes de pessoas pretas, trans e PCD’s foram exaltadas e ouvidas. Não se iludam, muitas empresas ainda nos usam como tokens, representações superficiais e de fachada. Mas vejo, cada vez mais, colegas com suas próprias empresas de consultoria, com trabalhos impecáveis, como é a Transcendemos, chefiada por Gabriela Augusto.

Hoje me debruço sobre assuntos de Gênero, Sexualidade, Raça, Interseccionalidade e estou infinitamente mais feliz. Ainda que critique as pós-graduações sobre D&I nas faculdades de prestígio, que não se dão o trabalho de abrir vagas para bolsistas negres, PC’s e/ou trans.

Mais uma política hipócrita de inclusão. Em uma dessas formações, fui a primeira pessoa trans da turma, e uma aluna cis, ao me descobrir, enviou um coração nas minhas mensagens privadas, como em admiração: “Que lindo alguém trans estar aqui!”. Mais uma vez nós somos um bichinho de zoológico, uma espécie rara.

Ainda que não esteja em um lugar de independência intelectual e financeira, sonho grande. Quero debates feitos para e por pessoas trans, quero que os mesmos debates sejam devidamente racializados, pensados sob lógicas não-capacitistas. Quero que as mulheres trans e travestis de projetos que participo consigam empregos para além de caixas de supermercado ou operadoras de telemarketing. Quero que os homens trans e pessoas transmasculinas tenham a visibilidade que merecem, que es companheires não-bináries sejam validades em suas identidades. Para além, quero ver o bonde TRANS dominando esse Brasil e afora.

Há umas semanas, recebi uma reclamação de uma mulher cis branca e lésbica em uma empresa que atuo. Segundo ela, o Núcleo LGBT+ criado por mim e a minha imagem rodando nas diversas redes da empresa não a representam. Pois bem, cisgeneridade LGBT, vocês entendem suas falas transfóbicas? Ao que me parece, não. Ninguém quer ser transfóbico. Mas vocês só podem repensar essas falas se aceitarem a palavra, no coração de vocês. A palavra dos indivíduos que são mais do que pintos e bocetas, indivíduos que fogem do seu genitalismo, do seu binarismo.

Volto a dizer: meus sintomas não são de doença, a patologia está na cisgeneridade.

Profissionalmente e pessoalmente, sei que ainda tenho muitas lutas pela frente, e espero lutar ao lado dos meus. Disse Brecht:

“Nossos inimigos dizem: A luta terminou. Mas nós dizemos: ela apenas começou.”

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