Fernando Procópio sente a ausência de um tratamento mais respeitoso sobre as relações homoafetivas no meio do samba

Foto; Inayan Faustino

O samba de roda sempre foi considerado por muitos um meio dominado pelo machismo. De uns tempos para cá, as coisas mudaram e muitas mulheres se afirmam enquanto artistas e não só intérpretes, inclusive com grupos formados só por elas. Cantam e tocam qualquer instrumento onde quiserem, e ocupam cada vez mais espaços. É neste contexto que o sambista Fernando Procópio, de 34 anos, da nova geração, também tem contribuído para quebrar os preconceitos.

Cria do subúrbio do Rio de Janeiro, Procópio é de uma família tradicional do samba. Faz parte da 4ª geração ligada à Portela e ao Império Serrano, escolas famosas de Madureira. Desde o seu bisavô,  Lalau do Bandolim, contemporâneo de Pixinguinha, que a música pulsa nas veias dos seus de sangue. Conhecido entre os mais novos e os mais antigos das rodas cariocas, tem se destacado por gravar músicas politizadas que visam o respeito e a defesa da diversidade sexual e de gênero. Na Boca do Povo e Eu Vos Declaro são duas que viralizaram nas redes sociais. Agora está gravando o seu primeiro álbum e participou, como compositor, com o seu tio e seu pai do último disco do Zeca Pagodinho.

Na entrevista à Mídia Ninja, Procópio explica que se considera enquanto músico um cronista da sociedade, e nesse sentido sentiu a ausência de um tratamento mais respeitoso e afetuoso sobre as relações homoafetivas no meio do samba. Para ele, trata-se de uma iniciativa urgente e necessária devido ao machismo e conservadorismo que sempre prevaleceu no meio. Fala também sobre a qualidade e potencial da nova geração do samba, sobre política e as perspectivas e expectativas em relação ao mercado nos próximos anos.  

Como você vê uma transição geracional no samba e as possíveis mudanças nas narrativas e estéticas?

Vejo como um processo natural de construção e reconstrução, porque o samba surgiu há mais de cem anos e sempre foi se renovando com novos personagens, perspectivas e hoje talvez seja a mesma coisa com a gente. Apesar de sermos uma nova geração, temos criado a nossa caminhada junto com aquilo que ouvimos. Não vejo muita mudança em termos de estética, acho que a última grande foi com o Fundo de Quintal na inserção de instrumentos musicais como o tantan, repique de mão, a maneira de se tocar o pandeiro, o banjo do Almir Guineto, etc. O que vemos hoje é uma mudança de linguagem. Como o samba é muito tradicional e pautado na hierarquia, de trazer dos mais antigos para dentro da nossa música como algo cultural, de repente num dado momento histórico deixamos de acompanhar o nosso momento social. Tento acompanhá-lo, entendo o compositor como cronista da sociedade. Toda vez que componho, não mudo a estética do que já era feito e sim a linguagem com novas abordagens e temas. Falamos de coisas que o samba não falava.

Foto: Inayan Faustino

Mas além da musicalidade, você vê alguma alteração dos comportamentos, vestimentas e outras características?

Tudo isso é um processo comum de toda sociedade, a galera não se veste mais como antes, não tem os mesmos comportamentos e isso se reflete no samba. Muitas vezes ao chegar na roda, acham que sou skatista, canto rap ou sou do movimento hip hop, porque ando de boné e por conta da minha forma de vestir e me portar. Existe ainda uma visão meio engessada do sambista como alguém de terno e calça de linho, chapéuzinho panamá, como a referência dos sambistas antigos, que mantém essa tradição na vestimenta até hoje. Mas para a minha geração isso já mudou, existe uma estética bem diferente rondando os ambientes dos nossos sambas de hoje. Isso é muito bacana, porque mostra certa renovação do público e uma transformação social dentro dessa realidade. Antes o samba era muito favela e subúrbio, e com a sua explosão na mídia nos anos 80 e 90 acabou proliferando para todo canto da cidade.

A galera da velha guarda viveu outro momento histórico, entendo a importância da sua forma de se vestir porque era muito tachada pejorativamente pela música que fazia. Precisava se vestir bem para não sofrer represálias. Paulo da Portela não admitia sambistas com o pescoço descoberto, por exemplo, e para eles se não estivessem assim seriam presos, esculachados e tratados como vagabundos. Não precisamos mais disso para estarmos nos lugares e sermos respeitados, porque temos outra visão. O mundo foi se modernizando e tendo outro olhar. É importante que eu enquanto sambista dessa nova safra também entenda essa visão de costumes e o que foi o samba numa outra época. Entender a necessidade da velha guarda se vestir da maneira que se veste é entender o contexto histórico, a tradição, e a ancestralidade daquela entidade. Não dá para fazer samba e minimizar ou relativizar aquilo, perde o valor da história e, consequentemente, essa continuação.

O samba já teve uma visibilidade muito maior, como talvez hoje o sertanejo universitário. Nessa transição geracional, há também uma mudança do mercado?

É preciso entender os fenômenos que aconteceram na indústria da música nos anos 80, a redemocratização do país, tudo isso influencia. Existiam muitas músicas do gueto nesse período, e o samba era uma linguagem bem potente trazendo determinadas reflexões que outros gêneros talvez não tinham de maneira tão incisiva. Vem depois os anos 90 com o boom da geração do pagode, que é um fenômeno, e também a história da pirataria com a queda de arrecadação pelas gravadoras e surgimento com mais força de artistas do cenário independente. Depois as coisas começam a se transformar dentro do mercado da música, e não coincidentemente temos uma queda da popularidade do samba. Embora o Brasil não deixe de fazê-lo, a sua audiência diminuiu, talvez por não acompanhar da mesma maneira que outros gêneros musicais o uso de novas tecnologias e plataformas de consumo.

As grandes referências no mundo do samba estão envelhecendo, nos últimos anos tivemos grandes perdas e, infelizmente, a tendência é ocorrer mais em breve. Quem é essa galera que está trazendo essa renovação?

Vejo uma safra bem produtiva e criativa. Claro que não vamos reproduzir o que foi feito lá atrás, não tem como, não temos as mesmas experiências, etc. Então, representamos as coisas do nosso tempo, mas temos ótimos nomes para dentro do cenário atual, como: Mosquito, João Martins, Renato da Rocinha, Galocantô, Viny Santafé, Will Freitas, Yago Costa, Marcelle Motta, Marcelle Brito, Nina Rosa, Nanda Monteiro, Grupo Arruda, Inácio Rios, Maryzelia, Nego Álvaro, Mingo Silva, Gabrielzinho do Irajá, Família Macabu, etc. Posso ficar citando uma gama de artistas dessa nova geração com um potencial de preencher essas lacunas, que inevitavelmente serão deixadas. Não sabemos precisar em quanto tempo, mas tem muita gente boa em muitos lugares, só citei os que atuam no Rio, mas tem uma cena muito forte também em Minas Gerais com a Adriana Araújo, o Grupo Simplicidade, Mariana Gomes, dentre outros, e em São Paulo também com Os Pereras, Ederson Santos, Pegada de Gorila, 4 Goles de Samba, e tantos outros. Tem muita gente fazendo samba e acho que o bastão vai ser passado automaticamente para essa galera, que respeita muito o gênero e faz sua arte com muito carinho e talento.

Você falou de um processo coletivo na produção do evento do Aos Novos Compositores no Beco do Rato, na Lapa, que é um dos poucos gratuitos nesta casa. Como você vê a necessidade dessa iniciativa enquanto um dos expoentes do movimento?

O projeto Aos Novos Compositores é um projeto de sambas autorais e inéditos cantados na voz do próprio compositor, que rola duas vezes por mês no Beco do Rato. A gente compunha e não tinha espaço para apresentar essas canções criadas, era o sentimento de muitas pessoas que não encontravam uma atmosfera acolhedora para apresentação de sambas novos. Às vezes por causa do público, outras pelos próprios músicos  da roda de samba, então criamos um grupo de WhatsApp para trocar figurinhas, postar sambas feitos, iniciar parcerias, e desse movimento resolvemos fazer um evento presencial. Ficamos encantados com o que ouvimos, pois tinha muita música boa produzida por sambistas anônimos, daí criamos uma estrutura básica para que o evento pudesse transcorrer de maneira harmônica. É um coletivo do qual tenho muito orgulho de pertencer e dali vários outros sambas e parcerias foram surgindo. Faz parte do processo evolutivo de todos os compositores as trocas e parcerias, a visão musical, sentir como as pessoas assimilam a sua música e são criadas novas referências também, e tudo isso a gente encontra lá.

Você tem a necessidade de falar sobre política nas suas letras, inclusive sobre temas bem contemporâneos. Tem gente que fala que o samba é politizado de essência, outros defendem outras coisas. Como você enxerga isso?

Entendo o samba como um movimento político e social desde sempre. O primeiro samba só é gravado em 1918, mas ele surge com negros ex-escravizados, marginalizados dentro da sociedade. O único local onde eles podiam fazer samba sem a abordagem policial violenta era dentro das favelas e  terreiros, e aí abordamos também a questão da religiosidade que é muito forte dentro do samba por conta de toda essa movimentação. É uma galera segregada e que precisa se expressar, por isso é um movimento político e social e não posso fazer algo diferente disso. A minha família é bem musical, meu bisavô é compositor de chorinho, contemporâneo de Pixinguinha e viveu esse preconceito na pele. Meu avô foi Seu Osmar do Cavaco, músico que acompanhava Seu Candeia, cavaco do disco Partido em Cinco, do Seu Aniceto do Império e do Seu Paulinho da Viola. Meu avô foi preso por vadiagem por estar com o seu instrumento andando na rua numa época de repressão. Não tem como desvincular a narrativa de uma realidade nossa, do povo negro de religiões de matrizes africanas, vinda dos guetos, das favelas, dos subúrbios, com a música que cantamos e fazemos. Candeia falou muito bem: “Enquanto se samba, se luta também”. Essa é a referência que trago e tento trazer para dentro da minha música, mesmo em 2022 tento não perder isso.

Muita gente nova se envolveu nessa eleição com política, não só nos eventos mas também nos partidos, como você vê isso daqui para a frente?

É bem benéfico pro movimento que haja uma galera nova politizada, atenta, cobrando e propondo pautas políticas tanto de fora quanto de dentro dos próprios partidos. Acredito que isso se fará ainda mais presente depois da polarização política que foi instalada, e da importância de se defender ideais comuns que contemplem a diversidade da nossa sociedade como um todo.

Quais as tendências ou expectativas em relação ao mercado para os próximos anos?

Espero que haja um entendimento melhor do samba em relação ao mercado da música e se abram, principalmente, mais oportunidades midiáticas para nós. Que os sambistas que venham a alcançar um lugar de destaque tenham consciência do que representam para todo o movimento do samba. Entender que não é um modismo, o que fazemos tem uma ancestralidade, uma referência de algo que foi feito durante muito tempo e por uma galera que sofreu muito para botar o samba onde está hoje. Espero que surjam oportunidades e a gente consiga ocupar esses espaços, falar bem neles, conquistar novos públicos. Hoje temos um nicho de mercado um pouco menor que anteriormente, então precisamos angariar mais público e trazer mais artistas para a cena musical. Conquistar ainda mais jovens para curtir a música que a gente faz.

Foto: Michelle Beff

 Quais são os seus projetos pessoais e caminhos profissionais por vir?

Lançamos agora o Na Boca do Povo, que trata da desconstrução de algumas respostas que a gente aprende na vida e reproduzimos sem questioná-las. É um partido alto de pergunta e resposta, ainda guarda a mesma estética musical do samba raiz, e trouxemos uma linguagem nova para dentro dessa abordagem. Viralizamos nas redes sociais com essa música através de alguns artistas e páginas como a Mídia Ninja e Quebrando o Tabu, chegamos ao programa de TV da Eliana, no quadro Famosos da Internet, etc. Gravei um clipe a partir de toda a nossa correria como artista independente, tenho oito músicas gravadas para lançar nos próximos meses e há poucas semanas fui convidado para participar de uma cena da novela da Globo, Todas as Flores, cantando minha música Na Boca do Povo. Temos outras músicas também pra lançar, inclusive uma que trata de um novo conceito de família, de relações homoafetivas, Eu Vos Declaro, que também possui uma abordagem política muito forte, as faixas já estão gravadas, e virão em breve.

É uma pancada pra dentro do meio do samba, mas acho que te ajuda também ser de uma família tradicional do meio para ter um pouco mais de receptividade pelos mais velhos e de uma forma geral…

Quando comecei a cantar essas coisas para dentro do samba chocava muito, não era conhecido, principalmente a galera mais antiga. Mas com certeza ajuda o cara falar: esse aí é neto de fulano, sobrinho de sicrano, filho de não sei quem, já está trazendo isso lá de trás. Acaba tendo uma chancela, tivemos música gravada pelo Zeca Pagodinho que também dá uma chancelada enquanto compositor. O pessoal tem visto que estamos correndo atrás, onde estamos chegando, ouvindo coisas que nunca foram faladas no samba ou talvez de uma maneira velada e são importantes de ser faladas de modo mais explícito. Não sei citar alguém ou algum outro samba, mas em geral as relações homoafetivas sempre foram tratadas como forma de deboche e escárnio e gozação, nunca de maneira respeitosa e acolhedora. Fazemos isso para o nosso samba de hoje, pois acredito que esse seja um modelo pro samba dos novos tempos.

 

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