Foto: Divulgação / Marte Um

Era fevereiro de 2017 quando estive em uma ocupação secundarista na periferia de Vitória, Espírito Santo. Lembro da data porque a cidade atravessava uma crise de segurança pública, mas mais ainda porque nesta ocupação ouvi uma frase que marcou minha vida.

Estava lá para dar uma oficina de midiativismo, orgulhosamente representando a Mídia NINJA. Quem me recebeu na porta da ocupação foi uma menina, a mesma que fez um tour pela escola e depois introduziu a atividade. Para quebrar o gelo, fiz uma rodada de apresentação, onde pedia para dizerem quais as profissões aquela leva de 13, 14, 15 anos queria ter. Eu tinha falado da minha – quando tinha idade deles queria ser escritora, como toda mocinha queria nos filmes teens dos anos 2000 que eu avidamente consumi. E hoje eu era jornalista, que é uma espécie de escritora da realidade. Eu tava felizona com a minha resposta, até que ouvi uma das garotas na minha frente.

“Eu quero ser astrofísica”. Naquela época eu nem sabia o que isso era, fazia ou impactava no mundo. Mas essa menina preta da periferia de Vitória sabia. E parecia ter um plano pra fazer acontecer. Eu começo lembrando dessa história porque foi exatamente nessa parte, quando Deivinho diz querer ser astrofísico, que chorei pela primeira vez assistindo ao filme Marte Um, de Gabriel Martins. Foram 3 no total e, capacidades cancerianas à parte, esses momentos contam o melhor do filme pra mim.

Antes de falar sobre eles, queria compartilhar que apesar dos parágrafos que gastei até aqui, o filme não é nem de longe sobre mim (choque!), muito menos sobre o quarteto no centro da narrativa – Tercia, Eunice, Deivinho ou Wellington. É, sem dúvida nenhuma, sobre a experiência coletiva que temos sendo famílias negras.

A começar por Wellington, o simpático líder da dicotomia da família. A força que ele demonstra pelos 4 anos de sobriedade é exatamente a mesma da sua filha mais velha que sabe o que fazer quando o vê caído no chão da sala. Ele é o homem gentil que beija a esposa sempre que a vê, mas é também o que pressiona o filho por uma saída financeira para um problema financeiro geracional. Apaixonado por futebol na mesma proporção que precisa aguentar a exploração do seu trabalho.

A dupla de filhos é a expressão da coragem que existe nesses núcleos familiares. Cursar direito sendo uma jovem negra como Eunice não é bolinho e sair de casa para assumir quem você é, enquanto desvenda isso pra sua família no seu tempo, também não. Deivinho, mesmo fazendo as vontades do pai dentro de campo, demonstra fibra moral quando não cede às pressões dos amiguinhos, a não ser que seja pra não fazer as vontades do pai dentro de campo.

Mas Tercia é a mais importante. É o arco dela que segura as pontas todas. É ela quem é mais receptiva à sexualidade de Eunice, aos sonhos de Deivinho, aos conflitos de Wellington, é através da sequência da pegadinha traumática que sentimos a virada no clima do filme. Enquanto a mãe tenta lidar com o impacto do dia da lanchonete em meio a risadas da família, medicina alopata, fé, descrença do seu companheiro , viagens a menos de 20 reais e qualquer coisa menos terapia, eu fiquei na cadeira pensando sobre saúde mental das mulheres pretas enquanto a voz de um ator nascido em Porto Rico que disse num filme famoso de 2019 – “A pior parte de ter uma doença mental é que as pessoas esperam que você se comporte como se não tivesse”.

O segundo choro foi ao ver a forma constrangida que o pai se despediu enquanto a filha sáfica saía de casa. Chorei junto dele porque a força de um chefe de família validando este nova família que ela escolhia formar fora de casa, através de uma cadeira de 70 anos de idade, não é uma cena comum no cinema mundial.

Por algumas vezes quase dá vontade de torcer para que o filme vire de fato ficção científica. Tava tudo pronto ali: entrevistas antigas de Neil deGrasse Tyson como trilha sonora e um dócil protagonista adepto ao dumpster diving, uma aliada destemida como irmã, a jornada atormentada da mãe e a provação que passa o pai. Efeitos especiais feitos pelos trabalhadores explorados da Marvel, uma trilha sonora em 8bit e Ruth E. Carter, figurinista premiada de Pantera Negra se juntariam a Gabriel Martins e seu time talentosíssimo pra entregar a nova sensação do streaming.

Porém o maior fator fictício na verdade foi ver na tela grande uma família que não sofria de forma direta ou indireta a violência policial reservada para pessoas como eles. Não vê-los alvo de uma crise de segurança pública bem diferente da que vi em Vitória é que foi a maior fantasia. De qualquer forma, a realidade é implacável e a luta de classes, homofobia, racismo e sexismo ficam claras a cada serviço doméstico não realizado pelos homens da casa.

Tudo isso aconteceu permeado de uma crítica prática sobre o governo atual. Ninguém nunca faz um comentário maldoso ou grita um Fora Bolsonaro, mas o sentimento está presente e podemos claramente entender como funciona a “causa e efeito”. É neste princípio universal, o de que o acaso não existe, que mora a crítica. Foi nele também que Flávio não pensou quando resolveu dar uma de robin-hood no apartamento da síndica do prédio do seu Wellington, apesar de que desconfio que o gato Galvão esteja tendo uma vida melhor agora.

E daí, de terceira, eu chorei no fim. E antes de me acusarem de ser clichê, quero dizer a sequência da reunião de AA pós recaída, aceitação da namorada da filha e planejamentos para a participação do mais novo no Marte Um já era pra fazer qualquer pessoa chorar como um marmanjo flamenguista chora vendo jogos. Mas, verdade seja dita, eu chorei porque a mãe dormiu. Dormiu porque todos os problemas da família foram pacificados. Dormiu porque a causa da sua insônia era não poder descansar. Dormiu porque é isso que nossas mães pretas merecem.

Saí do filme sentindo que o amor já era possível, semelhante ao que pensei saindo de CODA (Child of Deaf Adults), vencedor do último Oscar de Melhor Filme. Agora fico torcendo por Marte Um como o representante brasileiro do Oscar no ano que vem. Torcendo também para que, assim como olhamos de outra forma para os surdos e seus filhos através de “No Ritmo do Coração”, espero que Marte Um nos faça uma sociedade mais empática com famílias negras. E que as nossas mães durmam.

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