Por Mayrá Lima

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) foi destaque em comentários sobre as eleições depois que o ex-presidente e atual candidato Luís Inácio Lula da Silva comentou que o movimento é o maior produtor de arroz orgânico da América Latina. O candidato chegou a convidar a jornalista e apresentadora Renata Vasconcelos a conhecer as cooperativas do MST. E ainda afirmou “aquele MST de 30 anos atrás não existe mais”.

O estranhamento da grande mídia acerca da defesa de Lula beirou, muitas vezes, a criminalização do movimento. Mas Lula está certo não somente no dado acerca do arroz orgânico. De fato, o MST mudou. Mas não porque alterou a sua forma principal de protesto, as ocupações. Mas porque promoveu mudanças no debate que conecta reforma agrária a uma política muito mais ampla.

O conceito de “reforma agrária popular”, cunhado desde o último Congresso do MST, realizado em 2014, trata-se de uma reorientação da luta pela reforma agrária empreendida pelo MST. Para os Sem Terra, é necessária uma reconfiguração da luta pela reforma agrária em um contexto em que há a dominação da propriedade privada, configurada por meio do agronegócio produtor de commodities voltados para a exportação e organizado por meio de empresas transnacionais.

Foto: Bandeira MST

Além da democratização da terra e do cumprimento da função social da propriedade – dispositivo constitucional que regula o direito à propriedade no Brasil – o programa defende o impedimento da concentração fundiária e a devolução dos bens naturais apropriados por empresas estrangeiras. O agronegócio, tal como ele se apresenta, “bloqueia e protege as terras improdutivas para futura expansão dos seus negócios, travando a obtenção de terras para a reforma agrária” (MST, 2014, p.12).

A reforma agrária popular se amplia para a disputa do controle das sementes, da agroindústria, da tecnologia, dos bens da natureza, da biodiversidade, das águas e das florestas,” (MST, 2014, p. 32). À soberania nacional são incluídas as sementes e mudas, por meio de produção livre da apropriação privada de transnacionais, melhoradas e multiplicadas sob técnicas naturais. A produção é politizada porque deve ser desenvolvida prioritariamente para resultar em alimentos saudáveis, em condições ambientalmente sustentáveis, técnicas agroecológicas, cooperação solidária e de acordo com as necessidades do povo, não do mercado.

O programa ainda cita aspectos relacionados à cultura e educação, onde há a reivindicação do direito à educação pública, gratuita, de qualidade em qualquer nível. E uma visão da solidariedade enquanto princípio cultural e político, em que a arte também é acessível e realizada pelos próprios camponeses. Além disso, há menção ao combate a todas as formas de preconceito, a exemplo das discriminações por gênero, idade, etnia, religião e orientação sexual. O programa cita, inclusive, a inclusão da democracia também nos meios de comunicação como importante para um outro modelo de desenvolvimento para o meio rural (MST, 2014, p. 36).

Tendo em vista esse direcionamento, o “novo” MST abre caminho para uma ação política mediante disputas que também estão no campo ideológico com os mais diversos setores progressistas, sejam eles rurais ou urbanos. Assim, campanhas como a de plantio de 100 milhões de árvores para recuperação de áreas degradadas ou mesmo o discurso da produção agroecológica inerente à cultura camponesa, com alimentos sem venenos agrícolas, se somam à atuação do MST. Não menos importante é a compreensão de que é preciso um ambiente democrático, de ampla participação popular e combate real das mais diversas desigualdades para que o horizonte da reforma agrária popular tenha alguma concretude.

Deste modo, é de se destacar a capacidade de formulação – e reinvenção – do MST a partir da análise das mudanças estruturais e conjunturais do campo brasileiro. Não se trata somente do latifundiário. Mas também de empresas globais, operadas sob a lógica do mercado financeiro que organizam a produção agrária e agrícola. O agronegócio se apresenta à sociedade como projeto único, aparentemente indiscutível diante da importância para a economia brasileira. Esse pacto político que também envolve o Estado brasileiro é construído diante de uma sublimação de outros projetos de setores populares.

Conhecer as contradições impostas ao agronegócio, seja pela escandalosa concentração fundiária, seja pelos prejuízos ambientais e sociais provocados pelo modelo, permite unir sob uma mesma franja diversos segmentos sociais. Não é “incomum” ver de artistas a ambientalistas influenciados pela atuação de um movimento social que se comporta como uma força política que disputa a hegemonia na sociedade.

Talvez seja de difícil compreensão para setores mais liberais o fato de que para se chegar a um modelo de produção sustentável e democraticamente aceitável, a propriedade enquanto sustentáculo do agronegócio precisa ser questionada. E num Brasil em que os ruralistas são bem posicionados socioeconomicamente, dificilmente conflitos serão cessados pela força da boa vontade de indivíduos. Seguramente as ocupações de terra ainda serão uma forma de protesto, mas de fato o MST não é o mesmo. Ele é ainda mais sofisticado.

Mayrá Lima é doutora em Ciência Política pelo Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília e jornalista. Trabalha com pesquisas relacionadas a elites políticas, movimentos sociais, participação política e meios de comunicação. É pesquisadora do Demodê/UnB.

Referência citada: MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA – MST (2014). Programa Agrário do MST. VI Congresso do MST. São Paulo: MST

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