Por Carla Rosário e Ana Luísa Machado de Castro

Pela primeira vez em uma eleição brasileira negros são a maioria entre os candidatos. No entanto, entre os cargos de maior poder como a Presidência, a Vice-Presidência, Governador(a) e Senador(a), negros são a minoria, como apontam dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Esta é uma contradição que parece ter sido refletida no primeiro debate presidencial televisionado que aconteceu no último domingo (8). 

Somou-se ao fato das candidaturas de negros se concentrarem em cargos de menor relevância política, a expressiva ausência de candidatos negros entre os debatedores juntamente com a ausência de jornalistas negros e a não intersecção da questão racial como elemento transversal aos demais temas. Esse conjunto fez com que o racismo se tornasse uma questão. 

Não fosse a ausência de negros, o debate poderia refletir a centralidade dos temas raciais nos últimos anos que tem aumentado cada vez mais as discussões sobre a importância da presença negra nos cargos de representação para garantir uma maior presença e compromisso com as políticas voltadas para a igualdade racial. A ausência de representação descritiva e a omissão de proposições políticas de combate ao fenômeno ausentes nas falas dos candidatos, deram o tom da presença de um instrumento reprodutor de desigualdades: o racismo estrutural.  

Racismo estrutural é o termo que constrói noções de raça e racismo e desafia sociedades contemporâneas de passado escravista, como o Brasil. Sendo um elemento que articula a organização econômica e política, o racismo estrutural é a tecnologia capaz tanto de conservar, quanto de renovar formas de reprodução de desigualdades. Nesse segmento, o termo também parece ser o elemento central produtor e reprodutor de eleições presidenciais embranquecidas em um país com 54% de pessoas negras ainda sub-representadas na política institucional.

O racismo, sempre estrutural como o é, se mostrou presente no primeiro debate entre os presidenciáveis apresentando-se em, pelo menos, três formas. A primeira foi com a própria ausência de candidatos negros, apesar de termos dois candidatos negros pleiteando o cargo da Presidência. Léo Péricles (UP) e Vera (PSTU) não estiveram presentes devido às regras do debate estabelecidas pelo veículo. Prevista por lei, as empresas são obrigadas a convidarem todos os candidatos à Presidência para os debates quando a representação parlamentar dos partidos atinja o número de cinco eleitos no Congresso. No entanto, fica a cargo dos veículos convidarem ou não candidatos que não atingem este patamar, como é o caso de Léo Péricles (UP) e Vera (PSTU). 

Talvez fosse este o momento de repensar as regras considerando paridade de gênero e raça.  Ainda que a presença  de candidatas e jornalistas mulheres fosse minoritária, foi isso que permitiu deslocar o debate para que a pauta de gênero fosse recolocada. No entanto, a questão racial passou ao largo da dinâmica. Na ausência das perspectivas de pessoas negras, fossem como candidatos, fossem como participantes, se fez presente o racismo estrutural. 

Historicamente, são poucos os candidatos negros que pleitearam as eleições presidenciais. O TSE passou a coletar dados raciais somente em 2014 e entre 2014 e 2018 candidaturas de políticos negros representaram apenas 16,6% de um total de 24 candidatos ao pleito da Presidência. Somados os números de sub-representação desta população na política institucional e os entraves estruturais, substantivos e subjetivos que candidatos negros enfrentam, o que se contata é que o debate e as políticas de inclusão e igualdade racial ainda precisa ganhar espaço e avançar para que pretos e pardos possam representar a si mesmos. 

A segunda forma que o racismo estrutural esteve presente foi a partir da ausência de representação negra que não se limitou aos candidatos convidados para o debate, se estendendo também para os jornalistas que fizeram parte da equipe que realizava as perguntas. Talvez por isso a temática racial tenha ficado tão ausente do debate, não sendo considerada como tema estratégico para perguntas ou como tema relevante para ser tratado nas respostas dos candidatos. Em um contexto em que 70% das pessoas que passam fome no Brasil hoje são negras e que o desemprego atinge mais essa parcela da população (brancos: 7,3%; pardos: 10,8%; e pretos: 11,3%), seria fundamental ouvir dos candidatos as propostas que sustentam para enfrentar tais problemas. 

Finalmente, a terceira maneira diz respeito à ausência do tema racismo/questão racial, evidenciando o descompromisso da grande maioria dos presidenciáveis com políticas de igualdade racial e combate ao racismo. Em um ano tão decisivo, não apenas por conta das eleições, como também por ser o ano previsto para a revisão da Lei Federal de Cotas (12.711/2012), que normatiza a política de cotas econômicas e raciais no ensino superior federal, esta ausência é no mínimo preocupante. A possibilidade de revisão da política poderia ter sido explorada de modo a fomentar uma discussão sobre os avanços e retrocessos desse tipo de política, bem como a sua ampliação para além da área da educação. 

Cabe pontuar que a ausência do debate não ocorreu apenas no debate de domingo. Nos programas de governo, apenas metade dos candidatos mencionou a questão racial e/ou o combate ao racismo. Ciro Gomes (PDT), Leo Péricles (UP), Lula (PT), Simone Tebet (MDB), Sofia Manzano (PCB) e Vera (PSTU) são os candidatos que mencionam o combate ao racismo nos seus planos de governo, ainda que o façam de forma geral e pouco detalhada. Mencionam, em sua maioria, a manutenção e a ampliação das ações afirmativas no ensino superior e nos concursos públicos. Outros poucos mencionam de forma pontual propostas voltadas para a segurança pública como forma de combater o genocicidio contra a população negra. 

A ausência de representação parece estar a par com a não vazão institucional tanto nos modelos e decisões sobre os debates adotados pela mídia, como também na forma como a questão racial desapareceu das proposições, planos e menções dos candidatos presentes no debate.  Raça e racismo são elementos da teoria social que, quando interseccionados, têm a capacidade de complexificar a leitura da realidade de diversas outras temáticas, como saúde, educação, segurança, emprego e renda. Para além disto, o movimento da intersecção faz-se necessário uma vez que a população negra, maioria da população brasileira, é também o grupo mais afetado em contextos que precarizam estas áreas de políticas. Quando ausentes do debate, presentes estão os indícios de continuidade de uma sociedade e democracia racial desiguais. 

Carla Rosário é doutoranda  e mestre em Ciência Política na UFMG. Graduada em Gestão Pública também pela UFMG. Pesquisadora do Projeto de Democracia Participativa e do INCT-IDDC. Investiga crises da democracia e os mecanismos de reprodução das desigualdades de gênero e raça no Brasil.

Ana Luísa Machado de Castro é doutoranda em Ciência Política na UFMG, mestra em Direitos Humanos na UFG e graduada em Relações Internacionais pela UFU. Atualmente é pesquisadora visitante do Departamento de Estudos Afro-Americanos da Universidade da Califórnia, Berkeley. Integra o Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher (NEPEM-UFMG). 

Esse artigo foi elaborado no âmbito do projeto Observatório das Eleições 2022, uma iniciativa do Instituto da Democracia e Democratização da Comunicação. Sediado na UFMG, conta com a participação de grupos de pesquisa de várias universidades brasileiras. Para mais informações, ver: www.observatoriodaseleicoes.com.br.

 

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