Papai foi um torcedor bairrista da zona leste de SP, coração alvinegro corinthiano! Quis o destino que antes que eu pudesse aprender mais com ele sobre seu amor pelo futebol, um acidente de moto tenha tornado a partilha mais difícil de se materializar. O acidente e os acontecimentos seguintes fizeram da nossa relação mais destroços do que sólidos sentimentos, embora eu tenha escolhido torcer para o Corinthians até os 20 anos.

Nascer, ser obrigada a ser “menina” e gostar de futebol nos anos 90 foi desafiador, mas nas minhas empreitadas de criança tudo sempre foi possível, ainda que com o mundo dizendo, sem dizer, ser impossível. Eu jogava, torcia, sofria, empreendia outras possibilidades de ser, sonhava e acreditava no futebol e no mundo. Até hoje acredito. A primeira vez que pisei no Pacaembú, e não poderia mesmo ser outro, foi através do meu pai e das ruínas da relação que aos 16 anos eu tentei reconstruir. Não esperava muito daquele momento, era só um estádio com um familiar desconhecido, as dores falavam mais alto que o coração. Por ironia do destino e uma surpresa pessoal sem fim, foi marcante não só na memória, mas na alma. Mesmo que eu tenha me dado conta disso mais de 10 anos depois. Não tinha muito o que trocar com meu pai, mas ali de frente pro gol assisti Carlitos Tevez empatando o jogo contra o Internacional em 1X1 e se tornar em 2005 campeão do Brasileiro. Na época eu ainda me identificava como Bianca, ainda sentia que minha presença incomodava tudo e a todos, que meu torcer não era bem-vindo, embora meu pai emanasse uma alegria sem fim de me ter ali a seu lado, do jeito dele, é claro. Talvez minha meninice tenha superado minha vontade de reconstruir essa relação familiar a partir do futebol.

Voltei imensamente feliz pra casa com a primeira camisa do Corinthians, presente do meu pai, mas foi só. Lembro como se fosse hoje da sensação de gritar gol e ver desaparecer todas as diferenças, incômodos e destroços. Por alguns segundos o mundo parou por completo. Felizmente antes de meu pai partir dessa vida tive a honra de me apresentar como Bernardo e a honra também que ele pudesse me ver jogar, não de forma profissional, mas como alguém que agora não só joga e torce por amor, como um perseguidor do propósito de ver todas as pessoas que tenham vontade de jogar e torcer, jogando e torcendo sem violência ou opressão.

Papai em 2019 com a fala debilitada pelos traumatismos cranianos que sofreu, superando todas as expectativas, conseguiu gritar um “Vai filhão!” entalado a vida toda.

Não o ouvi gritando, mas senti e soube pelo banco de reservas inteiro do time a emoção e a preciosidade que é ter um pai torcedor! O tempo é senhor de todas as possibilidades. Naquele momento e no agora já não existiam nem existem destroços ou amarguras da vida que não foi, só um pai apaixonado pelo filho que escolheu ser chamado de filho, que joga, torce e ama um time de futebol amador exclusivo para pessoas transmasculinas e que escolhe sonhar outras possibilidades de futebol para si e para o mundo. De onde quer que esteja, o coração alvinegro e generoso do papai, torce pelas minhas vitórias dentro e fora das quatro linhas e me ama como filho e eu a ele como pai. Obrigado pelo privilégio de partilhar a vida contigo, papai.

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