Por Helena Martins*

Há quatro anos, o Brasil foi surpreendido com a eleição de Jair Bolsonaro, mobilizada, entre outros fatores, pela avalanche de desinformação que promoveu. De lá para cá, cresceram os debates sobre o tema, que passou a ser mais estudado pela academia e enfrentado por instituições como o Supremo Tribunal Federal (STF) e a sociedade civil. Uma situação que gerou ampliação da conscientização da população, como tratado no texto que inicia a cobertura sobre desinformação e redes neste Observatório das Eleições. Apesar disso, a preocupação com a possível repetição do fenômeno de 2018 é crescente. Três questões devem nos deixar em alerta: a manutenção de estruturas desinformativas, a ausência de regulação efetiva e a atuação das plataformas digitais.

Não houve o desmonte das estruturas de desinformação. Grupos organizados e financiados por recursos públicos e privados, fábricas de likes, vazamento e venda de dados, entre outros elementos, permanecem uma realidade facilmente verificável nas redes. Não houve resultados efetivos da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) das Fake News. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) também não condenou Bolsonaro pelas ações nas eleições presidenciais. As investigações levadas a cabo pelo Supremo Tribunal Federal (STF) resultaram em prisões e vigilância, mas trataram apenas dos ataques ao sistema eleitoral e às instituições, desinformação que o próprio Bolsonaro, como no pronunciamento para embaixadores, continua a propagandear. Por outro lado, as defecções no interior do grupo que levou Bolsonaro à Presidência devem ser consideradas, assim como uma melhor compreensão do Judiciário no trato com esses problemas.

A manutenção das estruturas desinformativas alcançam, portanto, também as instituições, governo federal em primeiro plano, e veículos de mídia tradicional, que se beneficiam pela ausência histórica de acompanhamento do setor e de responsabilização em caso de problemas, ao passo que constroem novas estratégias de disputa ideológica. Reportagem da revista Piauí deste mês sobre a Jovem Pan é bastante esclarecedora. A matéria da jornalista Ana Clara Costa trata da adesão do grupo ao bolsonarismo, detalhando as relações políticas e estratégias levadas a cabo para dar visibilidade aos discursos de extrema direita, inclusive golpistas.

A Jovem Pan possui 66 afiliadas em vinte estados brasileiros, de acordo com dados de 2017, e no último período estreou na TV, com lançamento da TV Jovem Pan News em 2021. Acessível pela TV por assinatura e parabólica, lançou-se afirmando chegar “ao mercado como antídoto contra a desinformação no país”. Uma estratégia que nos faz lembrar Donald Trump, que se referia aos conteúdos midiáticos críticos ao seu governo como “fake news”. A revista também ganhou destaque no YouTube, onde alcançou liderança entre as rádios com transmissão ao vivo pela plataforma. Como a Piauí revela, tamanha projeção foi alcançada com o apoio do Google, que direcionou 300 mil dólares para a Jovem Pan em 2018. O grupo conseguiu, a partir de negociação com a plataforma digital, vender publicidade diretamente em seu canal e obter benefícios na moderação efetivada por ela. Em vez do uso de inteligência artificial para possível remoção de conteúdos, a Jovem Pan tem o privilégio de contar com uma equipe responsável pela parceria. Assim, a despeito de possíveis infrações à regulação, tanto os canais tradicionais como o virtual alcançaram ampla projeção.

Questões como transparência e o poder de derrubar ou não conteúdos de forma unilateral poderiam ter sido amenizadas com a aprovação do Projeto de Lei 2630, que ficou conhecido como PL das Fake News. O projeto, após anos de debate e várias modificações, muitas propostas por grupos da sociedade civil atentos ao tema, como a Coalizão Direitos na Rede, incorporou como eixo central a transparência das plataformas. Caso tivesse sido tornada lei, obrigaria a exposição de informações que, hoje, apenas as corporações possuem. Além disso, estavam previstas outras medidas, como a instituição de um devido processo para que os usuários não fiquem de mãos atadas diante de decisões questionáveis das empresas. A manutenção de links desinformativos no YouTube e em outras redes sociais, que chegou ao conhecimento da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid, é um exemplo do tipo de problema que poderia ser evitado. Havia uma expectativa de que o projeto fosse votado no fim de 2021, mas interesses de políticos e a pressão das plataformas criaram obstáculos para isso. Com forte lobby no Congresso Nacional e uma campanha pública nas redes que controlam, tais corporações contribuíram para que chegássemos às eleições mais frágeis.

É fato que algumas medidas foram tomadas pelas plataformas no combate à desinformação, motivadas especialmente pela circulação de conteúdos negacionistas sobre a pandemia e devido à preocupação com as eleições. Nesse sentido, firmaram acordo de cooperação com o TSE. No Facebook e no Instagram, alertas passaram a acompanhar conteúdos sobre temas sensíveis. O WhatsApp tem feito campanha pública informativa nas redes. O Twitter incluiu o Brasil em programa teste de ferramenta que indica publicações que podem levar a fraudes eleitorais ou colocar saúde pública em risco. O YouTube, por sua vez, disponibilizou página especial para combater a desinformação na qual trata de “Mitos e fatos sobre desinformação e conteúdos impróprios no YouTube” e presta esclarecimentos sobre políticas de conteúdo da plataforma.

Há, portanto, alguns avanços, mas a efetividade dessas medidas é questionável, sendo verificadas brechas que permitem desinformação. Ademais, não houve mudanças na lógica de funcionamento das redes, principalmente quanto ao uso de dados para produção de públicos segmentados e possibilidade de impulsionamento de anúncios, fatores centrais para as campanhas desinformativas alcançarem seus alvos e se beneficiarem da opacidade dos dark posts. Ao contrário, o TSE liberou o impulsionamento já na pré-campanha. A Biblioteca de Anúncios do Facebook registra que R$209,412,085 foram empregados em anúncios sobre política e eleições desde agosto de 2020. O principal anunciante da categoria é o Brasil Paralelo. Apenas nos últimos noventa dias, a produtora, também vinculada a conteúdos desinformativos, investiu R$ 3,716,069 na promoção de posts.

O Brasil Paralelo também é o principal anunciante no Google, segundo a reportagem. Todavia, como a campanha “BlackRock Do Something” alerta, a versão brasileira do Relatório de Transparência de Publicidade Política da corporação está incompleto, apresentando dados apenas de parlamentares federais e de candidatos a cargos nessa esfera, daí a cobrança para que a segunda principal acionista, a BlackRock, faça algo. A desigualdade no tratamento conferido a países como o Brasil também é apontada por Frances Haugen, ex-funcionária do Facebook que denunciou políticas da empresa, como a ausência de profissionais para lidar com moderação em países não anglófonos. No Brasil no último mês, Haugen falou da preocupação com as eleições que se aproximam e ajudou a divulgar uma carta assinada por mais de noventa organizações pedindo mudanças nas plataformas.

Ainda que essas questões não esgotem o problema das redes, elas são centrais porque impactam a organização de um ambiente fundamental para o debate público, especialmente neste período eleitoral. Poderíamos estar mais preparados para lidar com ele, mas os riscos ainda devem nos manter alertas.

* Helena Martins é professora da UFC. Doutora em Comunicação pela UnB, com sanduíche no Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade de Lisboa (ISEG). É editora da Revista EPTIC. Coordenadora do Telas – Laboratório de Tecnologia e Políticas da Comunicação e integrante do Obscom / Cepos.

Esse artigo foi elaborado no âmbito do projeto Observatório das Eleições 2022, uma iniciativa do Instituto da Democracia e Democratização da Comunicação. Sediado na UFMG, conta com a participação de grupos de pesquisa de várias universidades brasileiras. Para mais informações, ver: www.observatoriodaseleicoes.com.br.

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