Era um domingo comum lá em Vitória. Fui com ele no shopping de classe média da região. Daquele de brinquedos complexos que salvam nos dias de chuvas e nublados. Chegamos cedo, antes das 10. Quando abriu, subimos e descemos 13 vezes o jogo de escadas rolantes da entrada (tenho quase certeza que eram 15 vezes, mas é importante usar o número 13). O circuito das escadas foi guiado pelos gritinhos, sorrisos, “ihus”.

Já me cansei. Procurei umas das cadeiras acolchoadas antes da praça de alimentação. Sentei em uma e o João sentou noutra – um pouco distante. Não olhava para mim. Estava ocupado detido com as coisas da frente. Estava absolutamente entretido. Virei para o lado e de longe aproximavam do pequeno hall que estávamos uma mãe com uma menina criteriosamente vestida. Um pouco mais longe, um pai com o filho pedindo comida no espaço da elite capixaba.

Ao lado do ouvido veio um riso safado. Viro o rosto para frente e ele está de pé. Era um acontecimento, me olhando de forma irresistível. Não tinha como fugir. Abre todo rosto no formato do sorriso. Pronto, sou completamente refém do sorriso que abre até os olhos. Estou to-ma-do pelo gesto de meu filho. O João levanta os dois braços e posiciona em paralelo ao chão. Além do sorriso começa a emitir os sons de um avião. Começa a imitar nossa brincadeira.

No meio do Shopping chic, o moleque resolve levantar um voo imaginário. Lá aquele templo dos brinquedos técnicos, tecnológicos, caros, complexos. O simples se impõe. Eis que, no meio da minha distração, veio o convite a sorrir, com a brincadeira de ontem. Olha lá: ele faz sons do avião e nada, nada mais importa. Imita sons de motor empolgado. Eu não resisto, como se fosse bateria de escola de samba sou tomado pelo ritmo, levanto e sigo no voo. Aumento o coro. Olha lá: os dois moleques no meio do hall do shopping de luxo sorrindo desafiando a ordem opaca. Eles fazem uso da brincadeira de baixa tecnologia, sem nada monetarizado. São só duas crianças inventando o parque o meio do salão.

Ao vê acompanhando ele ri ainda mais. Ele grita até. Aumenta os sons de avião. Ao redor do acontecimento, a menina da mãe meticulosamente vestida se livra das suas mãos. Ela corre na direção do voo desafiador. O menino do pai que esmola mais longe também corre na direção. Se aproximam, não resistem, entram no voo inusitado. Assim, se éramos dois, passamos a ser quatro. Olha lá: os quatro rodando preenchendo o salão aos risos e sons de avião. Eis que, nesse instante o cronometro foi parando. O universo se aproximou.

Ele se comoveu com o bonde do voo imaginário transbordando em cores o lugar petrificado. O acontecimento não dava para ser ignorado. A moça que trabalha na loja se aproximou rindo e batendo palmas em um ritmo. Um rapaz que retirava o lixo se aproximou e ficou imitando o som do avião. Eis que, o singelo toma o lugar meticulosamente arquitetado.

E, eu tomado pela alegria do João – o moleque mas feliz do mundo. E, ele percebe o que está ocorrendo e sai do círculo, do trajeto do avião. Ele tomado de felicidade, aquela que o riso doe a barriga, não se aguenta e deita no meio do hall. Tenta (sem sucesso) segurar barriga porque não aguenta a risada.

Com o descarrilamento do voo bonde louco, uma das meninas segue o ritmo do avião. A outra roda em volta de si no meio do hall. Olha lá: as quatro crianças implodiram um hall do shopping bobalhão no templo de risos. Não tinham brinquedos com preocupação das cédulas, ou geografias, fomos apenas convocados pelo inusitado. Não existe nada maior. O sorriso que comove a vida. O sorriso que toma a vida no inusitado. O olhar da criança que preenche o mundo.

Eu me afasto. Só ali percebo que estou sorrindo os risos que tinha esquecido. Aqueles que à vida adulta retira de nós. Em meio a eles tento entender a catarse que ocorre. Reparo de longe, as crianças, as pessoas, como aquele branco higiênico mudou. Agora está tudo preenchido de sons, risos, coloridos, pulos, a felicidade no meio. O voo do João mudou a áurea daquele espaço formal que vive das roupas, comida processada, das drogas licitas. Olha lá: por instantes o shopping teve vida. Não de uma gente chata, cafona, dos ricos que pouco riem, que pouco se permitem olhar nos olhos das crianças. E, que, sobretudo, terceirizam os olhares, os cuidados.

Uma memória que vem, são daqueles que dizem que as coisas cotidianas que são as miudezas, o micro da vida. Fico sorrindo indignado com essa lógica. Balanço a cabeça em negativo. Repito internamente: não dá entender. Porque a agua que se toma fresca do rio, o mergulho no mar, o sorriso da criança no domingo é a totalidade da vida. Nada é maior. Está tudo ali. Tudo, tudo se faz para ele. Nada é maior, nem deuses, nem santos, nem infernos.

Olha lá: naquela manhã de domingo a vida comoveu-se. O universo parou sobre a Grande Vitória. O lindo espirito de um pequeno erê livre da Serra. Abriu o sentido da narrativa do evangelho “deixai porque delas é o reino dos céus”. Delas é inclusive qualquer céu e qualquer domingo. Olha lá: é apenas uma cena de domingo qualquer, mas também, é o princípio e o fim como um domingo no calendário semanal.

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