O que é uma educação transformadora? E como Estados de todo o mundo devem se apropriar desse conceito para implementarem suas políticas públicas?

O segundo dia de Fórum Político de Alto Nível da ONU reuniu, em sessão sobre o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 4 (educação) da Agenda 2030, lideranças de Estados, da ONU e de organizações da sociedade civil para apontar caminhos sobre como garantir o direito à educação em meio a crises, e após três anos do início da pandemia de Covid-19.

A exemplo de matéria publicada no site da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, faço aqui um relato dos destaques dos debates no Fórum.

Lembrando que represento a Campanha no evento, além de fazer parte do Grupo de Trabalho da Sociedade Civil para a Agenda 2030 (GT Agenda 2030), da Campanha Global pela Educação (CGE) e da Campanha Latino-Americana pelo Direito à Educação, e sou integrante da Rede de Ativistas pela Educação do Fundo Malala no Brasil, organizações também presentes na ocasião.

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O Fórum Político de Alto Nível da ONU 2022 mostrou desafios comuns e soluções bastante diversas trazidas para o cenário da educação no mundo hoje.

Em geral, o debate tem tentado traduzir o que é ‘educação transformadora’, tema da Cúpula de Educação Transformadora que acontecerá em setembro deste ano. Para uns, significa digitalização e acesso a tecnologias. Para outros, significa o compromisso real com acesso, permanência, qualidade e ensino.

Educação transformadora: não é mercadoria


Madeleine Zuñiga, do Peru e da Campanha Global pela Educação (CGE), reiterou o abandono dos docentes neste momento, aprofundando as pobrezas, especialmente para estudantes indígenas, com deficiência, migrantes, das ruas.

“O conceito de inclusão precisa ser entendido no conceito amplo – vai além de gênero e deficiências. Precisamos saber o motivo de estarem sendo excluídos”, disse Zuñiga.

Ela reitera que excelente qualidade de formação de docentes significa investimento, não só em termos do PIB, mas do valor por aluno.
Precisamos também falar de quanto se necessita para o financiamento adequado e suas fontes para a educação. E são os Estados que têm o principal papel de financiar a educação.
Zuñiga ressalta a necessidade de conhecer o sistema de tributação dos países. “Há muita injustiça e evasão de impostos. Precisamos pensamento crítico sobre justiça fiscal, e o pensamento crítico nasce dos docentes”, concluiu.
Surpreendeu positivamente também a fala de representante do Ministério da Educação do México: “Temos uma mudança de olhar para a educação superior para ciência e tecnologia, dizendo não à mercantilização do conhecimento e sim ao bem viver.”
O México afirma que trouxe a oferta de educação low tech na pandemia, via TV e rádio, por exemplo, para garantia de acesso. Também tocou no tema da colaboração entre comunidade educacional e famílias/responsáveis, e do empreendimento coletivo a nível comunitário.

REA e valorização de educadores

Leonardo Garnier, assessor especial para a Cúpula de Educação Transformadora, comenta que é preciso garantir educação com tecnologias abertas, melhorar o financiamento com justiça fiscal, superar as barreiras das desigualdades raciais.

Susan Hopgood, presidente da Education International, trouxe luz à imensa crise que passamos na educação, especialmente as/os professoras/es, com condições precárias de trabalho e salários. “É preciso uma base forte para um trabalho sério na educação”, afirma.

Esta base está fundada, segundo Hopgood, em novo compromisso com: valorização de educadores, direitos trabalhistas e segurança, formação, envolvimento de educadores nas decisões. São essas as condições para a transformação e para cumprimento de todos os ODS.

Somente Garnier reiterou a importância de recursos educacionais abertos (REA). Não se ouviu declarações sobre proteção de dados, educação digital e a atuação do setor privado na educação.

O comentário mais realista foi de Hopgood, que demonstra conhecer a fundo os desafios do ensino no mundo de hoje.

“A educação não é mercadoria”, disse Zuñiga, em resposta às afirmações no debate que tendem à agenda de digitalização acrítica.

Percebe-se claramente a posição da sociedade civil organizada, ouvindo Zuñiga e Hopgood.

Investimento para o futuro: público ou privado?


Omar Abdi, vice-diretor de programas do Unicef, reiterou a importância do aprendizado para o desenvolvimento das crianças. “Educação é um investimento para o futuro das crianças e para a sustentabilidade das nações”, disse. Atingir todas as crianças e garantir que permaneçam na escola; garantir acesso nas margens; bem-estar de crianças e apoio psicossocial são pontos propostos pelo UNICEF para este momento na educação.

Haoyi Chen, da divisão de estatística da UNDESA (Departamento de Assuntos Econômicos e Sociais das Nações Unidas), reforça que a educação remota excluiu milhões de crianças durante a pandemia e conflitos. Ela traz luz aos desafios de infraestrutura e de atendimento psicossocial para as crianças nas escolas no retorno às aulas.

Para Stefania Giannini, diretora assistente da Unesco e coordenadora das preparações para a Cúpula de Educação Transformadora, há três mensagens-chave neste momento: 1) reabrir as escolas com resiliência; 2) renovar o compromisso com a educação; e 3) investir em educação.

Por parte dos Estados, a defesa de uma agenda de direito à educação integral partiu de Finlândia e Cuba, com forte enfrentamento às desigualdades sociais e educacionais, e trazendo ao centro políticas com gestão democrática e autonomia.

Malawi, por sua vez, cita o uso de financiamentos inovadores, de parcerias público-privadas, digitalização da educação e entrega de bolsas. Esse é um pacote de reformas que Estados de baixa renda têm movido, a partir da proposta da Education Commission.

Li Anderssom, Ministro da Educação da Finlândia, reforçou a equidade na educação e a igualdade na sociedade. Para isso, é preciso aumentar a abordagem colaborativa nas decisões sobre educação e sistemas de educação flexíveis, que são mais resilientes.

Representante de Cuba afirmou que o país investe 23% do orçamento anual em educação e que é preciso maior intercâmbio e cooperação internacional.

Direitos das meninas


Marie Michelle Sahondrarimalala, Ministra da Educação de Madagascar, trouxe a necessidade de educação para a autonomia, com acento na formação de meninas. Trouxe ainda as políticas de educação em emergência diante dos ciclones que atingiram a ilha.

Saba Khalid, colega do Malala Fund e do Women’s Major Group, trouxe a necessidade de educação para meninas em situações de crise, que estão fora da escola, em pobreza e sem direitos à saúde sexual e reprodutiva, reforçando a abordagem de respostas focadas em abordagem de gênero.

Educação transformadora: pró-mercado

A China trouxe exemplo da agenda de digitalização e as reformas que vão junto com ela.

Iniciou o discurso tratando do momento de “revolução tecnológica” na educação, colocando a educação como papel fundamental no desenvolvimento econômico e social e na recuperação global. Reforçou também a necessidade da educação para o desenvolvimento humano, com integração com saúde, e outras questões sociais, ambientais e do mundo do trabalho.

Pequim afirmou total apoio à Cúpula de Transformação na Educação, com reforço da transformação digital da educação, atualização dos métodos de ensino e da educação profissional. Concluiu ressaltando a “educação verde” para a “civilização ecológica”, em uma “sociedade do aprender”.

Tal discurso é entusiasmado com um modelo com os pilares da educação integral, mas deixa de lado a cidadania em favor de uma educação focada no desenvolvimento econômico. Diz muito sobre o que esperar das disputas políticas na Cúpula de Educação Transformadora.

“Educação não é um privilégio, não é uma oportunidade, educação é um direito humano”, afirmou Charles North, diretor da Parceria Global pela Educação, trazendo discussão realizada no final de junho na pré-Cúpula da Educação Transformadora, com foco na necessidade de financiamento.

Vale lembrar que a Parceria Global pela Educação que North preside é espaço em disputa sobre tendências de colaboração, com disputas latentes sobre o modelo de educação e suas formas de financiamento, do doméstico, passando pela ajuda internacional, até o financiamento privado.

Dizer “educação não é privilégio” é compromisso com equidade, educação pública e gratuita. Dizer “educação não é oportunidade” é se opor ao discurso do capital humano. Dizer “educação é um direito” é assumir a acessibilidade, aceitabilidade, disponibilidade, adaptabilidade.

Espero realmente que a Cúpula de Educação Transformadora realimente siga essa máxima, ainda que eu saiba que as forças do lobby do mercado internacional estão esticando e muito a corda para a privatização da educação e o deslocamento de seu lugar como direito.

Tenho acompanhado e colaborado com as discussões da construção da Cúpula representando a na Coordenação Global da Consulta Coletiva de ONGs para a Agenda 2030. Temos feito críticas fortes e puxado a agenda para a perspectiva do direito.

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