Em 19 de maio, os institutos Sagres, Vilas Boas e Federalista divulgaram o documento “Projeto de Nação: Brasil 2035”, assinado pela Consultoria Política e Empresarial para as Américas (CPEAZ). Em 93 páginas, o texto reúne afirmações e diretrizes sobre 37 temas, e foi elaborado sob a coordenação do general Luiz Eduardo Rocha Paiva. A elaboração e lançamento do projeto foram financiados pelo governo federal.

Na solenidade de lançamento, que contou com a presença do vice-presidente da República, Hamilton Mourão, Rocha Paiva disse que o documento é “apartidário, aberto e flexível”, mas que deve ser implementado “mesmo que haja mudança de governo” em decorrência das eleições de outubro. Porém, deixando clara a sua parcialidade política, o general acrescentou: “Claro que, se for da direita para a esquerda [a mudança de governo], vai jogar fora”. Ele já presidiu a ONG Terrorismo Nunca Mais (Ternuma), fundada pelo general Brilhante Ustra, condenado pela prática de tortura a presos políticos no regime militar.

O documento, além de pretender equacionar os diversos temas, os subordina a uma visão pré-estabelecida de mundo, em que o “globalismo” é apontado como o mal maior, a grande ameaça à soberania dos países. É atribuída uma intenção maligna ao globalismo, mas o seu sujeito político é obscuro, sendo atribuído, em diferentes passagens do documento, a interesses financeiros e comerciais, a organismos multilaterais ou à emergência da China como potência.

Donos da verdade

Curiosamente, em nota de introdução denominada “explicação necessária”, os autores do texto se apresentam como “seção brasileira” da tal CPEAZ e afirmam que a projeção de país para 2035 não é uma “vã tentativa de adivinhar”, mas um “exercício baseado em métodos consagrados para alargar os mapas mentais, visualizar as principais tendências e suas rupturas”. Mesmo sem esclarecer que métodos seriam estes, eles atribuem um saber inquestionável na formulação do tal “projeto de nação”.

A partir dessa premissa, cada tema é tratado a partir de um “mini cenário temático”, que resume o diagnóstico e a posição dos autores sobre assuntos variados e complexos, esquematicamente formulados, sem considerar outras opiniões. Seguem-se listas de “diretrizes” para se implantar cada diagnóstico temático, e de “óbices” a isso. Nas listas dos óbices, vão sendo acusados e estigmatizados diversos atores sociais e políticos, ora como ignorantes, ou lenientes, ou corruptos, ou traidores da pátria.

Por exemplo, o documento desqualifica causas civilizatórias globais e faz acusações genéricas e levianas aos atores nelas envolvidos. Segundo o texto, “há visível união de esforços entre determinadas entidades nacionais e o movimento globalista para interferir em decisões locais, especialmente em falsas pautas de direitos de minorias e de defesa do meio ambiente”. O documento também acusa os professores da rede pública de ensino de propagarem ideologias esquerdistas entre os alunos e preconiza o controle político na escolha dos reitores das universidades. Seus autores são donos de verdades seletivas.

Donos do poder

O documento não inclui a miséria que assola milhões de brasileiros entre os temas que devem ser tratados no “projeto de país”, mas inclui o “excesso de pessoas que dependem do Estado para sobreviver” entre os “óbices” ao seu desenvolvimento. O documento sequer menciona a hipertrofia orçamentária do Ministério da Defesa e, ao contrário, indica novos investimentos. Ao mesmo tempo, pretende que os usuários do SUS paguem pelos serviços de saúde, e que também seja pago o ensino nas universidades públicas.

Os autores do documento são tão convictos das próprias verdades que chamam de “história futura” as projeções “metodológicas” que fazem para o país. Eles também são candidatos a ditadores. O seu projeto de país, inquestionável, deve prevalecer, agora e sempre, pelo menos até 2035. Para tanto, pretendem instituir um “centro de governo”, composto por eles mesmos, para subordinar os poderes da República às suas próprias diretrizes, seja lá quais forem os (não) governos eleitos pelo povo.

Nessa balada, o documento também inclui entre os óbices ao seu projeto nacional a inexistência do tal “centro de governo”. Ou seja: considera como óbice a própria Constituição, que dispõe sobre os poderes e subordina a eles as Forças Armadas. A sua sabedoria metodológica está acima do mundo, do povo e da lei.

Negacionismo estratégico

A ligeireza intelectual com que aborda diversos temas complexos, a postura isolacionista em um mundo globalizado e a atitude antidemocrática com que o documento desqualifica outras opiniões, não são os únicos fatores de assombro que a sua leitura proporciona. Questões de estratégia e de defesa do território são tratadas com base em hipóteses ridículas, como se a justificativa para o país manter o seu aparato de dissuasão militar na Amazônia fosse uma suposta ameaça à nossa soberania representada pela exploração de ouro na Guiana, quando há farto noticiário sobre o descontrole deliberado sobre a garimpagem predatória em território brasileiro, inclusive em terras indígenas, faixas de fronteira e outras terras públicas, até mesmo ao lado de batalhões de fronteira e de bases de outros órgãos públicos.

Ao mesmo tempo em que os autores do documento se sentem obrigados a inventar motivações estratégicas descabidas, recorrem à leviandade ideológica de excluir do seu escopo o tema das mudanças climáticas globais, que consiste no mais determinante fator de risco deste século para a economia, para a proteção da Amazônia e para a própria vida humana. Por incrível que pareça, a variável climática não é considerada nas projeções para a produção agropecuária e de energia, nem como vetor estratégico na geopolítica global, a não ser como um falso pretexto para o protecionismo comercial.

Embora o documento seja pródigo em afirmações descabidas, é o seu negacionismo estratégico que mais o desqualifica. Não seria apenas um eventual presidente de esquerda que o jogaria no lixo; ele não resistiria ao debate em qualquer foro militar sério de estudos estratégicos.

Sugestão de leitura

Faria bem ao general Rocha Paiva a leitura do Relatório Mundial de Clima e Segurança, que é feito pelo Conselho Militar Internacional sobre Clima e Segurança. Ele integra uma instituição sem fins lucrativos chamada Centro para Clima e Segurança, baseado em Washington, Estados Unidos, é composto por militares e ex-militares de várias nacionalidades.

O Relatório, de 2020, identificou uma opinião unânime entre todos os especialistas ouvidos: todos os riscos climáticos irão aumentar até 2040 e, na sua maior parte, atingirão níveis “significativos” ou “ainda mais altos”. A intensificação de impactos provocados por ondas de calor extremo, secas e enchentes, ou aumento do nível dos oceanos, elevará o risco de instabilidade política e de conflitos. Nenhum país do mundo estará livre das consequências das mudanças climáticas. A maioria dos especialistas prevê que, até 2040, os impactos climáticos vão agravar os conflitos internos dos países mais do que os conflitos entre os países.

Insegurança hídrica, desastres naturais que implicam em deslocamento forçado de pessoas, insegurança alimentar, agravamento de conflitos políticos internos e entre nações, estão entre os riscos climáticos apontados pelos especialistas. Por exemplo, a disponibilidade de água vai se reduzir e, até 2030, já serão significativos para a segurança global, atingindo níveis graves ou catastróficos até 2040.

O Relatório inclui o Brasil entre os países que serão mais afetados pela redução da disponibilidade de água, agravada pelo aumento do desmatamento na Amazônia e em outros biomas. A exemplo do que já vem ocorrendo em anos recentes, essa redução afetará a produção agrícola, o abastecimento urbano e a geração de energia, aumentando a inflação dentro e fora do país.

O Relatório menciona, entre as dificuldades do país para enfrentar os riscos climáticos, o fato das suas instituições militares “ainda não terem acordado” para eles, o que a maioria dos especialistas atribui à falta de informação e ao viés ideológico xenófobo e autoritário, que limita as opções de intercâmbio e de cooperação com instituições militares de outros países.

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