Na última parte desta entrevista, Paula Tavares, advogada e especialista do Banco Mundial, fala sobre como ferramentas digitais acessíveis a mulheres podem ser úteis na proteção e luta por seus direitos no combate à violência feminina, racismo, discriminações, desigualdade salarial. Alguns exemplos de assistentes virtuais desenvolvidos pelas iniciativas pública e privada foram apresentados pela entrevistada.

A formação e o surgimento de coletivos femininos e feministas na defesa de direitos, formação de leis, inclusão no mercado de trabalho, empoderamento, educação como fundamentais no trabalho que realiza e a segurança das mulheres em plataformas digitais de Big Techs foram outros temas da entrevista.

Para causas como violência feminina, racismo, discriminações, desigualdade salarial entre outras causas feministas: quais são as ferramentas digitais que são acessíveis a mulheres para se protegerem e lutarem por seus direitos?

Interessante essa pergunta, principalmente nesse momento (quase) pós-pandemia, pois acompanhamos uma explosão de recursos baseados em tecnologia ao longo dos últimos dois anos. De fato, as ferramentas digitais têm tido um papel crucial em garantir maior acesso das mulheres a recursos e informações para se protegerem e lutarem por seus direitos. Em especial, desde o início da pandemia, a tecnologia possibilitou a expansão de serviços para mulheres, em especial em termos do enfrentamento à violência contra a mulher. Acompanhamos, por exemplo, a adaptação de serviços de segurança e judiciários durante a pandemia para continuar garantindo que vítimas de violência doméstica pudessem registrar ocorrências policiais e solicitar medidas protetivas online, o que antes não era possível na maioria dos estados e municípios. O Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos lançou o aplicativo Direitos Humanos BR para disponibilizar o serviço de denúncia com a possibilidade de envio de fotos e vídeos que possam ajudar a vítima a relatar a situação em que está.

Várias iniciativas da sociedade civil foram criadas ou ampliadas com base em ferramentas digitais. Há aproximadamente dois anos, foi criado o projeto Justiceiras, que reúne uma rede de voluntárias de diferentes áreas – advogadas, assistentes sociais, psicólogas, entre outros, que oferece assistência para mulheres vítimas de violência doméstica. Os pedidos de ajuda e atendimentos são realizados por WhatsApp ou pela plataforma virtual da iniciativa, e vem se tornando um canal de apoio cada vez mais atuante. A iniciativa também fez uma parceria com o aplicativo de entregas Rappi, pelo qual a ajuda pode ser acionada clicando na opção “SOS Justiceiras”. São inovações que vêm ocorrendo para criar canais de ajuda às vezes mais seguros ou acessíveis.

Outro grupo que se tornou também cada vez mais atuante é o Mete a Colher, rede de combate à violência contra a mulher que também dá apoio a vítimas e orienta sobre locais de denúncia. A rede tem perfis no Instagram e no Facebook, por onde podem ser feitos pedidos de ajuda por mensagens inbox, e nasceu com base na ideia daquela frase que diz que em briga de casal não se mete a colher, para trazer a consciência de que, na verdade, cada vez mais, existe uma responsabilidade de todos de ter uma atuação de denunciar, intervir e ajudar. É mais um trabalho muito bonito. Outro projeto, superinteressante é o ISA.bot. Criado pela organização Think Olga e o Mapa do Acolhimento, o aplicativo é um robô que atua no Facebook Messenger e no assistente Google, e oferece dicas e orientações para mulheres vítimas de violência doméstica.

Outros assistentes virtuais foram criados por empresas conhecidas, como o “Você não está sozinha”, desenvolvido pelo Instituto Avon em parceria com a Uber, Decode e outros, que atua como porta de entrada para ajudar mulheres a entender se estão passando por violência e dar informações sobre serviços e apoio. O app do Magalu (Magazine Luíza) criou também um canal de denúncia que conecta mulheres em situação de violência diretamente com as redes de apoio. A ferramenta viralizou a partir da divulgação feita pela assistente virtual “Lu” sugerindo que mulheres em situação de violência podiam “fingir” que iam fazer compras no app Magalu e assim acessar o botão para denunciar a violência e pedir ajuda. Outras iniciativas digitais semelhantes surgiram e continuam sendo desenvolvidas com abordagens diferentes com enfoque em promoção da igualdade de gênero e proteção dos direitos da mulher.

Foto: Acervo Pessoal

Lançamento do relatório “Mulheres, Empresas e o Direito 2018” e capacitação de representantes de organizações femininas no Gabão (2018)

Lançamento do relatório “Mulheres, Empresas e o Direito 2018” e capacitação de representantes de organizações femininas no Gabão (2018)

Considera a formação e surgimento de coletivos femininos e feministas na defesa de direitos, formação de leis, inclusão no mercado de trabalho, empoderamento, educação fundamentais no trabalho que realiza e nas causas que advoga? 

Tratei um pouco sobre estas iniciativas anteriormente e a importância dos movimentos femininos e feministas nos avanços conquistados em termos de reconhecimento e garantia de direitos, formação e reformas na legislação, e a maior equidade que temos hoje em termos de oportunidades e inclusão socioeconômica. E vejo hoje cada vez mais a formação, expansão e fortalecimento de grupos de mulheres, potencializados inclusive pelo uso da tecnologia e acessos digitais. Participo de diversas redes de WhatsApp, por exemplo, que têm sido importantes para avançar essas causas, divulgar informações, trazer apoio e promover a sororidade entre mulheres, e garantir também espaços de compartilhamento e de avanços desses reconhecimentos. Falando um pouco do meu trabalho, em especial na África, coordenei durante mais de dois anos a promoção de treinamentos, workshops e eventos em diferentes países, com enfoque na participação de grupos da sociedade civil, principalmente organizações femininas, para trabalhar esses temas. A ideia era promover a troca e o intercâmbio de informações, experiências e boas práticas. Pude ver de perto o quanto essa integração e o trabalho desses grupos é importantíssimo. Quase todos os exemplos que eu poderia relatar de avanços legislativos nos diferentes países foram impulsionados com base nos esforços desses grupos e movimentos.

No Brasil e na América Latina temos os exemplos dos movimentos feministas, e a história nos mostra o quanto é importante esse trabalho, que traz uma propulsão catalisadora de avanços enorme. Tenho visto esse movimento hoje principalmente pelos meios digitais, nos grupos e nas plataformas, o que traz também uma capilaridade importante, principalmente considerando o momento atual. Se voltarmos à pergunta sobre como estamos avançando, a realidade é que estamos vivendo um momento de retrocesso das conquistas alcançadas em termos de igualdade de gênero. O movimento dos coletivos femininos e feministas é importantíssimo principalmente nesses momentos. É preciso apoiar e dar maior visibilidade a essas iniciativas, garantir sua continuidade e reforçar o impacto desse trabalho.

Em 2019, Tim Berners Lee lançou no WebSummit um novo manifesto para a Web, focado em assegurar a privacidade de dados, proteger cidadãos, inclusive mulheres de violências digitais etc. No ano passado, no UN Generation Equality Forum, realizado pela ONU em Paris, Twitter, TikTok, Google e Facebook se comprometeram a combater o abuso online e melhorar a segurança das mulheres em suas plataformas. A promessa veio após consultas com a World Wide Web Foundation (WWWF, fundada e comandada por Lee) no ano passado, com o objetivo de examinar a violência e o abuso online de gênero. Acredita que de fato este novo manifesto na prática promova uma mudança de paradigma?

Em primeiro de julho de 2021, durante o Fórum Geração Igualdade, realizado pela ONU em Paris, quatro gigantes da tecnologia, de plataformas virtuais (Twitter, TikTok, Google e Facebook) adotaram um compromisso importante para combater a pandemia de abusos on-line, melhorar a segurança de suas plataformas para as mulheres. Os compromissos foram desenvolvidos a partir de uma série de consultas e workshops realizados pela World Wide Web Foundation, que reuniu 120 especialistas de empresas de tecnologia, da sociedade civil, do meio acadêmico e de governos de trinta e cinco países com o intuito de cocriar soluções para os problemas de violência e abuso online de gênero.

Alguns dos dados publicados no início do ano passado mostraram como diferentes produtos e soluções de políticas poderiam impactar a segurança das mulheres, principalmente jovens, nas plataformas de mídia social. Algumas conclusões a partir dessas consultas mostraram, por exemplo, que muitas jovens não têm consciência ou conhecimento das políticas das plataformas e das características de produtos dessas plataformas que podem contribuir para a sua segurança. Jovens que utilizam as plataformas de mídias sociais nem sempre descrevem ou explicam as experiências de abuso como tal, então elas não são registradas ou denunciadas. O abuso online pode muitas vezes levar as jovens, meninas e mulheres, principalmente, a permanecerem em silêncio, ou a deixarem de usar esses espaços e plataformas, ao invés de denunciarem. Então, existe realmente essa cultura do silêncio, ou de não denunciar os abusos. Há uma preocupação, em especial de meninas e mulheres jovens, com a exposição de vídeos e imagens abusivas, e uma consciência de que os sistemas de denúncias não estão funcionando bem, e que as limitações das ferramentas de segurança formais acabam levando mulheres, em especial mais jovens, a encontrarem meios informais de se protegerem, por não encontrarem as ferramentas para fazer essas denúncias de maneira formal.

Então essas foram algumas das consultas que levaram aos compromissos lançados durante o Fórum Geração Igualdade por estas empresas, que estão trabalhando para explorar e testar protótipos e soluções desenvolvidas durante esses workshops. O enfoque é que as ferramentas tenham, entre outros, características ou formatos que possibilitem que as mulheres administrem melhor quem pode engajar-se com os seus posts, melhores e maiores opções de filtrar tipos de conteúdo, e sistemas de denúncia aprimorados, permitindo, por exemplo, que os usuários possam monitorar e administrar seus registros de casos de abuso. As empresas também se comprometeram a garantir que as soluções sejam contempladas dentro de prazos concretos e definidos, e que dados e insights sobre os avanços na implementação desses compromissos sejam também publicados de maneira regular. Espera-se, portanto, uma transparência em termos da realização desses compromissos, sua implementação e os resultados das soluções.

A World Wide Web Foundation congrega essa iniciativa, irá trazer relatórios e informes anuais sobre como as empresas de tecnologia têm avançado na implementação desses compromissos, por exemplo, implementar abordagens ou formatos melhores, com configurações mais detalhadas e granulares (como poder definir quem pode ver, compartilhar comentar e responder aos seus posts), para garantir maior segurança online. Além disso, a utilização de uma linguagem mais simples e acessível para os usuários pretende aumentar o entendimento sobre os recursos disponíveis e a possibilidade de adaptar as configurações, com ferramentas de segurança que sejam de fácil navegação, acesso e utilização. Por outro lado, a proposta é reduzir um pouco a responsabilidade e a carga em cima das mulheres, com uma atuação mais proativa das próprias empresas de monitorar e coibir o abuso e reduzir o volume de conteúdo abusivo.

A adoção desses compromissos de combate ao abuso on-line, que atinge hoje milhões de mulheres no mundo todo, e é cada vez mais um risco relevante em um mundo progressivamente digital, é um marco crucial, quando se fala dos avanços em direção à igualdade de gênero.

Dados recentes mostram que a violência contra a mulher, de proporções assustadoras nos espaços físicos, também está se reproduzindo no meio digital. Dados globais revelam que 38% das mulheres informam ou relatam terem sido pessoalmente afetadas ou sujeitas a violência on-line. Isso faz parte de um levantamento da Unidade de Inteligência do Economist (Economist Intelligence Unit – EIU) e tem um impacto ainda maior em algumas gerações dos mais jovens. Um levantamento da World Wide Web Foundation também mostrou que 52% de jovens mulheres e meninas tinham sofrido com alguma experiência de abuso online. Essas proporções de incidência mostram a relevância dos compromissos dessas empresas de aumentar a segurança online. Em especial, pelo reconhecimento de que a internet hoje é dominada por um número relativamente pequeno de empresas que, de alguma forma, moldam a experiência online de bilhões de pessoas. E quando essas empresas, ou plataformas, não levam em consideração as experiências de mulheres, as consequências podem ser enormes. Por outro lado, desenvolver soluções efetivas no combate ao abuso pode ter um impacto significativo também de garantir uma maior equidade de gênero na participação nas plataformas online. As soluções para o abuso online precisam ser estruturais e considerar metodologias inclusivas, ou com um enfoque de gênero, para de fato combaterem as causas-raiz da desigualdade. A ideia é justamente essa: de que as empresas consigam de fato desenvolver soluções que garantam maior segurança, e, assim, maior acesso, para as mulheres. O resultado será um mundo on-line mais seguro e com maior equidade de gênero.

Eventos de capacitação de representantes de organizações femininas na Guiné-Bissau sobre empoderamento feminino e direitos da mulher (2019)

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