Ao conceder “graça constitucional” ao deputado Daniel Silveira (PTB-RJ), logo após a sua condenação pelo STF, Jair Bolsonaro usou a prerrogativa presidencial do indulto para peitar uma decisão judicial específica, a favor de um aliado pessoal, chutando a linha de cal que conforma as “quatro linhas do gramado” – metáfora futebolística com que ele se refere à democracia.

O então candidato a deputado Daniel Silveira quebra a placa com o nome de Marielle Franco. Foto: Reprodução Twitter

Silveira se move por um ethos miliciano e é useiro e vezeiro em atacar as instituições democráticas, em especial o STF. Incita à sua invasão, ao descumprimento das suas decisões e, até, à violência física contra seus ministros. Tentando dissimular, o presidente da República alegou que não concorda com “todas” as opiniões de Silveira, mas editou a tal “graça” para garantir a sua “liberdade de expressão”.

A lógica presidencial parece não admitir limites nessa liberalidade toda, assim como parece entender que só se configuraria o crime se Silveira tivesse ido às vias de fato. Bolsonaro finge que esquece que processa Ciro Gomes, Jean Wyllys e até Abraham Weintraub na Justiça, por calúnia e difamação, mas acha que Silveira tem o direito de ameaçar de morte um ministro do Supremo. Não só acha, como se vale de uma prerrogativa legal para encobrir o crime do aliado e estimular a reincidência.

Liberdade para matar

Na verdade, a liberdade reservada por Bolsonaro aos seus vai muito além da questão do direito à expressão e abrange variados ramos de atividade, como a indústria de fake news, rachadinhas de dinheiro público, nebulosas retaguardas empresariais, além dos bastidores de crimes políticos, como o assassinato de Marielle Franco. O orçamento secreto, que entrelaça os poderes de Bolsonaro e de Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara, é o mais vultoso saque institucional (embora sub judice) da história recente.

O então candidato a presidente Jair Bolsonaro simula metralhar seus adversários em comício no Acre. Foto: Reprodução Youtube

A violência política não é apenas uma obsessão psíquica, ou uma postura conivente do presidente: é um método de abalar relações, de produzir tumulto e de esgarçar as instituições, tentando abrir espaços para transgressões milicianas ou intervenções militares. As suas constantes provocações extrapolam a razoabilidade para suscitar reações que levem o país ao caos social e administrativo, para tentar romper o curso do processo eleitoral que aponta para a sua derrota.

Bolsonaro gostaria que as reações à sua escalada golpista fossem ainda mais tresloucadas, que as vítimas de suas desastrosas políticas sociais e econômicas recorressem aos saques para sobreviver e que os seus desafetos políticos pegassem em armas para derrubá-lo. Irrita-se com o bundonismo de uma parte dos seus opositores e, também, com a maturidade política de outros. O movimento indígena acaba de dar um exemplo “irritante”: sete mil lideranças acampadas em Brasília, durante dez dias de manifestações, sem incidentes graves.

Regular a mira

O debate eleitoral, assim como nas últimas eleições, será marcado pela mentira e pela canalhice. Bolsonaro pressiona as plataformas das redes sociais para tentar constranger eventuais restrições às fake news e aos compartilhamentos por robôs. A Justiça eleitoral estará mais atenta e dispõe de controles não usados no passado. Mas a extrema direita vai forçar esses limites e apostar que a mentira, mesmo quando detectada e deletada, tende a gerar os seus efeitos danosos sobre os atingidos. Quanto maior for a confusão, melhor para quem procura pretextos para tentar alterar o rumo das eleições. Será um jogo, uma corrida de resistência.

Jair Bolsonaro. Foto: Clauber Cleber Caetano / PR

Foi nessa mesma linha a declaração de Bolsonaro de que vai descumprir a decisão do STF caso seja rejeitada a tese do “marco temporal”, com que ruralistas pretendem restringir a demarcação de terras indígenas às áreas que já estivessem ocupadas pela comunidade na data da promulgação da Constituição. Essa interpretação exclui do direito às terras os que foram expulsos delas durante a ditadura militar. Bolsonaro descumpre a Constituição desde que tomou posse e a sua declaração pouco importa em final de mandato. Mas o que quer destacar é a disposição de desobedecer as decisões da Suprema Corte, à espera de reações que lhe permitam maiores investidas contra as leis e as instituições. É a tática do tumulto, em busca do pretexto.

As provocações do mandatário devem ser contestadas de pronto, para restringir a sua disseminação na medida do possível. Mas não devem ensejar escaladas verbais, muito menos factuais, que facilitem a sua continuidade ou reincidência. Todo cuidado será pouco contra iniciativas de radicalização com que ele tentará extrapolar as quatro linhas e induzir a torcida a agredir o juiz, partindo da expressão para a ação.

A mobilização popular deve prosseguir, pacificamente, entre a eleição e a posse do presidente e do Congresso eleitos, deixando clara a disposição dos brasileiros em preservar a democracia e as suas próprias escolhas. Será a mais importante transição de governo desde a Constituição de 1988: ela pode garantir o futuro do Brasil.

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