Na “Ordem do Dia alusiva ao dia 31 de março” publicada pelo governo brasileiro no dia 30/03/2022, o Ministro de Estado da Defesa, General Walter Souza Braga Netto reforçou a intenção castrista em transformar a Ditadura Militar brasileira (ocorrida entre 1° de abril de 1964 e 5 de outubro de 1988) em um conjunto de mentiras disponíveis para o público, na tentativa não apenas de esconder os crimes cometidos pelo Estado brasileiro sob comando dos militares, como também heroificar aqueles atos, buscando assim alguma legitimidade histórica para as atrocidades ocorridas no período.

Nada de novo. Braga Netto, compondo bem o corporativismo militar, reivindica seu lugar na continuação de um projeto auto-histórico das Forças Armadas, que desde a década de 1970 tenta impor uma versão (falsa, evidentemente) dos eventos que ocorreram a partir do dia 1° de abril de 1964, e se insisto na data de primeiro de abril, essa não é apenas uma imaturidade linguística observada por repetições desnecessárias, mas uma imposição epistemológica. Explico o porquê nas próximas linhas.

Em 1965, foi registrada a primeira comemoração daquilo que os militares auto intitularam como “Revolução de 31 de março”. A data permeia o imaginário castrense desde então. Sabidamente, o golpe aconteceu no dia 1° de abril, os fatos não deixam margem para dúvidas. Acontece que um profundo misticismo permeava entre o alto oficialato militar de que a associação entre o golpe e o dia da mentira seria prejudicial à imagem das Forças Armadas.

Essa afirmação pode até parecer frágil, no entanto, ou acreditamos na tese de uma intencionalidade de mudança da data para manipular a memória coletiva, ou admitimos que a educação e a formação castrense são tão incompetentes que as academias militares não conseguem ensinar um General (como Braga Netto) a se orientar em um calendário ou olhar as horas em um relógio. O marco central do golpe é a viagem do presidente João Goulart para o Rio Grande do Sul, que ocorrera na noite do dia 1° de abril, esse foi o evento que o Congresso Nacional se valeu para justificar o golpe em curso.

Se considerarmos a declaração da vacância do cargo presidencial na sessão do Congresso Nacional presidida por Auro de Moura Andrade como data do golpe, o fato ocorreu na madrugada do dia 2 de abril. Seja qual o marco adotado, uma coisa é certa: 31 de março não passa de uma mentira repetida à exaustão. Podemos fazer essa afirmação com segurança, pois até mesmo declarações de oficiais garantem a veracidade da informação. O General Osvaldo Cordeiro de Farias, por exemplo, à época mencionou que “O Exército dormiu janguista no dia 31 e acordou revolucionário no dia 1º”.

É decorrente da reafirmação constante dessa mentira que todos os anos, com a chegada de 31 de março, lidamos com o mesmo embate: de um lado, radicais militares, saudosos dos tempos nefastos da Ditadura Militar, tentam impor o reconhecimento de um golpe que ceifou a democracia brasileira por 25 anos como um evento heroico e necessário, de outro, historiadores empenhados em fornecer uma leitura verdadeira dos eventos ocorridos na década de 1960 repudiam a tentativa do partido militar de impor suas falsas impressões como visão hegemônica sobre aquele período sombrio. Nessa disputa, uma verdadeira guerra narrativa se acentua cada vez mais.

Esse debate se aprofundou depois que a Presidenta Dilma Rousseff em 2011 silenciou manifestações favoráveis ao Golpe de 64 nos quartéis. No primeiro ano de seu mandato, Dilma (na condição de Comandante em Chefe das Forças Armadas) cancelou de última hora a palestra “A contrarrevolução que salvou o Brasil”, que seria ministrada pelo então diretor do Departamento de Ciência e Tecnologia do Exército, o General Augusto Heleno. Desde aquele incidente o ressentimento do partido militar apenas se aprofundaria ainda mais ano após ano.

No mesmo 2011, em novembro, foi instituída a Lei 12.528 que determinava a criação da Comissão Nacional da Verdade (CNV), que tinha por objetivo esclarecer os eventos de graves violações aos direitos humanos cometidos pelo Estado Brasileiro entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988. As investigações sobre este período (uma demarcação bem anterior ao Golpe de 1964) concentrou maiores esforços, especialmente aos crimes cometidos entre 1° de abril de 1964 e a promulgação da Constituição Federal de 1988.

O relatório final da CNV foi entregue à presidenta Dilma em dezembro de 2014 depois de profundas investigações, diligências e esclarecimentos. Se os militares não tinham uma inclinação real a romper com a democracia (novamente) depois da desastrosa experiência das décadas de 1960,70 e 80, tal intento foi profundamente catalisado pelas investigações da CNV, e a conivência, senão pressão do partido militar, foi um dos motores do Golpe de 2016.

Isso porque para eles, de todas as batalhas travadas entre a Ditadura e grupos defensores da Democracia, a única questão interpretada como uma verdadeira derrota para a caserna, é a vitória da história sobre a mentira. Historiadores e historiadoras não pouparam esforços ao longo dos últimos 58 anos para desvendar os crimes e violações cometidos nas ruas, nos quartéis, nos campos, nas delegacias ou nas universidades. Por fim, a farsa do golpe preventivo foi inúmeras vezes desmontada e a contribuição de René Armand Dreifuss, em sua obra digna de Best Seller “1964: a Conquista do Estado” foi fundamental, pois dissecou os interesses econômicos e imperialistas por trás do golpe contra a incipiente experiência democrática brasileira.

Perdida a guerra pela memória, no pós-ditadura os generais se aquartelaram, saíram dos holofotes e passaram a exercer sua influência através do medo de um novo golpe preventivo que os bastidores políticos carregavam desde 1985. O partido militar se aconchegou em um espaço pouco visível, porém com bastante poder intervencionista e se consolidou como agente moderador da democracia e da constituição brasileira.

Com o crescente avanço fascista desde 2014, cada vez as comemorações em torno do golpe de 1964 ganharam mais espaço e a solenidade do dia 31 de março (mesmo em data errada), que antes não passava de uma vergonha alheia partilhada apenas por meia dúzia de velhos quase cadavéricos afiliados ao Clube Militar, se transformou em um momento icônico da direita mais ensandecida. Precisamente porque é na reafirmação antidemocrática, ditatorial e fascista que reside o ideal dessa gente que tem hoje Bolsonaro como seu representante quase natural.

Muitos e muitas podem questionar: “é só uma data. A gente vai mesmo ficar dando importância pra isso?”, porém, o que está em jogo não é a definição de um dia, mas sim a manipulação da ciência, da boa prática de pesquisa em história. Entender 1° de abril como marco incontestável impõe severas reflexões sobre a afirmação corrente de uma adesão militar em massa ao golpe ocorrido contra João Goulart, o que não é apenas questionável, e sim um erro estrutural de análise. Também coloca em xeque o apoio popular e de diversas entidades civis sugerindo um alto clamor pela presença das Forças armadas, argumentos dessa vez reafirmados por Braga Netto em defesa do golpe, mas que ignora resistências e manifestações em defesa de Jango.

É nesse sentido que um mar de contradições se impõe apenas pelo fato de alguns generais da ala mais radical não saberem olhar as horas, nem se localizar temporalmente em um calendário, ou então é por má fé ou pouco apego à verdade e à história que continuam reproduzindo de forma extenuante a mentira do dia 31 de março. Por isso é importante frisar: O GOLPE que instalou uma DITADURA MILITAR no Brasil aconteceu no dia 1° de ABRIL de 1964.

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