Por Bruna Andrade Irineu

Ontem, dia 21 de dezembro, a cidade de Cuiabá, capital do estado de Mato Grosso, entrou para história nacional como um dos territórios a aprovar, com apenas 1 voto contrário (da vereadora Edna Sampaio), a criação do dia orgulho hétero. O projeto ainda retorna a Câmara Municipal mais uma vez e ainda seguirá ao executivo para ser sancionado ou vetado.

Cabe relembrar que é no ano de 2011, há 10 anos, que surge no Brasil, os primeiros projetos de lei propondo a criação do dia do orgulho hétero. São Paulo foi o primeiro município a aprovar um projeto desta ordem, na Câmara Municipal, em votação acirrada, o que não seguiu adiante, já que o prefeito à época, Gilberto Kassab, após pressão dos movimentos sociais, vetou-o. O motivo do veto se baseou no fato de que a justificativa para criação do dia do orgulho hétero associava a heterossexualidade à moral e aos bons costumes insinuando, portanto, que a homossexualidade seria avessa a tal, o que demonstrava a ilegalidade do projeto por seu caráter discriminatório.

Em maio deste ano de 2021, a Câmara Municipal de Cuiabá aprovou, também por larga diferença de votos, uma moção de aplausos a operação policial na favela do Jacarezinho, que resultou em 29 mortes e tem sido reconhecida pelos movimentos sociais como um massacre, uma chacina. Mas, é importante também lembrar que as casas legislativas locais mato-grossenses carecem de figuras que escapem ao coronelismo e aos valores da “tradição, família e propriedade”, sem nenhum receio de afirmar que este é um estado marcado pelo autoritarismo e movido pelos interesses daqueles que dirigem ou compartilham do mundo do agronegócio. São enormes os desafios aqueles e aquelas que conseguem concorrer e se eleger com pautas de defesa da classe trabalhadora, da agricultura familiar, dos direitos das mulheres, do combate ao racismo e outros temas considerados minoritários. Não a toa o município de Cuiabá elegeu apenas duas mulheres na última legislatura, após quatro anos sem a presença de nenhuma mulher naquele espaço, o que não se diferencia em âmbito estadual.

Sobre o debate da diversidade sexual e de gênero no estado de Mato Grosso, só no ano 2021, foram propostos no Legislativo Estadual projetos de lei de proibição de linguagem neutra de gênero e do uso da reprodução em mídias digitais e televisivas de matérias que utilizassem crianças vinculadas à homossexualidade. Com uma suposta defesa das crianças e das famílias um  deputado estadual chegou a declarar na mídia local, que “ser homofóbico é uma escolha e esta que deveria ser aceita”.

No início de dezembro a Assembleia Legislativa reprovou o projeto de lei de criação do Conselho Estadual de Direitos LGBT+, também com larga quantidade de votos em relação aos favoráveis. O que torna Mato Grosso uma das poucas unidades federativas que não possuem conselho LGBT+ em sua estrutura estadual. Os argumentos para tal reprovação variaram entre aqueles de cunho declaradamente moralista e outros de caráter orçamentário, que em certa medida reproduzem as mesmas hierarquias de sentido. Restando menos de 10 dias para o novo ano, a Câmara Municipal de Cuiabá, vota pela criação do orgulho heterossexual. Um dos vereadores declarou à mídia local que “estava difícil” explicar às crianças porque existe um orgulho LGBTQIAP+ e não há um orgulho em ser heterossexual.

Observando os recentes fatos nas casas legislativas municipal e estadual constatamos que prevalecem elementos de pânico moral que devem ser questionados e combatidos por quem se alia à defesa dos direitos humanos.

O primeiro envolve a concepção disseminada no imaginário social de que existe uma “criança a ser protegida” permitindo uma “naturalização da heterossexualidade como norma”, como nos ensina o filósofo Paul B. Preciado, no texto “Quem protege as crianças queer?”. Como uma criança não pode, com efeito social, se rebelar politicamente contra os discursos dos adultos, já que se trata de um corpo não reconhecido com direito de governar, a “polícia do gênero” se aproveita para normalizar hierarquias sociais.

O segundo está no cerne do título deste texto, que é a incerteza de um futuro para heterossexualidade. Wendy Brown, no livro “Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no ocidente”,  nos instrumentaliza a perceber como o atual cenário de proliferação de discursos de ódio e de práticas antidemocráticas se relaciona, em alguma medida, com um ressentimento da perda de lugares de poder por parte dos homens, especialmente brancos, cisgêneros, heterossexuais e advindos das classes sociais mais abastadas.

Neste sentido, o medo gerado pelo futuro incerto à heterossexualidade e por consequência para os homens, que socialmente lucram com um sistema de dominação das mulheres, de privilégio racial branco e da LGBTIfobia, pode ser lido como reação ao avanço de pautas feministas, LGBTQIAP+, igualdade racial e de direitos humanos. Lidar com estratégias de reforço de padrões de masculinidade viril e bélicos já faz parte do cotidiano de quem milita por direitos sexuais e reprodutivos no Brasil. O que se tem de distinto é a maneira sincronizada como essas estratégias têm encontrado capilaridade através de projetos de lei, com apoio quase unânime nas casas legislativas, como é o caso de Cuiabá. Urge uma resposta a esses setores conservadores que tem feito uso de seus mandatos para reverberar a política anti-direitos do Bolsonarismo, e ela certamente se dará nas urnas em 2022.

Tenho indicado em outras publicações de que modo essas ações sincronizadas refletem a LGBTIfobia de Estado e como têm conformado uma política de extermínio que articula invisibilidade social, apagamento, desproteção social e violência letal na manutenção da heterossexualidade. Ao utilizar as esferas de poder decisório do Estado para implantar uma agenda que marginaliza ou mantém à margem segmentos minoritários, o Estado está escolhendo, decidindo quem ele quer ou não que vivência plena de sua cidadania, fortalecendo, portanto, sua política de morte.

Há uma tentativa coordenada entre setores conservadores, religiosos e seculares, de convencer a sociedade de que pessoas LGBTQIAP+ e feministas querem “destruir a família” e “macular as crianças”, nomeando-nos como “ideologia de gênero” e disseminando pânico em torno de valores morais excludentes e autoritários. Essa ação coordenada, da qual a própria eleição do atual presidente se integra, é uma união de esforços pela manutenção das desigualdades e pelos direitos de explorar e lucrar financeiramente, emocionalmente e juridicamente em cima de corpos que podem transformar o mundo em um lugar mais justo socialmente.

Enquanto os “homens de bem” das casas legislativas de Cuiabá e Mato Grosso fazem uma ode a manutenção de seus confortáveis lugares de dominação ao aprovar a criação do dia do orgulho hétero, eles estão nos dizendo que sua sexualidade – historicamente afirmada como correta e normal em detrimento de outras expressões sexuais – deve ser comemorada e festejada em um país que está entre os que mais matam pessoas LGBTQIAP+ do mundo.

Enquanto estes mesmos homens dizem defender a família e as crianças, seus discursos e ações nada mais são do que estratégias para permanecer no topo da pirâmide social, lucrando com a divisão sexual e racial do trabalho.

No entanto, como apontou Paul B. Preciado, nós temos travado largas batalhas defendendo o direito das crianças de não serem educadas exclusivamente como força de trabalho e de reprodução. Temos defendido a existência de uma multiplicidade de corpos e sujeitos que são diariamente marginalizados em suas famílias, igrejas e escolas, que se sobrevivem às violências e violações de direitos que habitam seus cotidianos desde a mais tenra idade, só encontram refúgio quando conseguem transformar a dor em orgulho.

Esses legisladores não sabem o que é orgulho – confundem o sentido dessa ideia com conquistas pessoais – mas, orgulho para nossos movimentos é muito mais que vencer individualmente um entrave, é sobre olhar para o lado e não se ver sozinho, sobre conquistas coletivas pelo direito de existir através de um registro civil, é sobre comemorar cada dia sem ter apanhado e ter sido xingado nas ruas por sua orientação sexual ou identidade de gênero. É também sobre chegar em casa e depois de anos de sofrimento poder dizer e ser quem você realmente é, sem medo de receber mais uma violência ou sobre construir um novo sentido para família com gente que não tem seu sangue e nem seu sobrenome, mas com quem você pode realmente contar.

Orgulho hétero nada mais é que uma ação articulada pelo medo e pelo ressentimento de não haver mais futuro para heterossexualidade, como regime e norma social. Não passarão impunes aqueles que tem impedido nosso direito a ter um conselho estadual que nos defenda ou aqueles que promovem escárnio ao instituir um dia de orgulho hétero, porque não é sobre desejar o sexo oposto, mas sim, sobre se orgulhar de um regime de compulsoriedade que estipulou uma norma social a ser obedecida. A história lhes reserva um lugar ao lado daqueles e daquelas que tem as mãos sujas pelo sangue das inúmeras vítimas da LGBTIfobia no Brasil.

Bruna Andrade Irineu é goiana de nascimento e mato-grossense de criação, morou em Rondonópolis-MT, Cuiabá-MT, Goiânia-GO, Palmas-TO e Rio de Janeiro-RJ até retornar a Cuiabá em 2018. É ativista pelos direitos humanos LGBTQIAP+, feminista, assistente social e professora do Departamento de Serviço Social e do Programa de Pós-Graduação em Política Social da Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT.

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