Não vamos arredar o pé da justiça. Os discursos das lideranças mundiais na abertura da Conferência das Partes das Nações Unidas (COP26) só reafirmam a luta da sociedade civil latinoamericana para que a transição verde esteja comprometida com a erradicação das desigualdades nos países do Sul Global. O relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) foi explícito: o modelo de desenvolvimento criou a crise climática. A alta emissão de gases de efeito estufa nos últimos séculos produziu fome, destruição, doenças, falta de perspectiva, violência e morte. Por isso, a meta mais ambiciosa não é sobre um percentual de emissão de gás carbônico, por exemplo, é sobre a mudança de um paradigma de governança ética mundial comprometida com a reparação histórica de povos e territórios.

Neste momento da nossa história, seria óbvio, então, construir um espaço de decisão política mundial com participação majoritária de populações em vulnerabilidade socioeconômica, ambiental e cultural. Entretanto a contradição se tornou mais drástica. O Reino Unido tem uma das moedas mais caras para nós, povos do Sul, a libra esterlina. Para nós, pretas periféricas, pagar R$ 100 em um almoço simples é absurdo, não cabe no orçamento nem no entendimento. Muitos dos países da América Latina e Caribe, África e Ásia fizeram (e alguns ainda fazem) parte da lista vermelha, devido à situação da pandemia de covid19 e das vacinas utilizadas nesses territórios. Por isso tiveram que agendar a viagem com muita antecedência para fazer a quarentena obrigatória. E tudo isso com desencontro de informações e confusões sobre processos burocráticos. 

Mas chegamos! A insegurança da nossa participação foi vencida com cooperação. Financiamento solidário, traduções indo e vindo, palavras de ânimo e debates internos sobre nossas pautas construíram o caminho para cruzar o Oceano Atlântico. Chegamos com denúncias quase infindas sobre o racismo sistêmico, as ameaças de morte a defensores(as) de direitos humanos, as violências de gênero que interrompem a vida e a participação política das mulheres e das pessoas LGBTQIA+, as políticas frágeis que não cuidam da infância nem formam a juventude para o futuro digno, as queimadas das florestas, a poluição das águas, os projetos de desenvolvimento que destroem a natureza, como a Mata Atlântica na Região Metropolitana de Pernambuco. Mas também chegamos com propostas. 

Nossas lutas na COP ecoam justiça socioeconômica, ambiental e cultural. Não queremos mais um mercado, o de carbono. Na América Latina a transição deve ser verde e justa de verdade. Não é só sobre gerar emprego verde, mas sim acabar com o desemprego e a informalidade, educando a população para os novos tipos de trabalho. Não é só colocar carro elétrico no mercado, é tornar o transporte público o principal meio de locomoção das pessoas, que seja gratuito e não poluente,  incentivar e viabilizar a existência segura da bicicleta em toda a malha viária das cidades. É ampliar o acesso à energia limpa e ao saneamento básico para todas as pessoas, sem racionamento seletivo por classe social. É escalonar a agroecologia e tornar consumo consciente como base ética na produção e distribuição de alimentos. É reconhecer o direito à terra dos povos originários e quilombolas do campo e da cidade. Exigimos desmatamento ilegal e legal zero! Temos o dever civilizatório de promover vida e coexistência.

Os esforços globais de cooperação financeira e solidariedade internacional devem responder a algumas exigências históricas.

#1 Fim dos paraísos fiscais, adoção do imposto mínimo global e renda básica universal

. Regulamentar os paraísos fiscais para evitar o desvio de recursos que devem ser investidos em políticas públicas nacionais; 

. Adotar um sistema de cooperação fiscal e imposto patrimonial para os mais ricos. 

#2 Trabalho decente, desemprego zero e informalidade

Estabelecer cooperação entre países do Norte e da América Latina e Caribe para gerar emprego decente em larga escala e formalizar 54% da força de trabalho regional, fortalecendo o ambiente para garantir os direitos trabalhistas e a segurança social dos trabalhadores.

#3 Erradicar a fome e a insegurança alimentar

Investir em políticas nacionais de erradicação da fome e programas subnacionais de agricultura familiar e extensão rural, especialmente liderados por mulheres, e em hortas urbanas de ciclo curto, sem agrotóxicos e distribuição de alimentos através de veículos de energia limpa ou de baixa emissão.

#4 Segurança e equidade energética

. Investir em treinamento, transferência de tecnologia e produção de insumos para uma transição de energia justa e inclusiva com produção e distribuição de energia limpa para toda a população, especialmente para as populações empobrecidas e periféricas, nos centros urbanos e nas áreas rurais; 

. Não apoiar iniciativas de abertura de usinas nucleares ou expansão de usinas termelétricas.

#5 Transporte não poluente e acessível

Cooperar com governos subnacionais, começando pelos grandes centros urbanos da América Latina e do Caribe, para a implementação de transporte público 100% elétrico e gratuito, com ciclovias e infra-estrutura para a mobilidade urbana não motorizada. 

#6 Defendendo o direito à terra, à informação e à governança ambiental 

. Apoiar a demarcação das terras indígenas e terras quilombolas.

. Promover a cooperação justa para o desenvolvimento nos termos do Acordo de Escazú. 

. Estabelecer mecanismos de apoio e cooperação com as mulheres para que elas sejam proprietárias de terras e desenvolvam alternativas saudáveis para o manejo da terra e a proteção da biodiversidade;

. Promover o apoio às organizações da sociedade civil que defendem os direitos humanos e ambientais.

As contradições que vivemos cotidianamente nas nossas cidades estão em Glasgow. Dois dias de blá blá blá, pronunciamentos sobre investimentos e necessidade de diminuir a pobreza. O primeiro tema do evento já começa pelo fim: financiamento. Ou seja, o acordo já chegou pronto – mas esse é tema de outra coluna. Não arredamos o pé das nossas identidades, da humanidade em nós e continuaremos existindo nesses espaços para desafiar a política patriarcal, branca e rica do mundo. Mas sabemos que nossos passos vêm de longe e trilham o caminho do futuro.

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