Doze pontos sobre a questão da corrupção e a promiscuidade entre o poder político e o poder econômico no Brasil.

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O crescimento do debate sobre corrupção no Brasil, depois do episódio do mensalão, mas especialmente depois do início da operação lava-jato, em 2014, se deu em meio a um acirrado contexto político. Em vez de ajudar a promover o debate, isso bagunçou o coreto e fez com que a discussão ficasse na dimensão superficial de um tema complexo.

As delações da Odebrecht e da JBS ajudaram a mostrar a largura e a profundidade do problema. O entrelaçamento do poder político e do poder econômico é orgânico e atávico, o que não significa que ele seja totalmente inevitável. Se parece impossível separá-los por decreto, seria absoluto conformismo achar que não dá para fazer nada para melhorar a atual situação de promiscuidade total.

O que eu quero fazer aqui é arriscar um diagnóstico mais profundo do problema, a partir de doze interpretações sobre a corrupção no quadro atual do sistema político. Num próximo texto, discuto uma agenda de enfrentamento ao problema pelo ângulo das questões que exponho aqui. Vamos lá, então.

A corrupção é uma das drenagens injustas de recursos da sociedade. E está ligada a todas as outras.

É realmente muito grave que haja sobrepreço em licitações com cobrança de propina, ou que um agente público receba grana de empresas para garantir seus interesses. Mas é preciso entender esta corrupção como uma das formas de relação neste ecossistema de relações entre poder político e poder econômico. A sonegação de impostos, por exemplo, causa prejuízos diretos maiores que a corrupção. Decisões administrativas que fazem com que não haja cobrança de tributos devidos, como aconteceu recentemente com o Itaú no âmbito do CARF, são igualmente danosas (a decisão fez os cofres públicos perderem mais que o dobro do valor que a Odebrecht pagou para políticos em seis anos). Todas configuram uma forma de ‘desvio’ de recursos públicos para fins privados, e todas elas jogam a favor da desigualdade social. Portanto é preciso olhar para a corrupção como parte de uma ‘ecologia’ de relações entre o poder político e o poder econômico.

O maior impacto da corrupção não é o dinheiro desviado, mas o que ele alavanca.

A corrupção não pode ser vista apenas pelo que ela movimenta diretamente. Se olharmos só para os valores diretamente movimentados, não vamos entender seu efeito. A Odebrecht, por exemplo, diz ter gasto R$ 10,5 bilhões em seis anos com propina. O que são 10,5 bi em seis anos se o orçamento da União é de 3 tri a cada ano? Mas o que este valor gerou de retorno para a Odebrecht? Uma empresa que sai de R$ 17 bilhões de receita anual em 2003 para mais de R$ 100 bilhões em 2014 certamente só chegou ali por se alimentar de muitos contratos com o governo federal. Da mesma forma a JBS, que sai de R$ 4,3 bilhões em 2006 para R$ 170 bilhões em 2016, só conseguiu tal alavancagem por conta dos benefícios obtidos do poder público. Um crescimento de 4000% que faz a empresa ter uma receita equivalente ao PIB do Uruguai. Uma medida provisória de refinanciamento de dívida em condições favoráveis para os devedores ou de anistia de multas faz o Estado perder bilhões. É preciso olhar para este bolo total de recursos, não só para os que aparecem nas contas dos políticos.

A maior forma de desvio de recursos públicos para fins privados é a operação do orçamento público.

O orçamento anual da União está na faixa de 3 trilhões de reais. 3.000.000.000.000, doze zeros. Para olhar para esse monte de dinheiro, é preciso pensar nos dois lados: um é o das receitas; ou seja, quem põe dinheiro neste bolo? Essa conta está sendo alimentada com impostos pagos por quem? Pelos mais ricos ou pelos mais pobres? Pelas empresas grandes ou pequenas? O outro é o das despesas; ou seja, para onde vão esses três trilhões todos os anos? Quem está recebendo essa grana? Poucos ou muitos? Isso cai no bolso dos mais ricos ou dos mais pobres? Cada decisão sobre um ponto a mais na taxa de juros move bilhões de reais na direção dos bancos. Cada medida provisória vendida retira recursos das receitas do orçamento fiscal, que financia saúde e educação. Cada decisão sobre desoneração (como as desastrosas do governo Dilma) retira recursos da previdência. As decisões de governo sobre os 3 trilhões, portanto, são as mais impactantes em relação ao nosso dinheiro. E falamos muito pouco sobre elas.

A corrupção é um acordo ganha-ganha do poder político com o poder econômico. E quem ganha mais dinheiro é o poder econômico.

O poder político tem, nas suas mãos, a capacidade de decisão sobre as regras de funcionamento do Brasil, tanto em relação a quem põe e quem tira dinheiro do orçamento público quanto em relação à regulação do setor privado, que implica decisões sobre o destino da riqueza produzida no país: vai mais para as mãos dos donos de empresas ou para os trabalhadores? É um enorme poder. E do outro lado, no poder econômico, está a grana toda. Por isso parte da classe política está ali apenas – ou principalmente – para ser despachante de interesses privados do poder econômico. E se a forma de eleger representantes é dependente de muito dinheiro, então é claro que o poder econômico tem razoáveis condições de impactar no resultado de eleições. Como disse Fernando Haddad em texto recente, “no patrimonialismo, o poder político e o poder econômico – ‘os donos do poder’, na definição de Faoro – sentam-se a uma mesa redonda. Não se distinguem os lados. Em um contexto como esse, não há vítimas, a não ser os que não estão à mesa; há negócios”. A questão é que são absolutamente ilegítimas as decisões que favorecem o poder econômico tomadas não a partir do interesse público, mas por favorecimento à classe política. Repete-se aqui a conclusão do ponto 2, é preciso olhar para esta grana toda.

A corrupção é parte da sustentação do sistema político.

Todas as últimas campanhas eleitorais para Presidência da República foram realizadas com financiamento empresarial de campanha. Se o sistema político depende de grana alta privada para se sustentar, é evidente que isso vai ter impacto nas decisões oficiais e vai gerar relações de favorecimento. Afinal, por que uma empresa iria doar dinheiro para campanhas se não fosse para obter algum tipo de retorno? Por pura responsabilidade social? Não faz sentido, nenhum acionista apoiaria decisões irracionais deste tipo. É verdade que o STF colocou limites à doação empresarial a partir de 2016, mas não impôs limites razoáveis para doações individuais (o que faz com que empresários possam ser grandes doadores) e nem o parlamento definiu um novo sistema de financiamento que possa ser menos influenciado pelo poder econômico. Isto é, o problema foi jogado para cima e vai cair nas nossas cabeças. A democracia brasileira ainda hoje é estruturalmente dependente dos interesses empresariais.

O caixa 2 é interessante para os políticos e para as empresas.

Para os políticos, o caixa 2 é uma forma de receber recursos sem deixar claro o tamanho da relação que tem com a empresa, além de viabilizar o recebimento acima do teto de campanha. Fora isso, o caixa 2 garante ao político liberdade na aplicação do dinheiro, inclusive com a possibilidade de colocar recursos de campanha no próprio bolso. Para os partidos, vira também uma forma de favorecer determinados candidatos em detrimento de outros sem ter que prestar contas a seus filiados. Para as empresas, o caixa 2 significa a possibilidade de influenciar o jogo político sem chamar tanta atenção, mas é também uma forma de nublar a origem do dinheiro. Afinal, o caixa 2 eleitoral vem do caixa 2 empresarial.

A dimensão ética e moral é apenas um dos aspectos que move a corrupção.

Pelo que foi dito nos pontos anteriores, é possível enxergar que a corrupção é parte de um grande ecossistema de relações promíscuas entre o poder econômico e o poder político. Esse ecossistema cria condições absolutamente favoráveis e estimulantes à corrupção. O próprio sistema político, da maneira como é organizado, tende a selecionar como vencedores os mais dispostos a manter essa relação promíscua. Portanto, qualquer tentativa de resolver o problema apenas a partir da separação dos ‘bons’ e dos ‘maus’ é inócua. A dimensão ética e moral é importante, sem dúvida, mas insuficiente para enfrentar o problema. Sem mexer no ambiente contaminado e contaminante, a tendência vai ser a corrupção continuar sendo a regra, e não a exceção.

A atual abordagem da corrupção corrói a confiança na política e na democracia.

O tipo de cobertura que se dá ao tema da corrupção tem dois problemas graves: primeiro é que foca nas consequências sem focar nas causas. Não é à toa que a gente se sente andando em círculo num labirinto sem saída. Não se dá a complexidade que o tema merece e não se discutem soluções estruturais. É como se bastasse punir os corruptos para a corrupção acabar. O segundo problema é que a narrativa sobre a corrupção centra o foco apenas no sistema político, deixando descoberto o poder econômico. Essas duas opções geram uma criminalização da política, porque ela aparece como a causa em si do problema. E aí a própria democracia sofre abalos, por contaminação, como ficou claro no episódio do impeachment ilegítimo de Dilma Rousseff. Esta abordagem, portanto, é nociva para o sistema democrático, já que ao invés de aprimorá-lo termina por ameaçá-lo.

A contaminação do sistema político torna superficiais os critérios de avaliação sobre os políticos.

É evidente que há políticos menos comprometidos com essa relação promíscua, e há inclusive os que ajudam a combatê-la firmemente. Estar ou não na lista da Odebrecht, por exemplo, pode ser um indicador importante de comprometimento com a atual relação promíscua. Contudo, para analisar os políticos, é preciso olhar não apenas seu comportamento individual e discurso em relação à corrupção, mas como ele tem atuado em relação a esse ecossistema. Por exemplo, em que medida sua atuação no Executivo ou no Legislativo ajuda a mover os 3 trilhões na direção de favorecer algumas poucas empresas ou de gerar mais igualdade social? Sem isso, podemos perder parte significativa do problema.

O discurso anticorrupção substituiu a ‘isenção’ como valor normativo do jornalismo.

Estudiosos da área da comunicação e da política, como Liziana Guazina e Luis Felipe Miguel, têm mostrado como os meios de comunicação assumiram o combate à corrupção como valor normativo, ou seja, como algo que organiza sua cobertura, como se fosse um valor positivo em si. A ideia de ‘isenção’ na cobertura, de ouvir os dois lados, deixou de ser o principal deles. Não há dúvida de que o combate à corrupção é elemento importante, mas essa perspectiva tem dois problemas. Primeiro é que ele foi – e tem sido – usado como ferramenta seletiva de luta política. Só depois da delação da JBS e da revelação dos áudios de Aécio Neves é que essa seletividade foi atenuada. Além de significar uma incidência indevida na disputa política, a seletividade nubla o debate essencial sobre a corrupção como parte do funcionamento do Estado brasileiro e sobre quem ganha com ela. O segundo problema é que o tipo de cobertura, como citado no ponto 8, não foca no complexo ecossistema de relações entre poder político e poder econômico, mas apenas na responsabilidade individual dos agentes públicos. Portanto essa cobertura se torna antipolítica, mais do que anticorrupção.

Os poderes Executivo e Legislativo não são os únicos implicados na corrupção.

Onde há poder e grandes interesses há corruptibilidade. No Judiciário não é diferente. É preciso expandir o olhar da corrupção para além dos Poderes Executivo e Legislativo. Não podemos cair no mesmo erro e julgar todo o Judiciário de baciada, mas sua ausência no debate atual mostra como o discurso anticorrupção é um discurso antipolítica. O poder econômico e o poder do judiciário continuam pouco tocados.

A corrupção não tem como ser exterminada, mas pode ser diminuída.

Um dos problemas da visão atual sobre a corrupção é que ela cria a ilusão de que se pode acabar com a corrupção. Pense em outros problemas sociais como infração de trânsito, sonegação de impostos ou assassinatos. Dá para incidir sobre os ecossistemas para que eles sejam menos propícios a reproduzir a corrupção, dá para acompanhar melhor as condutas, mas não dá para exterminar. Aqui eu vou além: se as ações de combate à corrupção desorganizam o sistema político sem ajudar a reorganizá-lo, elas são contraproducentes e ainda abrem flancos para sofrer reveses, como vem acontecendo com a lava-jato.

Ampliar e aprofundar o olhar sobre a corrupção não é uma maneira de diminuir sua importância. Ao contrário, é uma forma de compreender o problema na sua complexidade e dar condições reais para enfrentar todas as formas de aproximação promíscua entre poder político e poder econômico. Na próxima coluna, então, eu arrisco palpites de caminhos para enfrentar este problema.

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