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Estudantes de medicina fazem foto com calças abaixadas e fazem símbolo de vagina com as mãos.

Nenhum cidadão está acima das leis. Nenhum país pode se dar ao luxo de rasgar a sua Constituição. Mas em tempos de desgoverno temerário, os níveis (crescentes, galopantes) de descrença nas instituições abrem caminhos para todo tipo de selvageria. Porque há gente que se considera (e é tratado como quem está) acima da lei. E porque tudo se acentuou quando passaram a usar a lei máxima do país para embrulhar peixe.

O “salve-me quem puder” tomou conta da velha política, com a cumplicidade (dissimulada ou escancarada) das velhas corporações da mídia, capatazes dos valores de uma oligarquia que já nasceu velha.

E leva o Brasil a um cenário de faroeste, em que prevalece o “cada um por si” –inclusive nas relações mais próximas, entre “pessoas boas e sensíveis, que falam manso e são de esquerda”.

Neste “todos contra todos” do “olho por olho, dente por dente” e do “farinha pouca, meu pirão primeiro”, tatuador vira justiceiro, médico se nega a prestar socorro e deixa uma criança morrer, secretário de cultura propõe resolver divergências na porrada, juiz de primeira instância apura só o que quer e manda prender ao seu bel prazer, juiz eleitoral se acha no direito de desconsiderar provas num julgamento que define os rumos do país… Sintomas de uma sociedade adoecida, num quadro agravado pelo cansaço e a desesperança.

No Brasil da democracia de fachada e da ditadura de veludo, a crise virou desculpa pra tudo. É ela quem justifica medidas que atentam contra a legislação e os direitos da maioria.

É ela o mote para um partido presidido por um “enchedor de saco” corrupto se manter atrelado a um governo golpista e corrupto, que esfarela um pouco por dia –mas afinal, “o importante é o país retomar seu ciclo de desenvolvimento e voltar a gerar empregos”. Tsc, tsc, tsc…

No saldão da justiça com jota minúsculo, essa dos “dois pesos e duas medidas”, a lei é virada do avesso de acordo com as conveniências –e a desfaçatez do TSE neste reality show da perversidade encenado pela elite é um belíssimo retrato de época.

Mas a crise é global, dizem. Uma crise de modelo. De um capitalismo claudicante, que respira por aparelhos. De uma mudança de paradigmas que substitui o desenvolvimentismo pelo rentismo, o humanismo pelo pragmatismo, os interesses locais pelos transnacionais –mesmo que este processo de concentração de riquezas passe por suprimir os direitos mais elementares, como o de tirar férias ou se aposentar.

O Brasil é um laboratório a céu aberto. Um campo de provas da barbárie institucionalizada. Um parque temático da inversão de valores, das motivações inconfessáveis e interesses mesquinhos.

Os índices de violência aumentam pelo país –a ponto de se matar mais gente aqui, em três semanas, que em todos os atentados somados em um ano pelo mundo. O genocídio de jovens (sete em cada dez, pretos e pobres) é um triste termômetro da guerra aberta seletiva e subterrânea que se tem.

As políticas públicas de segurança são baseadas em repressão, e não em prevenção e investigação. A dependência química gerada pelo crack é criminalizada, em vez de ser tratada como questão de saúde pública. E governante algum liga lé com cré, pra constatar que redução de oportunidades e exclusão não costumam gerar uma sociedade mais justa –e, vá lá, mais segura.

A educação é achatada. Com um esforço enorme para inibir a formação do senso crítico –e autocrítico. Os privilegiados, desta casta que estuda nas “melhores escolas” e acessa os cursos mais disputados da universidade pública, lideram o festival de aberrações.

Poucas profissões se mostram tão carentes de princípios éticos, na média, como a dos médicos no passado recente –como ilustram os episódios de boicote à universalização do atendimento, no combate ao Mais Médicos; do sem-número de profissionais concursados que marcam ponto ou subcontratam outros para cumprir expediente em seu lugar nos hospitais públicos; do sexismo de estudantes machistas que baixam as calças, ostentam seus “canudos” e violentam simbolicamente.

Estes são tempos complexos. Mas seria ilusório imaginar que tudo começou agora ou surgiu da noite para o dia, no entorno do golpe –que “apenas” acentua e escancara distorções.

Na era do selfie e da hiperexposição continuada, as redes sociais trouxeram à tona um Brasil escamoteado, que sempre esteve aí. E tiraram a máscara do homem cordial, pondo fim a um mito que durante décadas foi conveniente para manter as coisas como sempre foram.

No vale-tudo da selvageria política, a direita de inclinação fascista saiu do armário batendo no peito, de preconceito em punho, encorajada pelo despudor de uma mídia que lhe deu palanque, para dividir o país e orquestrar o golpe.

Mas sejamos justos. A corrupção, a intolerância e o egoísmo não são um privilégio do sub-cidadão brasileiro de hoje. Remontam, pra ficarmos no radar da história oficial, pelo menos aos idos das caravelas. E não custa lembrar: estamos falando de um território ocupado há 12 mil anos que só é considerado país há pouco mais de 500. Justamente quando passa a cooptar pessoas e a negociar crenças e costumes em troca de espelhinhos.

A diferença é que as vítimas do passado pré-digital não tinham meios suficientes para vocalizar sua revolta. No mundo do descontrole remoto, a internet rompeu a bolha da mídia hipercentralizada e hipercontrolada, da maquiagem sistemática da realidade e do jogral narrativo de falseamento dos fatos, proclamado em uníssono. E trouxe à tona o dissenso –o que, por si, não é ruim.

A ditadura dos algoritmos reafirma e ilude nas redes, dando a entender que somos mais e maiores do que somos. Mas ainda falamos muito para nós mesmos, num processo tresloucado de afunilamento e mobilização de convertidos.

Com uma vantagem que não se pode desconsiderar. A caixa de pandora foi aberta. E já não é mais possível manter “a malandragem nossa de cada dia” sob o tapete por muito tempo mais.

Os canalhas estão à solta, à direita e à esquerda. Quem assina embaixo dos pequenos desmandos, seja de que ordem forem, cedo ou tarde tende a ser desmascarado. Quem se cala diante do egoísmo dos que defendem privilégios e só agem movidos pelo bolso ou o ego é cúmplice deste estado das coisas.

O jogo é bruto, sim. E o país está em curto –ou em surto.

Há uma ânsia por soluções imediatas para problemas graves e crônicos, que refletem distorções históricas. E só os farsantes são capazes de propor algo assim.

Não adianta transferir responsabilidades ou esperar a chegada do salvador. A transformação começa em cada um de nós. Na nossa capacidade de se deixar indignar.

É um bom momento para agir –não apenas reagir. Pra transformar o desencanto em fúria e a fúria em combustível para a mudança. E dar um passa-fora na covardia e no mau-caratismo.

Se há outro caminho a seguir, ele começa com uma pergunta: o que eu posso fazer pra que as coisas sejam diferentes (quem sabe, melhores) hoje?! Pois faça. E que seja para mais do que você mesmo.

* Dedico este texto aos servidores da Rede Minas –num dia como este, tão simbólico.

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