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O aplicativo de mensagens WhatsApp já foi tirado do ar, no Brasil, três vezes, em função de decisões de juízes de primeira instância. As três determinações tinham como base a recusa da empresa em divulgar o conteúdo das mensagens trocadas entre pessoas que estavam sendo alvo de investigação policial. Mas será que impedir milhões de usuários a terem acesso ao serviço é correto? Quem vai tomar essa decisão é o Supremo Tribunal Federal.

Vamos pensar um pouco sobre o assunto. Imagine, por hipótese, que uma empresa telefônica se negasse a fazer um grampo entre os terminais telefônicos de pessoas alvo de alguma investigação. Diante da negativa, então, um juiz determina que todas as comunicações telefônicas do país sejam suspensas como sanção à empresa por não ter cumprido a pedido judicial. Isso seria justo?

Ou ainda, imagine que um servidor de e-mails fosse notificado a entregar o conteúdo de mensagens trocadas por pessoas suspeitas de terrorismo, mas se negasse a quebrar o sigilo destas mensagens. Então, como sanção, um juiz determinasse a suspensão das atividades daquele serviço de e-mail em todo o país. Isso seria justo?

Privar milhões de usuários de um serviço essencial ou central para a atividade econômica, ou de interesse público para prestar outros serviços e centrais para a realização de comunicações pessoais e de caráter informativo parece ser totalmente desproporcional. Ou, para usar o dito popular, os fins, na maioria das vezes, não justificam os meios.

Desde que a rede mundial de computadores passou a ocupar espaço central na intermediação das relações públicas e privadas da sociedade moderna, os setores que defendem o “máximo controle das informações” e os que defendem a “privacidade e a liberdade de expressão” entraram em choque.

A luta do bem contra o mal é travestida na internet como a contraposição entre “segurança pública x privacidade”. Mas a arena da internet é demasiada complexa e nova e, por isso, é preciso tomar cuidado para garantir um equilíbrio necessário entre estes dois pólos – principalmente em tempos tão turvos, com o crescimento de estados ditatoriais, de radicalismos de todas as formas e de um conservadorismo galopante.

O assunto foi alvo de uma audiência pública promovida pelo Supremo Tribunal Federal nos dias 02 e 05 de junho, que recebeu especialistas sobre o tema e as partes interessadas nas duas ações que foram impetradas junto à Suprema Corte brasileira para discutir o assunto.

Bloqueio não pode

Um dos participantes da audiência, o advogado, professor e pesquisador Ronaldo Lemos, do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio (ITS-Rio), considera o bloqueio inconstitucional. Isso porque ele ocorre na camada de infraestrutura da rede. “A intervenção direta na infraestrutura é prática típica de países autoritários”, afirmou. Além disso, na sua avaliação, juízes de primeira instância não têm base legal para suspender um serviço nacional.

Esse tipo de interferência não é compatível com a Constituição e viola vários princípios fundamentais, como o da liberdade de comunicação e expressão, da pessoalidade da pena e da livre iniciativa. Viola, também, instrumentos internacionais ratificados pelo Brasil, como a Convenção Americana de Direitos Humanos, que tem força supralegal.

A interferência direta na infraestrutura para bloquear aplicativos da internet tem ocorrido apenas em países autoritários, como a Arábia Saudita, e, mesmo nesses casos, as medidas são tomadas por um poder central, ligado ao Executivo.

Para o pesquisador, a integridade de serviços de infraestrutura da Internet no Brasil está imunizada pela Constituição contra intervenções dessa envergadura. “Jamais se ouviu falar em bloqueio generalizado de um serviço de telecomunicações, ou o bloqueio sistêmico de estradas e portos”, comparou. “Uma medida assim só seria justificada em casos extremos, que envolvessem segurança nacional. Fora dessas situações, nenhuma entidade ou indivíduo pode deter, no Estado Democrático de Direito, o poder de interferir”, concluiu.

Em contraposição ao bloqueio, Dennys Antonialli da Associação InternetLab de Pesquisa em Direito e Tecnologia sugeriu medidas eficazes e legais como multas, aplicação e a assinatura de acordos internacionais de cooperação judiciária, a exemplo do que existe entre o Brasil e os Estados Unidos.

Mas porque o Whatsapp não deu as informações?

A esta altura, você deve estar se perguntando: mas se houve um pedido judicial para o Whatsapp quebrar o sigilo de determinada comunicação, por que raios ele se negou a fazê-lo. Simplesmente porque as tecnologias de segurança desenvolvidas para garantir a privacidade das comunicações privadas e transações econômicas na internet evoluíram para, justamente, impedir que se acessem os conteúdos trocados. Essa tecnologia tem o nome de criptografia.

Por isso, mesmo que o Whatsapp entregasse as informações solicitadas, elas seriam algo similar a ruídos incompreensíveis, letras embaralhadas ou símbolos sem sentido. No caso dos telefones, seriam como entregar uma conversa impossível de ser decifrada ou dos e-mails mensagens sem qualquer sentido.

Nos últimos anos, a quebra do sigilo de comunicações foi galopante no mundo. Órgãos de segurança passaram a monitorar (um nome mais ameno para vigiar) as comunicações entre dezenas de milhares de pessoas em todo o mundo. Não só entre civis, mas entre empresas e governos. As denúncias de Edward Snowden revelaram esquemas de espionagem envolvendo o acesso às mensagens via internet que ameaçavam a segurança de pessoas e países. A vacina contra isso tem sido o aperfeiçoamento de ferramentas de segurança da informação.

Desta forma, vários aplicativos – entre eles o Whatsapp – passaram a utilizar criptografia ponta a ponta para garantir a privacidade das comunicações entre os seus usuários. A criptografia é uma tecnologia reconhecida pela Organização das Nações Unidas (ONU) em um trecho do relatório especial do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, segundo o qual “a criptografia possibilita que indivíduos exerçam seus direitos, a liberdade de opinião e a expressão na era digital e, como tal, merece nossa proteção”.

Presente na audiência pública, Demi Getschko – considerado um dos pais da internet no Brasil, presidente do Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.br) e membro do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) – disse que “a criptografia é instrumental aos direitos humanos da privacidade e da liberdade de expressão. Ela e outras novas tecnologias de segurança da informação devem ser incentivadas e não restringidas. As plataformas que disponibilizam tecnologias de segurança de informação não devem ser penalizadas pelos usos ilícitos de seus usuários”, defendeu.

O engenheiro Brian Acton, vice-presidente do Whatsapp, afirmou que os pilares do sistema são segurança e acessibilidade e que o sistema é inviolável, até mesmo por parte do próprio WhatsApp. A criptografia de ponta a ponta faz com que mais de um bilhão de pessoas se comuniquem sem medo em todo o mundo, razão pela qual investiram no melhor sistema disponível atualmente. As chaves que integram o sistema não podem ser interceptadas. Cada terminal tem uma chave e elas mudam a cada mensagem enviada. “As chaves relativas a uma conversa são restritas aos interlocutores dessa conversa. Ninguém tem acesso, nem o WhatsApp”, disse.

“Não há como tirar [a criptografia] para um usuário especifico, a não ser que se inutilize o WhatsApp para ele” e acrescentou que a única forma de desativar a criptografia para um usuário, seria desativar para todos, afirmando que qualquer hacker poderia ter acesso a bilhões de conversas caso isso ocorresse.

Paulo Rená da Silva Santarém do Instituto Beta para Democracia na Internet (Ibidem) afirma que controlar a criptografia pode causar efeitos incalculáveis. A fragilização desse procedimento implica necessariamente na fragilização de direitos. “Se a NSA não conseguiu conter vazamentos de sua tecnologia de acessos por backdoor (porta dos fundos), o que nos faz pensar que a Polícia Federal brasileira poderia fazer isso?”, disse. “Todo contorno de segurança é uma substituição de uma segurança por protocolo, por pessoas. E pessoas são corruptíveis”, afirmou.

Então, como a Justiça poderia atuar para interceptar comunicações? Há outros caminhos, como os sugeridos pelo professor Diego de Freitas Aranha, do Instituto de Computação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp): modernização do aparato investigativo para que se tenha condições de usar técnicas de investigações menos intrusivas como a análise de metadados, que preservam o conteúdo das mensagens trafegadas pelos sistemas de comunicação; obter cópia de segurança de mensagens disponíveis em serviços de nuvem, realizar busca e apreensão de equipamentos que estão nas pontas da comunicação, a aplicação de técnicas forenses para extrair informações desses equipamentos e ações de inteligência e infiltração de agentes policiais.

Como o tema chegou ao STF?

O tema chegou no STF por duas iniciativas. Uma do Partido Popular Socialista (PPS) que ingressou com uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 403, no qual sustenta que a suspensão dos serviços do aplicativo viola o direito fundamental à comunicação expresso na Constituição Federal.

A ação do PPS diz que é “cristalina a violação do direito à comunicação. Afinal, o aplicativo de mensagens WhatsApp realizou algo visto como impensável até a década passada: uniu as mais diversas gerações em uma só plataforma de troca de informações, proporcionando a comunicação de maneira irrestrita para os aderentes”. Alega também que “segundo dados mais recentes, de cada 10 (dez) celulares brasileiros, 8 (oito) estão conectados ao aplicativo. Em um país de dimensões continentais como o nosso, um único aplicativo para celular conseguir abarcar um número de consumidores que chega a quase metade do contingente populacional brasileiro, que é de 205,8 milhões de pessoas, é algo para se enaltecer”. De onde conclui que o Whatsapp “é um meio deveras democrático para o cidadão brasileiro se comunicar. Quiçá o mais democrático, graças à sua plataforma gratuita, simples e interativa”, e, portanto, “a suspensão da atividade do WhatsApp, baseado em controverso fundamento, viola o direito à comunicação, garantido constitucionalmente ao povo brasileiro”.

O relator da ADPF 403 no Supremo é o ministro Edson Fachin. Há também uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 5527) contra três dispositivos do Marco Civil da Internet que foram impetrados pelo Partido Republicano (PR), e cuja relatora é a ministra Rosa Weber.

Tanto Rosa Weber quanto Fachin participaram integralmente dos dois dias de audiência. Weber enfatizou que “os temas tratados nesses processos, que envolvem questões de extrema complexidade e de caráter multidisciplinar, dizem respeito a valores fundantes da ordem jurídica brasileira e revestem-se de inegável relevância para a consolidação do nosso Estado democrático de direito.”

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