“Liyla & the Shadows of War” e outros jogos que são ferramentas de luta e defesa dos direitos humanos

Em uma ação atual que foi até junho, criada pela fundadora da Toadhouse Games, Alanna Linayre, muitos Devs independentes se reuniram em uma iniciativa que gerou uma doação para a Agência das Nações Unidas aos Refugiados da Palestina. Esses desenvolvedores criaram um bundle (um pacote modular com itens, jogos…) pedindo uma doação de no mínimo 5 dólares, impulsionado no site de jogos para PCs Itch.io. O pacote agrupou mais de 1.272 itens e jogos desenvolvidos e doados por elas e eles para a causa. Quem contribui, além de músicas, itens e outros jogos, tem direito e acesso ao jogo “Liyla & the Shadows of War” de jogabilidade simples e temática muito profunda que recomendo que todes joguem.

Criado em 2014, ano cujo conflito armado, tema do jogo, contabilizou que 1/3 das vítimas eram crianças. O game em questão foi vencedor, além de outros concursos, do “Prêmio em Excelência em Contação de Histórias no International Mobile Gaming Awards no Oriente Médio / Norte da África”, do criador independente Rasheed Abueidah, também vítima do conflito. Sua jogabilidade nos coloca em uma imersão no meio da Faixa de Gaza, entre bombas e mortes do embate entre Israel e Palestina. Naquela condição hostil, para quem entende que não há outro final para o jogo, também entende a questão de que: os jogos podem ter um papel muito importante como ferramentas de crítica social.

Ao longo do flow do jogo, junto com almas de inocentes que vão subindo no background das cenas finais, minhas lágrimas foram descendo de forma copiosa, na tela agora – noir – do celular, além de molhada pelo choro, víamos nos pixels estatísticas de quantos civis, crianças, ambulâncias, escolas foram afetadas, mortas e ceifadas no conflito até aquela data. Assim, entendemos melhor sobre as condições desta absurda guerra, em um outro ponto de vista, as histórias e vidas perdidas, mesmo já conscientes disso, pelas notícias e informações. O jogo nos faz encarar a questão de modo diferente.

Sua jogabilidade de 2d com puzzle nos faz modificar o nosso próprio corpo. Vamos a cada erro de tomada de decisão tomando mais cuidado, como se tivéssemos chances de salvar alguém, como se nosso senso de cuidado fosse aguçado e estimulado ao logo do game play, esse tipo de sensação que todos os jogos têm acesso pode com certeza ser um canal de estimulo da empatia mútua, e traz sim luz à questão. Fica tudo muito óbvio ao longo do enredo e também fica explicito que na guerra o ser humano deve aprender, nunca há vencedores. Sim, ao terminar o jogo chorei copiosamente, durante o turno fui me vendo mudar de fisionomia, eu comecei a desligar as luzes de casa para poder enxergar melhor o cenário, não queria perder aquela família mas eu, nesse ambiente real, seria mais uma pessoa desesperada… Pois um míssil não tem empatia, ele simplesmente vai e explode, ele é cartesiano…

Cartesiano assim como pessoas que se dispõem por uma causa patriota a atirar ou enxergar números sem rostos. Esse jogo nos mostra isso, ao longo do cenário, nosso coração parece acelerar, mãos suadas, e ao fim nos sentimos meio inúteis e com raiva. Ao abrir o aplicativo não esperava que o clima noir me levaria a sentimentos tão profundos, de jogabilidade simples, mas de temas pesados. Nos imaginamos em um estado de guerra, uma guerra que também se tem aqui em nosso país pelos cantos e vielas, mas diluídas em estatísticas, porém explicita para pessoas silenciadas, pela necropolítica. Imagino sem nem pensar de forma palpável como é ser Liyla, no meio do bombardeio. Eu nunca senti o cheiro de sangue da guerra, porém essas crianças sentem isso dia pós dia, infelizmente como muitas crianças de nosso próprio país como foi na tragédia engendrada pelo estado do Jacarezinho. O que é isso aos olhos de uma criança? O pavor, o horror, a luta dos responsáveis em sair daquele estado, o que me faz trazer ao contexto, olhando mais uma vez o jogo, a violência que cada criança sofre em nossa terra mesmo dentre as guerras e violências coloniais que os adultos colonizadores trouxeram de dentro de suas ambições, sadismos e pontos de vistas eurocêntricos e egoicos.

Sim, muitas coisas senti, ao jogar esse enredo, senti nos músculos, fico pensando quando se perde a empatia, quando não enxergamos mais uma criança ou uma vida diante de nós, e jogamos por cima dela nossas ideias, bandeiras e ideias frágeis de pátria. Não quero ver mais pais correndo com seus filhos de bombas, mas eu sozinha sei que não posso nada, mas nós juntos… por que ainda não fazemos tudo que podemos? E ai recorro novamente ao papel que poderá ser fundamental dos jogos no mundo de hoje, tanto para direções nefastas como para direções muito benéficas.

Um fato infeliz e curioso que aconteceu com o jogo, é que diante da comoção que ele causou, em 2016, não obstante, a loja da maçã “meio que fez” uma retaliação ao jogo por nele “entender” que havia conteúdo político. Julgou a temática como conteúdo “documental” e não um jogo, retirando-o da aba de jogos, e “sugerindo” modificações drásticas no game. Enfim, o mercado mais uma vez entendeu o que quer e para quem quer… não é? Não chega a ser uma polêmica isso, e sim é uma tomada contrária de posição, ao meu ver, o que dá mais um ponto positivo ao jogo: ele causou desconforto em uma empresa, independente de suas posições políticas diante do conflito da Faixa de Gaza. A provocação do jogo, intencional ou não (em relação a atingir a Apple), foi efetiva, mais uma prova do poder de mudança de visão que os jogos trazem. Eles podem sim provocar a comoção e mudar e até começar um fluxo de defesa de direitos humanos e nos atentar a questões sociais.

Como um país em flagelos tal qual o nosso, e com nossa imensa capacidade de criar em muitas linguagens, temos ai caminhos de trafegar no mundo da artes digitais e trazê-las à luz como ferramentas poderosas de discussão social. Posso citar muitos títulos que têm feito um grande papel nesse quesito, não só o triplo A The Last of US 2, que além de ter ótimos recursos de acessibilidade também mostra pautas LGBTQIA+; mas como Fallout 4, que muda o destino do jogador se ele tomar escolhas duvidosas; ou o mítico Journey, que em sua experiência de usuari@, trabalha questões como o luto e a jornada da vida, com sua forma intimista de nos mostrar o deserto de nós mesmos e a mudez da paz. Posso citar também o jogo Papo & Yo, um jogo dramático que traz uma crítica social à relação de violência doméstica, baseado na infância do diretor de arte do jogo Vander Caballero, o game play fala de forma lúdica na verdade, sobre alcoolismo, com elementos que mostram a mudança de comportamento do Monstro inicialmente dócil e o preguiçoso Papo, para um ser de fogo e violento quando come sapos venenosos; ou como a obra de arte em forma de jogo Gris, que fala sobre superar a depressão. Enfim os jogos podem sim ter um papel muito contundente na discussão social.

Aposto em iniciativas que trazem não só nos jogos, mas na comunidade de jogadoras e jogadores, o ponto de vista de mudança. Ferramenta de mudança social, assim como ferramenta de inclusão de pautas, o jogo hoje, como diz meu professor de Engenharia de Software na Fatec o Mestre Carlos Aberto – Beto – é mais que uma peça audiovisual ligada exclusivamente em ser um software de entretenimento, mas sim uma plataforma de arquitetura de experiência, onde as sensações transcendentais fazem parte da visão da jogadora ou jogador ou jogadore. E eles hoje são um grande viés e um palco infinito de luta pelos direitos de todes.

Clique aqui e acesse site direto para ajuda às causas da Palestina.

Clique aqui e acesse site de iniciativas e jogos para PCs.

Clique aqui e acesse link da playstore para baixar gratuitamente o jogo Liyla & the Shadows of War.

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