Ensaios sobre outras tecnologias. A Lei Aldir Blanc de apoio à cultura e a arte pelas fibras óticas…

Foto: Cia Os Rouxinóis

Falarei aqui algumas palavras para introduzir esta entrevista … Lembro de uma cena do polêmico e famigerado curta-metragem “Ilha das Flores” (embora fora um marco no campo progressista, houve muitas controvérsias sobre sua produção) que dizia assim – “os seres humanos são animais bípedes, mamíferos, que se distinguem dos outros mamíferos como a baleia, ou bípedes como a galinha principalmente por duas características, o tele encéfalo altamente desenvolvido e o polegar opositor…”. Porém acho que podemos ir além na condição evolutiva das espécies, podem falar da crueldade, fator oriundo só de nossa espécie, vemos muito por ai, principalmente hoje em cargos de decisão do executivo, mas já falamos sobre isso no outro ensaio. Quero falar hoje de outra condição advinda dos humanos, e para isso trarei duas entrevistas intercaladas, sobre afeto e redes… Mas gostaria de começar com um fato que pude presenciar.

Em nossos ateliês de artes, dos quais foram temporariamente migrados para a plataforma remota, existe sempre uma reunião que juntamos em áreas por afinidade, uma destas reuniões pela plataforma M.Teams, uma das educadoras a senhora Remilda, uma das educadoras do ateliê de bordados, uma mestra bordadeira e uma griô esplêndida!

Ela na plataforma online naquele momento estava na reunião errada, só que não, por não saber voltar a sua sala na plataforma disse sem ninguém retrucar, “Pois vou ficar aqui mesmo”, e estávamos nós jovens achando que sabemos um pouco mais que ela naquela condição tecnológica… cheios dos saberes e imaturidades inerentes a nós, vimos alguns vídeos sobre o que nos dá tonos no dia a dia, ou o que dar cor para nosso dia, e a sabedoria de dona Remilda nos trouxe uma história. Ela disse que certa vez estava lá e ela resolveu fazer paçoca para comemorar a formatura, mas ela queria fazer do jeito antigo, então ela levou o pilão e o amendoim, e começou a socar no pilão, e adentrou à sala uma aprendiz do ateliê e disse que estava muito triste pois havia descoberto um problema no coração, e que isso a estava angustiada, pois dona Remilda deu um pilão a ela e as duas foram contando causos e amassando os amendoins. Pois bem no final dona Remilda trouxe a seguinte reflexão, o carinho de compartilhar os problemas e amassá-los eles juntos em uma prosa, é a verdadeira razão de estarmos juntos…

Enfim, não só a mim mas a muitos fez chorar, percebendo que existe uma tecnologia mor que despontou entre educadores, nas telas e telas por aí, nova forma de compartilhar o conhecimento… a tecnologia do afeto… Por conta disso, em dois textos eu trarei Artistas Digitais e que tiveram que se digitalizar para conversarmos sobre como o afeto trafegou os bits através da arte por ai, e também através das plataformas e leis advindas com a situação atual.

A seguir, trago dois pontos de vistas de artistas independentes, uma delas é a artista e poeta Gabi Luna, uma autora multimídia. Poeta de rua, contadora de histórias. Arte-educadora carioca, radicada no mundão. Pesquisa arte, tecnologia & redes de afetos em publicações independentes. Produz literatura experimental com diálogos entre corpos, linguagens, a natureza e as tecnologias. Colaboradora em projetos de arte urbana. Entusiasta da cultura viva, das misturas, do ser brincante e das inovações partindo de saberes tradicionais. Responde também por suas personas poéticas, inclusive @amazonahightech.

Concomitante com esta entrevista vem a opinião através do artista André Orbacan, ator, dublador, arte-educador, contador de histórias. Iniciou sua carreira em 2006 realizando contações voltadas ao público adulto em bares e espaços alternativos, divulgando obras clássicas da literatura romântica. Consequentemente inicia em 2007 pesquisas de oralidade em diversas cidades paulistas, resultado de conversas realizadas após as sessões de contos, incentivo das diversas histórias ouvidas na informalidade, que proporcionaram abertura de diálogos e resultaram na descobertas de lendas não muito populares brasileiras. Em 2010, funda a Cia. Os Rouxinóis buscando ampliar a faixa-etária de seu público, trabalhando contos de fadas e a Companhia formada por contadores e músicos se apresentam em bibliotecas, escolas, creches, orfanatos e abrigos.

O que vocês acham deste termo “tecnologia do afeto” e como isso pode ser um feixe de esperança, comunhão em um ciclo de abraços vindo, binários pelo praticar da arte nas redes?

GABI LUNA – Tecnologia do afeto é uma forma de nomear, reconhecer nossas práticas que são milenares. A tecnologia ancestral de estar em roda, do abraço, do sorriso, da escuta ativa, são analogias que estamos construindo nesse contexto onde muitos vivemos hoje: um ambiente binário, digital, em um mundo cada vez mais polarizado. Tecnologia do afeto é estar presente em si em relação a outres. Estamos vivendo um dos ápices de transformação da organização mutável da forma, dos caminhos percorridos para essa prática de estar junto, construindo e compartilhando a tecnologia de nos reinventar como seres, linguagem, e seja lá mais o quê, para praticar nossos afetos. Numa dessas segundas-feiras, eu tive o prazer de participar de uma oficina de escrita criativa. Ali, por vídeo-chamada, em um programa pesado demais para o pacote de internet de uns, que não mostrava a imagem de todos os participantes com a câmera aberta, tivemos a oportunidade de sentir o que diziam os silêncios, quando brilhava os olhos de um ou escorria a lágrima de outros, ouvimos vozes embargando durante a leitura de breves versos e, por fim, percebemos que somos nós mesmos as ferramentas mais fundamentais para construção e reconstrução cotidiana dessa chamada tecnologia do afeto, no contexto cultural, ou geracional, onde estivermos.

ANDRÉ ORBACAN E CIA. OS ROUXINÓIS – Acredito eu, que a estranheza causada pelo termo é uma belíssima tradução de nossos sentimentos em meio a pandemia. Com o passar dos tempos passamos a relacionar a palavra “tecnologia” com modernidade, algo que deve ser alcançado. Sendo assim, a tecnologia sempre está à nossa frente e não importa o quanto nos esforcemos, sempre estaremos ultrapassados. Nos esquecemos que os facilitadores da vida são ferramentas que devem agir para nos auxiliar e nos tornamos completamente dependentes de equipamentos eletrônicos, perdemos a capacidade de realizar tarefas básicas. Hoje, o afeto que muitas vezes era relacionado ao contato físico, está impedido pelo distanciamento social, cabe às novas tecnologias apresentarem um modo de expressar afetos, uma figurinha que desperta o sorriso discreto, a troca de mensagens escritas que tranquiliza o coração antes de dormir, um álbum de fotos de pessoas queridas que nos recordam os bons momentos em uma quinta-feira comum.

Hoje, o afeto que muitas vezes era relacionado ao contato físico, está impedido pelo distanciamento social, cabe às novas tecnologias apresentarem um modo de expressar afetos…

Se tem uma característica que descreve bem o ser humano, muito além do telencéfalo altamente desenvolvido e o polegar opositor, é a capacidade que temos para nos adaptarmos a adversidades. Ontem era o toque que despertava as correntes elétricas do corpo e arrepiavam os pelos do corpo, o olhar de perto que desconfigurava o reloginho biológico e fazia o tempo parar. Hoje, buscando resultados parecidos, encontramos caminhos alternativos, se virtual é o caminho de hoje, andemos por esse meio ethereo como bebês que tentam encontrar o centro de gravidade do corpo até conseguirem se equilibrar e ficar de pé. Uma forma diferente de fazer, não melhor, nem pior, diferente e viável.

Como foi a escolha e como foi a adaptação dos processos para as plataformas de compartilhamento de conteúdo, stream, e redes sociais. Vocês sentem uma certa cobrança de conteúdo, ou de certa forma conseguem hackear esse ‘bixo” que nos devora, que é a intenção e obrigação de publicar e ser visto?

GABI LUNA – “eu não posso escolher entre as frentes em que eu devo batalhar”, disse Audre Lorde, em outro contexto, e essa frase cabe perfeitamente aqui. Existe mais um cem número de frases que eu poderia relembrar aqui para justificar que “todo artista tem de ir onde o povo está”. Com o avanço na popularização da camada digital em nossas vidas, muitos dos trabalhos feitos em diferentes suportes e plataformas passaram a contar também com as suas “versões online”. Nesse caminho, percorremos diferentes linguagens e possibilidades para experimentar esse estado de ser em ambiente digital. Desde os idos tempos de MS DOS já estávamos produzindo a pixel art que podíamos e ensaiando para o que hoje chamamos de arte generativa. Passamos pelos memes, vivemos e morremos para ter uma figurinha maneira (lembra quando fazíamos isso com aqueles álbuns intermináveis? selos? cartões de orelhão?) e agora querem me dizer que só têm “valor de arte” aquelas produções certificadas por NFT (emoji revirando os olhinhos).

“Todo santo dia meus demônios me visitam pedindo poesia” (essa é do querido Rafa Carnevalli) Certa vez, tive a honra de presenciar uma roda de conversa com Gilberto Gil, no Auditório do Centro de Artes, em um evento chamado UFF Debate Brasil. Entre outras emoções, em algum momento um estudante questionou Gil sobre o que deveríamos fazer com a digitalização do mundo e a voracidade dos algoritmos. Naquele momento, o mesmo Gil que lançou “Pela Internet” em 1997, respondeu que algoritmo nada mais é do que algo com um ritmo, o ritmo do algoritmo e que quem constrói esse ritmo somos todos nós. Com os nossos amigos, nossos gestos de colaboração no meio ambiente, incluindo aí o digital nesse ambiente do meio, nessa forma de fazer, de ser e expressar. Tô falando isso tudo para dizer que expressar as nossas subjetividades e compartilhar nossos ideais tem parecido ser o melhor caminho para fincarmos o pé nas trincheiras dessa luta simbólica na qual vivemos. Você já parou para pensar no motivo das músicas e dancinhas do tiktok fazerem tanto sucesso? Elas são reproduzidas diversas vezes, as chamadas trends, bombam justamente por conta da quantidade de pessoas replicando esse conteúdo. Quanto mais vezes falarmos sobre o que a gente acredita, de maneira estratégica, maior a chance de alcançarmos mais pessoas. Isso significa que precisamos postar dia e noite? Não. Significa que podemos acolher as ferramentas do nosso tempo como o que elas são, parte das nossas relações. Perceber nossa própria existência e o contexto do mundo para escolher quais ideias reverberando. Eu queria falar também sobre bots, fazenda de likes e outras estratégias antiéticas que habitam o ambiente digital e o deixam com essa cara de bicho, mas segue o baile, deixa esses assuntos pra uma próxima oportunidade. Só não quero que você pense que é só dizer o que vem a sua cabeça pra ganhar biscoito a qualquer custo sem se preocupar com as consequências disso.

ANDRÉ ORBACAN E CIA. OS ROUXINÓIS – Antes da pandemia surgir, já sentíamos a necessidade de investir no mundo virtual, lembro de uma conversa em 2018 onde definíamos os caminhos para a evolução de nosso canal no YouTube, a ideia era responder a uma pergunta constante que me faziam “Onde posso ver mais?” ou “Onde vocês se apresentam?”, as duas perguntas apontavam para uma única direção, precisávamos de um espaço só nosso, um lugar onde as pessoas possam ir para nos encontrar, antigamente companhias teatrais batalhavam para conseguir uma sede própria, um lugar para chamar de seu, o reflexo do trabalho duro vindo como sucesso, estruturas assim demandam altos investimentos e precisam dar retorno para que o espaço possa se manter, depois de décadas no meio teatral vi muitos espaços surgirem e morrerem.

Para conseguir responder as duas perguntas recorrentes, pensamos em uma saída muito mais simples e democrática, investir no ambiente virtual, assim começamos a reativar nossos canais de comunicação no Facebook e no Youtube, membros da companhia começaram a buscar estratégias de captação de imagem, som, edição etc. Quando a pandemia surgiu percebemos que os bons ventos já sopravam em nossos ouvidos as profecias de tempos sombrios, estávamos prontos para enfrentar esse período escasso, sem lucros, mas como enxergamos hoje, o importante é não parar, tudo que para, atrofia, nossa intenção nos meios virtuais nunca foram lucros financeiros, mas sim um meio de levar o trabalho a aqueles que pediam mais e conquistar visibilidade para trabalhos no mundo real. As cobranças existentes em nossos meios, nós mesmos criamos, sinto que com a pandemia os conteúdos da internet sofreram um crescimento exponencial, surgem mais conteúdos do que interexpectadores, para não desanimar é necessário ter foco e entender que a visibilidade depende tanto da qualidade, quanto da popularidade por seu segmento, a audiência tão criticada na televisão está se tornando uma cobrança pessoal.

Sabemos que a lei nomeada com o grande compositor Aldir Blanc quase sofreu sanções, e que o governo federal, extinguiu o ministério da cultura, já habitado por Gilberto Gil, secretariado por Célio Turino, deixando lá no lugar uma secretaria, admitindo nas entrelinhas um caminho tortuoso para os artistas e fomento cultural, de que forma a lei Aldir Blanc, ajudou a manter a chama da sua atividade viva, e como você acha que ela vem ajudando os coletivos e iniciativas culturais?

GABI LUNA – Desde que me conheço por gente, até 2016, conscientemente ou não, minhas questões interiores giravam em torno da expansão da capilaridade do Sistema Nacional de Cultura. Eu queria saber como tornar mais ampla a percepção sensorial das subjetividades e menos voraz a tecnoburocracia da gestão de políticas culturais. Essa preocupação com a construção de políticas culturais democráticas e participativas não era só minha. Houve um tempo em que eram inúmeros, e lotados de vozes inquietas, os Conselhos e Conferências Nacionais, Estaduais, Municipais, além de todas as Prés, e dos outros caminhos permanentes previstos no art. 216-A. Decretado na Constituição 88, conjugando um desejo coletivo de reconhecer e apoiar os processos das ações culturais, tão essenciais à fabulação da vida.

Nesse desejo de estimular a participação social e o compartilhamento da gestão de políticas públicas no campo da cultura, considerando aspectos como diversidade, representatividade, reconhecimento dos saberes e fazeres tradicionais e a transformação social, a gente teve a alegria de reconhecer Gilberto Gil como Ministro da Cultura. Reverberando pautas de diferentes iniciativas e linguagens artísticas em espaços democráticos de tomadas de decisão. Foi nesse contexto que eu comecei a me reconhecer como pessoa e agente cultural.

Nas lembranças desses encontros e tessituras, onde a preservação do patrimônio cultural caminhava junto com o incentivo às inovações e às juventudes, discordamos e brigamos muitas vezes, principalmente em busca de sistemas mais abrangentes. Lembro de quando, em 2009, numa pré-conferência no centro da cidade do Rio, Jandira Feghali, que na época era Secretária Municipal de Cultura, saiu às pressas por conta de um incêndio que tinha destruído grande parte das obras de Hélio Oiticica.

Nossa memória neoconcretista, lambida por chamas em cólera cuja fumaça foi detectada tarde demais. Um ícone da liberdade de experimentações e criações artísticas, Hélio Oiticica, nosso eterno marginal-herói, havia sido reduzido a cinzas. Para mim, este foi o começo do fim, me pergunto sobre a carga metonímica que essa memória carrega.

Mas, dizem por aí que brasileiro não desiste nunca, né. Em 2010, foi implementada a Lei Cultura Viva, por meio da qual vimos diversas das iniciativas culturais que floresciam se transformando em Pontos e Pontões de Cultura. Nós éramos felizes e sabíamos. Como integrante da classe de poetas de rua, estive lá cobrando por mais, exigindo a expansão dos nossos direitos de ser quem somos, de ouvir, contar, nosso direito de sonhar, e nossos sonhos não tem limites!

Nossa esperança não entrou em combustão nem quando Temer (Jamais!) assumiu o posto de Dilma Roussef, primeira mulher presidente do Brasil. O Ministério da Cultura é (me recuso a dizer que foi) um dos órgãos mais recentes da administração federal, criado em 1985, ao tempo da redemocratização. Antes disso, entre 1953 e 1984, era uma secretaria dentro do Ministério da Educação (isso te lembra algo?). E em 2016, foi a primeira vez que a minha geração cogitou a triste possibilidade de ver nosso MINC ser transformado novamente em uma secretaria (percebeu?). Nesse tempo, eu fui uma das pessoas que, em defesa dos nossos direitos, ocupou escolas, praças, ruas e o Palácio Gustavo Capanema, então sede do Ministério da Cultura no Rio de Janeiro.

Acredito que os últimos lances da história você já saiba né. Fomos de Sérgio Sá Leitão a Mário Frias, passando pela “leveza” de Regina Duarte. Mas não vou me apegar a essas pequenezas de alma, Manuel de Barros diria que “aos poetas é reservado transmitir a essência”. Pois bem, transmitido esta. Com relação ao contexto que vivemos hoje, me reservo a lembrar um dos clássicos mais lidos desses últimos tempos: “Não estamos alegres, é certo, mas também por que razão haveríamos de ficar tristes? O mar da história é agitado. As ameaças e as guerras havemos de atravessá-las, rompê-las ao meio, cortando-as como uma quilha corta as ondas.” (E então, que quereis?, de Myakovszky)

Para não dizer que eu não falei de flores, para muitos artistas, grupos, organizações e coletivos, o financiamento garantido pela Aldir Blanc foi o primeiro conquistado por meio do trabalho na arte. A conquista de editais, prêmios e demais recursos do chamado cânone da arte, além de garantir a vida, o pagamento dos boletos, do aluguel, a compra de comida, também são formas de reconhecimento e manutenção do sistema da arte e da cultura.

A lei de emergência cultural Aldir Blanc é fruto de um projeto de lei de autoria de Jandira Feghali, Benedita da Silva, Fernanda Melchiona, e outros parlamentares, que garantiu o investimento de 3 bilhões de reais no setor da cultura em âmbitos municipais e estaduais. Verba fundamental para a manutenção da vida dos trabalhadores da arte e da cultura, cujo os valores repassados, inclusive, não são tão diferentes dos que já vinham sendo movimentados pela Lei Rouanet, por exemplo.

Só de falar Rouanet eu já ouço as panelas batendo, calma. Não estou dizendo que a Lei Rouanet é tão democrática quanto a Aldir Blanc, com certeza não é. Até porque, cada uma se destina a fins bem diferentes e nenhuma das duas é perfeita. Trouxe esse exemplo aqui por três motivos.

O primeiro é para lembrar que a Aldir Blanc é uma das nossas maiores vitórias dos últimos tempos, e nem por isso podemos esquecer que ela veio para não nos deixar morrer de fome. Para muitos, 600 reais é a diferença entre ter um teto sobre a cabeça ou não, entre ter o que comer e como alimentar os filhos, ou não. Os prêmios, além do reconhecimento social que mencionei lá em cima, ajudaram muitas famílias de trabalhadores da arte que, inclusive agora estão, de novo sem ter de onde tirar recursos.

O segundo motivo é que agora mesmo enquanto escrevo, está aberta a consulta pública para aprovação da Lei Paulo Gustavo. Além de ser uma justa homenagem a mais esse nome que nos foi levado em função do descaso do então presidente do país, se for aprovada, também significaria o retorno da esperança e acesso a renda na vida de muitas famílias de artistas

O terceiro motivo é a mudança repentina nos critérios da Lei Rouanet. Esse é outro assunto que podemos falar mais em outro momento, mas por hora te convido a digitar “versalic” no seu navegador e ver com seus próprios olhos quais e como são os projetos que estão sendo aprovados para receber incentivos fiscais da chamada Secretaria Especial da Cultura, nossa querida fênix adormecida, o MINC – Ministério da Cultura.

ANDRÉ ORBACAN E CIA. OS ROUXINÓIS – A lei Aldir Blanc foi essencial para nossa retomada, buscamos criar materiais e uma rotina para geração de repertório e manter um movimento nas ações do grupo, porém toda a perspectiva que tínhamos desapareceu completamente em meados de março de 2020, ou seja, apesar de todos nós estarmos exercendo nossas atividades separadamente, os projetos do grupo foram suspensos, inclusive aqueles em que já tínhamos datas de apresentação definidas. Esse movimento causa um grande déficit, principalmente financeiro, mas não só, publicar vídeos de conteúdo não basta, é preciso criar redes, divulgações, caminhos para que as pessoas nos encontrem. Em 2021 tivemos dois projetos aprovados, um pelo município de Santo André e outro pelo município de São Bernardo do Campo, poder realizar, mesmo que de forma virtual esses projetos, com formação, espetáculos e conversas via zoom, nos levou a sentir, mesmo que remotamente, o calor do acolhimento do público e como escolhemos trabalhar temáticas pertinentes ao período, também tivemos a oportunidade de levar alento à casa de muitas pessoas, o afeto vem como um grande resultado e trás a esperança em suas asas, nossos primeiros trabalhos depois de mais de um ano parados, sentir a valorização, um respiro após uma apnéia profunda.

Gabriela Luna

Como a arte, como parte intrínseca da formação humana que é, pode criar uma rede de afetos mútua, se desprender a produção em escala, de views, e de alguns individualismos setoriais da arte cooptada, que a tornam de certa forma categorizada na internet, já que sabemos que o direcionamento da rede desde 2000 para cá, é de certa forma mercadológica?

GABI LUNA – Um abraço é sempre bom, a arte é o abraço dessa rede de afetos. Somos nós mesmos e nossos encontros as forças que operam a produção e circulação dos sentidos dessa forma que se transforma nas trocas que já aconteceram e continuam acontecendo nos diferentes suportes de cada tempo. Gosto de lembrar que a arte é tratada como mercadoria desde quando ganhou esse nome, quando foram inventados esses tempos modernos nos quais vivemos. Antes disso, a arte já conectava as pessoas, já contava histórias, criava e solidificava vínculos e afetos entre as pessoas e suas culturas. Se pensarmos nas culturas orientais ou nos chatinhos, os europeus, também vamos perceber que antes disso a arte já era uma profissão. As pessoas já podiam viver de suas produções, mesmo que não fosse qualquer pessoa, até por que ter acesso a uma pedra de mármore para esculpir ou infinidades de papéis washi, além de caro, parece bem distante para a maioria. Mesmo assim lá estavam os outros nós, contando e recontando histórias, produzindo bonequinhos de lama, restos de alimento, pedaços de tecido, ou riscando o chão com madeira torrada, afinal de contas a habilidade de fabular o mundo é totalmente gratuita e todos temos, mesmo que muitas vezes nos seja negado o reconhecimento disso (a tal da catraca simbólica?).

Enfim, saltamos das linhas do tempo “medieval” para 2021. O que mudou? Com a popularização das tecnologias digitais cada dia mais pessoas têm acesso aos modernos celulares que monitoram quantos passos damos, com quem encontramos e onde estamos, além dessas coisas também podemos produzir arte com essas bugigangas. Se você me perguntar o que é arte eu provavelmente não vou saber te responder, mas com certeza todo mundo pode produzir a sua. As pessoas querem produzir suas peças de arte digital, percebo essa como a parte mais divertida do tempo em que vivemos. Vejo as pessoas expressando suas subjetividades gravando vídeos com áudios da moda que dizem mais do que percebemos à primeira vista, dancinhas codificando sentimentos, arquivos de áudio inseridos em programas de vídeo, só pra ver a beleza de um bug. Esse espalhamento das possibilidades de experimentação com o corpo em relação à tela e às máquinas pode sim ser visto pelo lado mais voraz. Estamos tendo nossos sentidos cooptados por um número limitado de estímulos e produzindo dados que são utilizados por grandes corporações num contexto em que tudo o que parece de graça é por que os produtos somos nós. E também pode ser visto como mais uma volta na espiral do tempo da humanidade na terra onde podemos disseminar nossas presenças em um território em constante deslocamento e expansão. Mas e as pessoas que não estão sendo reconhecidas nesse contexto? E quem não tem grana pra comprar um celular moderno desses? E quem tem uma deficiência que a impede de usar essas máquinas e não pode pagar por uma adaptação ou aquelas cuja adaptação necessária não foi criada ainda? E as pessoas que não querem estar presentes nessa realidade ultraprocessada? Deixam de existir? Se uma árvore cai numa floresta e ninguém ouve, ela caiu? Se a artista não publica suas obras, trajetória e prêmios na rede social do momento, essa artista existe?

ANDRÉ ORBACAN E CIA. OS ROUXINÓIS – A arte sempre sofreu esse paradigma, uma coisa é ser artista e outra coisa é ser celebridade, até ontem só existia a valorização para quem se destacava na TV, hoje é para quem se destaca na rede, digo com convicção que os grandes momentos da arte não foram celebrados pelo mercado, a arte trabalha no íntimo e por essa razão trás o sentimento pessoal à aquele que a acessa, hoje as redes sociais são um meio de acesso, mas não são o único, para se conhecer a fundo o mar não basta olhá-lo na tela, é necessário sentir a brisa e o cheiro da praia, experimentar a temperatura da água, sentir o sabor salgado que fica nos lábios após o mergulho. Nas redes acontece o mesmo, conteúdos que viralizam em sua grande maioria não exigem imersão do interexpectador, essa medição não deve ser feita de forma numérica, mas sim de forma qualitativa, o fim da arte não é lucro, apesar de o artista precisar viver dela dignamente, devemos nos render à arte, não a busca por ser celebridades.

Sabendo que a arte também é um ofício, neste plano moderno estabelecido… quais são as dicas de produção, editais, fomentos que vocês podem dar para artistas que estão começando nas redes, e se houve uma migração do espaço físico para o virtual como isso se deu?

GABI LUNA – Faça amigos! Crie conexões verdadeiras com as diferentes partes de si e se permita receber, ser afetado pelas pessoas que combinam com suas formas de pensar, seja por concordar, ou por discordar de maneira edificante. Quando falamos em conexões, muitas vezes lembramos de cabos e sistemas antes de lembrar do sistema mais complexo de conexões em rede que temos: a nossa própria existência. Pode parecer meio filosófico falar que nosso maior instrumento de fomento e produção é o corpo, são os afetos, mas vamos começar expandindo a percepção do quadro para depois olhar os detalhes.

Pegue o link deste ensaio e compartilhe com amiges que podem se interessar. Sugira a eles que compartilhem com outras pessoas. O mais importante dentro desse contexto todo que estamos vivendo é o compartilhamento de informações. Imagine a rede mundial de computadores como uma toalha de crochê. Quanto mais os pontos se conectam, quanto mais a linha (das informações) se encontra com diferentes pontos nesse crochetado, maior e mais interligada essa teia fica.

Quanto mais se expandem as transmissões entre os nossos pontos, esse mesmo que muito provavelmente você está segurando agora, quanto mais trocarmos informações seguras, de e afeto, mais próximos estaremos de raquear o sistema. Quando falo isso, por favor, não fiquem como o Tom que colocava os palitos nos olhos para vigiar o Jerry, com a cara colada na tela. Não, não tem nada a ver com isso. Para raquear o sistema é preciso saber o que está acontecendo, onde estão as oportunidades. Nesse momento você pode me dizer “É isso Gabi, quero saber onde estão as oportunidades!” então, vamos lá: Além de no mundo todo, as ideias que passam pela sua cabeça você pode desenvolver e conquistar o tão sonhado financiamento em sites como: Prosas, editaiseafins, MyClappy, mapadasartes, apoio.art e outros. Perfis no Instagram: @ponteautonomatemporaria, @emergearts, @editaisefestivaisculturais, @editaisdecultura e grupos no Facebook: Trabalhadores da Cultura Uni-vos e Oportunidades em arte e cultura.

ANDRÉ ORBACAN E CIA. OS ROUXINÓIS – Felizmente a comunidade artística ainda é bastante unida e não é difícil encontrar grupos em redes sociais que divulgam as oportunidades no meio artístico ou editais, isso é sempre muito relativo, vai depender da linguagem artística, do porte do grupo, da experiência e comprovação da mesma, mas o conselho que podemos levar é que para conquistas, é necessário união e conhecer outros grupos e artistas que atuem no mesmo segmento que você, é essencial. O site do Prosas também centraliza diversos editais e vincula sua divulgação ao cadastro, ler projetos e editais de anos anteriores ajuda a entender o fluxo da avaliação do projeto.

Vocês teriam alguma dica de trabalhos, além de seus trabalhos, que desde já falo que são incríveis, para indicar como artistas que estão produzindo de forma digital, ou apresentando pelas plataformas de redes e stream?

GABI LUNA – Muitas linguagens estão sendo desenvolvidas de formas digitais, suportes do tempo que estamos vivendo. Gosto de misturar tudo então acompanho muitos projetos construídos com linguagens híbridas entre artes visuais, sonoras, performáticas, redes e ruas. Nem preciso falar que tudo é poesia por que você já sabe né. Alguns trabalhos que acompanho e admiro são: Casa de Zuleika, Performidia, Corpo Rastreado, Leilão em Chamas, Museu Afetivo de Rua, Colectivo Lastesis, Coletivo Nós, as poetas!, os Saraus das Minas de algumas regiões e muitos outros que pulam na minha tela. Além desses, participo de muitas atividades da DELAS – Coletiva de Livre Expressão de Afetos.

ANDRÉ ORBACAN E CIA. OS ROUXINÓIS – Muitos meios estão centralizando apresentações on-line e criando programação de qualidade, Os canais de bibliotecas públicas, centros culturais e programas como Piá, Vocacional e Fábricas de Cultura disponibilizam muito conteúdo de qualidade, mas para acessar diretamente nosso conteúdo podem acessar www.youtube.com.br/ciaosrouxinois

Como vocês acham que é a captação das sensações de epifania ou catarse de obras projetadas pelas redes? Como vocês acham que as reações acontecem, e se acontecem, vocês acham que é diminuta em relação ao palco?

GABI LUNA – A vida é um espetáculo onde somos todos, ao mesmo tempo, protagonistas, palco e platéia. Na sensação da experiência de ser nesse jogo de luzes e sombras, em diferentes posições na cena, palco, platéia, camarim, e onde mais você imaginar, seguimos desempenhando todos e cada um desses papéis. Aterrando a metáfora, nós estamos constantemente produzindo conteúdos que afetam os outros, sendo afetados pelos conteúdos que as outras pessoas produzem e sendo plataformas de distribuição, percebendo o tamanho interativo desse palco possível. Nesse sentido, a quebra da próxima parede, significa necessariamente levar em consideração que não existe parede alguma. Estamos o tempo todo enredados nessa trama de afetos chamada vida e o ambiente digital esgarça ainda mais isso, quantifica, expõe. O que toca ao coração palpita a pupila, muda o tempo de rolagem, o tal do engajamento. Antes por ter gerado afeto, e depois ao se transformar em comentários, compartilhamentos, mensagens, um áudio ou outro, talvez. Sendo todos esses, inclusive, também devidamente transpostos em números na tela. Já falei na outra resposta sobre o valor de enviar um link pres amigues, né. Assim como as árvores, o palco somos nozes e o jardineiro, além de Jesus, somos nozes também. Somos os “faz tudo”, não por escolha, mas por esses estímulos e desejos que se misturam com a ansiedade e as necessidades de nós mantermos vivos e ativos no voraz contexto da sociedade capitalista. Será que “desligamos” pelo tempo necessário para agirmos alinhados com nossos corações ou só estamos reagindo a mais uma publicação?

ANDRÉ ORBACAN E CIA. OS ROUXINÓIS – Acredito que esses processos de alcance de consciência e despertar existem mas em um outro tempo, dificilmente temos o ambiente propício para esse acontecimento, já que o uso da rede é feito de forma descompromissada e compartilha a atenção com outras coisas que acontecem em volta, dificilmente encontramos uma pessoa que pare para assistir um conteúdo sem interferências externas, por essa razão a concentração necessária para acessar algumas reflexões acontecem de forma tardia, como um sopro no ouvido que vai reverberar por um tempo até ser compreendido em um momento mais tranquilo, hora de dormir ou um banho relaxante, por essa razão a resposta acaba sendo lenta e caso seja um encontro virtual como live, pode até mesmo perder-se nos pensamentos gerando uma busca futura.

Acredito que as relações aconteçam, na verdade sei, já que por vezes respondo a contatos feitos por meio de nossos meios de comunicação ou aumento de inscrições, esses caminhos demonstram as relações, mas quando apenas virtuais, essas relações ficam em um campo ethereo, uma zona enevoada que permite vermos pequenos aspectos do contato e é necessário muita convicção para prosseguir, enviar informação na rede é como um estudo astronômico que envia sinais para o espaço com esperança de se obter resposta, a maior parte dos sinais parece perdida no ciberespaço, isso não quer dizer que é, quer dizer que a resposta ainda possa estar por vir, ou até mesmo que não chegue em forma de resposta, mas pode fazer a diferença para quem a recebe, isso já é a maior razão para que seja feita,

Por fim vocês querem fazer alguma citação ou poema para deixar aqui nesses bits de coluna?

GABI LUNA – Eu comecei a responder antes de ler essa última pergunta, então sugiro que releia as aspas das respostas anteriores (risos desesperados). Para não dizer que não falei de flores, deixo aqui um versinho que publiquei na Revista Entre Poetas & Poesias: “Ser fiel à criação é criar/ Risco no qual me arrisco/ Tece ponte sobre o precipício”. Quer dizer, crie! Contribua com o seu ritmo para a criação desse algoritmo, a natureza, na sua sabedoria nos construiu fortes e criativos o suficiente para compartilharmos da nossa consciência coletiva em cada um dos suportes e tecnologias que podem ser inventados em cada tempo. Vamos democratizar a tecnologia do afeto, para que todos tenham acesso a percepção sensorial de nossas presenças nas redes, nas ruas ou em um grupo de tietes de Connecticut.

ANDRÉ ORBACAN E CIA. OS ROUXINÓIS – Deixo uma pequena história de um autor desconhecido que sempre me ajudou a prosseguir…

Estrelas-do-mar

Era uma vez um escritor que morava em uma tranquila praia, junto de uma colônia de pescadores. Todas as manhãs ele caminhava à beira do mar para se inspirar e à tarde ficava em casa escrevendo. Certo dia, caminhando na praia, ele viu um vulto que parecia dançar. Ao chegar perto, reparou que se tratava de um jovem que recolhia estrelas-do-mar da areia para, uma por uma, jogá-las novamente de volta ao oceano.

– Por que está fazendo isso? – perguntou o escritor.

– Você não vê? – explicou o jovem. – A maré está baixa e o sol está brilhando. Elas irão secar e morrer se ficarem aqui na areia.

O escritor espantou-se.

– Meu jovem, existem milhares de quilômetros de praias por este mundo afora, e centenas de milhares de estrelas-do-mar espalhadas pela praia. Que diferença faz? Você joga umas poucas de volta ao oceano. A maioria vai perecer de qualquer forma.

O jovem pegou mais uma estrela na praia, jogou de volta ao oceano e olhou para o escritor.

– Para essa aqui eu fiz a diferença.

Naquela noite o escritor não conseguiu escrever, sequer dormir. Pela manhã, voltou à praia, procurou o jovem, uniu-se a ele e, juntos, começaram a jogar estrelas-do-mar de volta ao oceano.

Sejamos, portanto, mais um dos que querem fazer do mundo um lugar melhor.

Sejamos a diferença!”

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