Jair Bolsonaro é um presidente eleito, mas está em campanha permanente pelo auto-golpe. Arregimentou uma militância miliciana que, depois, desativou. “Decidi me aposentar. Nunca mais vocês vão me ver gritando ‘mito’, ‘mito’. Hoje morreria de vergonha de fazer isso”, diz Sara Winter, destaque do grupo ‘300 do Brasil’, desarticulado após a instauração de inquérito pelo STF para apurar ataques contra os poderes constituídos.

A partir daí, Bolsonaro aprofundou a cooptação de militares com a oferta de cargos de confiança e passou a fazer campanha pelo envolvimento direto deles em questionamentos à atuação dos demais poderes e à ordem democrática. “O meu Exército”, repete ele. Com a imposição do general Braga Netto, ex-chefe da Casa Civil, como ministro da Defesa, pretende sinalizar que pode usar as Forças Armadas numa aventura golpista e passou a afirmar, explicitamente: “com as regras atuais, não haverá eleição”.

Foto: Agência Brasil

No sábado passado, em manifestação contra o sistema eleitoral, Bolsonaro disse aos presentes: “Vocês são o meu Exército”. O exército do presidente são as milícias, condição  a que ele quer reduzir os policiais, os militares e os apoiadores em geral. Ele não se cansa de arregimentar exércitos para ameaçar a democracia.

Foto: Fernando Frazao / Ag Brasil

Bolsonaro convocou a população para assistir à sua live de quinta-feira e abriu as portas do Palácio da Alvorada para a imprensa registrá-la, dizendo que provaria a ocorrência de fraudes no sistema de votação eletrônica nas eleições de 2014 e 2018. A live é que foi uma fraude: em vez de provas, ele mostrou vídeos incoerentes que circulam em grupos de WhatsApp, como o de um astrólogo que diz fazer acupuntura em árvores, e acusou os ministros do TSE de defenderem o sistema em benefício próprio.

A afronta ao Judiciário teve pronta resposta de vários ministros do STF. O seu presidente, Luiz Fux, fez uma veemente defesa da democracia no discurso de reabertura do tribunal após o recesso de julho e cobrou um encontro formal entre os presidentes dos três poderes para estabelecer um pacto de não agressão que evite uma ruptura nas relações institucionais.

O TSE, por sua vez, foi além do contundente discurso do seu presidente, Luís Roberto Barroso, e decidiu por unanimidade abrir inquérito para apurar os ataques contra o sistema eleitoral, e também apresentar, pelas acusações infundadas de fraude, uma notícia-crime contra Bolsonaro no inquérito das fake news no STF.

Com a live desastrada, Bolsonaro queria pressionar pela aprovação de uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) para restabelecer o voto impresso, de autoria da deputada Bia Kicis (PSL-DF), bolsonarista que preside a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara. A PEC deve ser rejeitada por uma comissão especial em votação prevista para esta quinta-feira (5). Antes do recesso parlamentar sua rejeição já era esperada e, agora, é dada como certa. O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), que chegou a apoiar a PEC, declarou após a fraude da live que “não vê futuro nela”.

SEMIPRESIDENCIALISMO

Lira propõe um outro golpe legislativo: instituir um sistema de governo “semipresidencialista”. Seria criado o cargo de primeiro-ministro, responsável pela composição e pelo desempenho do ministério. O presidente poderia fazer campanha enquanto o “centrão” governaria “com responsabilidade”. Seria uma espécie de ditadura do “centrão”, que continuaria  governando qualquer que fosse o presidente.

A proposta do Lira, que também dependeria de Emenda à Constituição, aguça o apetite fisiológico do baixo clero, mas suscitou reações de todos os pré-candidatos à presidência, inclusive de Bolsonaro, que disse que o semipresidencialismo é “uma bobagem”. Lira não tem nada de bobo, mas é provável que também não tenha votos suficientes para aprovar o seu próprio golpe.

Foto: Marcelo Camargo / Ag Brasil

Essa coisa nada tem a ver com o parlamentarismo que, para ser levado a sério, teria que vir acompanhado de uma ampla reforma da legislação eleitoral e do próprio Congresso. O parlamentarismo supõe um parlamento unicameral, com a agilidade necessária para formar e substituir governos, atualizando os rumos do país conforme cada conjuntura e a vontade da população. O Senado aprovaria a sua auto-extinção? A mudança do sistema de governo só seria possível se aprovada em plebiscito.

DISTRITÃO

Lira tem na manga outra proposta de excrescência legislativa que depende de emenda constitucional: o “distritão”. Assim como o semipresidencialismo não seria nem presidencialismo nem parlamentarismo, mas fisiologismo eterno, o distritão não seria nem o atual sistema proporcional com que se elegem vereadores e deputados, nem instituiria o voto distrital – que suporia a divisão do país em distritos para a eleição de cada representante. No distritão de Lira, os distritos seriam os próprios estados e os eleitos seriam os candidatos individualmente mais votados, sem considerar os votos nos partidos.

É provável que o distritão seja o pior modelo possível de sistema eleitoral, só existente em países institucionalmente obscuros e submetidos a autocracias autoritárias. Ele transforma os partidos em meros cartórios de registro de candidatos, sendo que os mandatos resultarão do mérito individual dos eleitos, que nada deverão aos partidos. Seria o sistema ideal para os candidatos que disponham de mais recursos ou sejam mais conhecidos, como os personagens midiáticos, religiosos,ou aqueles que já tenham mandatos. Isso levaria o país a um grau ainda maior de fragmentação, com auto-representantes desprovidos de qualquer orientação política.

No receituário de Lira, além do semipresidencialismo e do distritão, o financiamento privado de campanhas deve ser restabelecido, sem prejuízo dos R$ 6 bilhões aprovados na lei de diretrizes orçamentárias, dos quais Bolsonaro diz que vai vetar “o excesso” – seja lá o que isso queira dizer. As eleições municipais de 2020 foram as primeiras em que não se admitiu o financiamento privado, o que Lira não quer experimentar no próximo pleito.

CALOTE NOS PRECATÓRIOS

A notícia de que o orçamento para 2022 terá que destinar R$ 89 bilhões para o pagamento de precatórios inspirou o ministro da Economia, Paulo Guedes, a planejar outro golpe legislativo: uma PEC para autorizar o parcelamento desse pagamento. Chamou a dívida de “meteoro que deve ser destruído por um míssil”, uma imagem bem representativa do carinho que ele dedica à Constituição.

Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom / Ag Brasil

É claro que esse montante inédito agravará o déficit fiscal e que ninguém, em sã consciência, pode achar graça nisso. Mas a imagem de um objeto espacial esconde a causa efetiva do rombo, que é o trânsito em julgado de ações movidas pelos estados contra a União para corrigir valores transferidos pelo Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação)  desde governos anteriores. Porém, o caso expôs a incompetência da Advocacia Geral da União por não ter negociado, antes, a forma de pagamento com os estados.

Antes mesmo dessa “novidade”, as relações entre Bolsonaro e Guedes já estavam tensas por conta das agruras fiscais. Bolsonaro está em campanha e quer um novo Bolsa Família, obras públicas e aumento para o funcionalismo em 2022. Guedes, que jurou fidelidade ao teto orçamentário fixado na Constituição, já vinha lhe dizendo que teria que escolher apenas uma entre as três benesses pretendidas. Com o “meteoro”, não haverá nem teto, nem benesse. A campanha pela reeleição estará comprometida.

Para valer em 2022, qualquer alteração na legislação eleitoral terá que ser promulgada dentro de dois meses, um ano antes do primeiro turno. Lira quer votar, sem discussões, um projeto de lei eleitoral com mais de 800 artigos, repleto de aberrações e retrocessos, sendo difícil prever o que poderá ser aprovado nesse curto prazo. Já as propostas que dependem de Emendas à Constituição, que são casuísticas, não interessam à sociedade, dividem os partidos do “centrão” e dificilmente alcançarão os 60% dos votos na Câmara e no Senado, necessários para a sua aprovação.

O mesmo se pode dizer da PEC que será enviada ao Congresso para parcelar a dívida dos precatórios, tentando devolver o meteoro para o espaço sideral. Se fosse aprovada, seria uma pedalada fiscal muito mais grave do que a que deu gancho para o impeachment da Dilma Rousseff. Por isso, não se assombre com o agravamento, nos próximos dias, da loucura e do desespero do Bolsonaro, já tão evidentes na live fraudulenta.