Obra Retirantes de Candido Portinari

Texto de Thiago Lima,  coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Fome e Relações Internacionais (FomeRI)

Permitir e expor o povo à morte, às centenas de milhares, pelo método da Fome, não é algo inventado pelo governo Bolsonaro. Foi praticado pelo Império. Foi praticado pela República. Foi praticado pelas Ditaduras. Mas a falta desta memória viva, candente, impede que haja uma estrutura permanente para combater este tipo de vilania e para promover a justiça social

Há quase dois meses o  Brasil atingiu a terrível marca de 500 mil mortos pela Covid-19. Como um enunciado deste tipo pode dar a impressão de que as fatalidades são decorrentes do encontro natural entre um vírus e corpos que – uns mais que outros – são mais vulneráveis a ele, resultando em óbitos ou sequelas inevitáveis, é sempre importante lembrar um lema anunciado por Mike Ryan, da Organização Mundial da Saúde, em 2019: o vírus a ataca as pessoas; a pandemia explora as vulnerabilidades das sociedades. Portanto, a tragédia da pandemia está sob direta responsabilidade e direção do governo federal de Jair Bolsonaro e seus apoiadores.

Neste contexto, uma parte da sociedade se posiciona numa luta que não é, nada mais, nada menos, do que uma defesa da civilização ou da cidadania contra este governo que objetiva a barbárie. E, ao denunciarem o fomento à pandemia como decisão de política pública, é comum frisar-se que esta é a maior crise de saúde pública da história do Brasil. Mas não é, pelo menos até o momento.

Entre 1877 e 1879, cerca de 500 mil brasileiros morreram de Fome apenas no Nordeste do Brasil. E, da década de 1890 ao começo dos 1900s, cerca de 1 milhão de nordestinos e nordestinas padeceram de Fome. No último quarto do XIX, estima-se que até 2 milhões de pessoas no Nordeste podem ter morrido de Fome (1).

O fato de esses dados não estarem na ponta de nossa língua é revelador. Revelador do projeto de amnésia social, de silenciamento, que historicamente é praticado em torno das mazelas da Fome e, especialmente, da Fome do campesinato, grande parte do qual migrou para compor as favelas famintas de hoje. Em determinado momento da CPI da Pandemia, o relator Renan Calheiros buscou comparar o cenário atual com tragédias anteriores e o parâmetro escolhido foi a Guerra do Paraguai, o maior conflito militar da História do Brasil. Neste episódio, que resultou em cerca de 440 mil mortos no total, 100 mil foram de brasileiros. Notem que, de certo modo, é sintomático que um senador nordestino não enfatize que as principais tragédias, em termos de mortalidade, ocorreram no Nordeste. O Brasil é, aliás, o único país latino-americano que aparece na lista histórica das ‘Grandes Fomes’ do Mundo – aquelas que vitimam mais de 100 mil pessoas – elaborada pelo estudioso Alex de Waal, números que correspondem somente ao Nordeste. Certamente, não é algo menor. Como é possível que estes marcos de nossa trajetória não estejam a olhos vistos a todo o tempo e enquanto a Fome aumenta intensamente durante a pandemia?

Se o coronavírus ataca o corpo e a pandemia explora as vulnerabilidades da sociedade, o mesmo pode ser dito em relação à Fome. Se desde os primórdios a humanidade trava uma luta incessante contra a Fome, é possível afirmar que, há séculos, algumas sociedades e governos desenvolveram métodos para impedir que os tempos mais duros de carestia ceifassem tantas vidas e espalhassem tanta destruição em decorrência das moléstias associadas ao processo de grave debilitação do corpo por carência aguda de alimentos e nutrientes. Mike Davis argumenta, por exemplo, que antes da invasão britânica à Índia e à China, estas duas civilizações milenares contavam com princípios e políticas públicas estabelecidos e eficientes para se prevenirem contra as Fomes Coletivas agudas e para intervirem quando alguma intempérie abatesse determinada parte do território. Exemplos das estratégias governamentais eram: Estoques governamentais de comida; Redistribuição (transporte) de estoques ao longo do território em caso de carestia; Distribuição de comida sem contrapartida de trabalho; Suspensão de impostos ao campesinato; Garantia da posse de terra em proporção adequada para a agricultura de subsistência; Controle rigoroso de preços e punição a comerciantes desonestos; economias agrícolas isoladas do mercado internacional, para não sofrerem choques de preço ou de abastecimento.

Estes elementos, em conjunto, atuavam como uma rede de segurança que impedia um dos principais vetores de morte durante as Fomes Coletivas: a ocorrência de epidemias. A compreensão desse ponto é de fundamental relevância, inclusive para os dias de hoje. Em contextos de Fome, a mortalidade não está propriamente na inanição, mas sim em doenças que acometem os corpos vulneráveis, desnutridos. Muitas dessas doenças são relativamente simples e não se instalariam ou causariam maiores danos em corpos saudáveis. Porém, em situações de desnutrição grave, os seres humanos ficam muito mais vulneráveis a enfermidades como cólera, tuberculose, diarreia, sarampo, varíola, entre outras chagas. Nesta perspectiva, a eclosão de uma epidemia virótica em campos de pessoas famintas é um dos maiores pesadelos para a saúde coletiva e isto era evitado por meio de políticas governamentais. Acontece que, com a invasão dos colonizadores, houve a destruição da autonomia governamental local como forma de prostrar aqueles povos – inclusive pela via da Fome – e de viabilizar a exploração perniciosa de seus recursos humanos e ecológicos. É neste sentido, e em outros, que Josué de Castro (2) associava diretamente Fome e Colonialismo/Imperialismo. Em outros termos, a Fome era resultado da ação e da omissão dolosa de governos, locais & estrangeiros, que usavam os instrumentos do Estado para manter enormes contingentes populacionais permanentemente famintos, vulneráveis à Fome.

Como argumentou Josué de Castro, a Fome não era obra do acaso e sim sintoma avançado de perversidade social. No caso do Nordeste, embora a Seca tenha sido impiedosa e extensa durante o último quarto do século XIX, sabia-se que era preciso construir defesas hídricas e outras políticas de resiliência décadas antes disso. Contudo, o modelo agrário exportador, a marginalização do campesinato, a escravidão e o racismo estrutural, entre outros fatores, jamais permitiram o combate estrutural à fome e à seca.

A conjunção de Fome Coletiva e epidemias foi justamente um dos maiores agravantes para a imensa mortalidade de nordestinas e nordestinos no século XIX e depois. Ao migrarem dos sertões para as cidades maiores, sobretudo para as capitais litorâneas, estas populações extremamente vulneráveis acabavam se encontrando em locais sem as mínimas condições sanitárias, de abrigo, e comendo restos ou coisas podres oferecidas como esmolas, inclusive pelos governos. Peço licença para sugerir a quem leia imaginar o seguinte quadro: centenas de famílias famélicas e exaustas, após dias de caminhada sob o sol excruciante do Nordeste, finalmente aglomeradas em acampamentos improvisados, com diversas pessoas sofrendo com diarreia, e sem nenhum banheiro ou instalação razoavelmente adequada – humanizada – para sobreviver nestas condições.

Neste ponto, é possível que alguns leitores entendam essa imagem como apelativa e que busquem tirar os olhos deste texto. Virar a página. Silenciar a questão. Esta possibilidade é parte daquilo que quero tratar neste artigo. É a incapacidade, por recalque ou por projeto, que nossa sociedade tem de escancarar a história de Fome – e de epidemias associadas – que trança a trajetória do Brasil.

Permitir e expor o povo à morte, às centenas de milhares, pelo método da Fome, não é algo inventado pelo governo Bolsonaro. Foi praticado pelo Império. Foi praticado pela República. Foi praticado pelas Ditaduras. Mas a falta desta memória viva, candente, impede que haja uma estrutura permanente para combater este tipo de vilania e de promover a justiça social. Notem que o seguinte depoimento da cientista Natália Pasternak na CPI da Pandemia teve repercussão: “Nós, judeus, já passamos por isso antes. E a nossa meta, como judeus, e como filhos e netos do holocausto, é nunca esquecer, para que governos autoritários nunca possam colocar em risco a saúde e a vida de suas populações”.

E nós, brasileiros, que no passado e no presente passamos pela Fome, por que esquecemos que sucessivos governos impuseram ou toleraram a Fome mesmo cientes dos riscos à nossa saúde e à nossa vida? Por que não militamos contra esse esquecimento? Suponho que todos os leitores e leitoras deste texto conhecem algo da história dos Campos de Concentração nazistas. Há muitos filmes, fotos e livros sobre o assunto, de modo que os Campos de Concentração nazistas se tornaram o exemplo paradigmático do crime governamental hediondo, do Genocídio. Aposto, por outro lado, que muitos dos que leem este artigo não conhecem a história dos Campos de Concentração da Fome, instalados sob a República e sob a Ditadura, no Ceará, entre 1915 e 1932. (3) Por que aglomerar mais de 100 mil pessoas em situação famélica, em campos sem as mínimas condições sanitárias e infestados de varíola, não é o paradigma de crime governamental hediondo no Brasil? Este paradigma seria útil para avaliarmos a aglomeração de trabalhadores nos transportes coletivos ou nas favelas em plena pandemia?

Portanto, assim como é imperativo que se comece desde já a planejar a memorialização dos mortos e sequelados pela pandemia de Covid-19, para que outros governos jamais repitam o que este tem feito, é fundamental que se construa um projeto nacional de memorialização da Fome como uma forma de se manter a sociedade alerta e combativa contra este flagelo. Mas, acima de tudo, será preciso construir um pacto político cujo objetivo final não seja somente criar as condições para que as pessoas se alimentem três vezes por dia. Precisamos ser mais ousados e defender um pacto político que exclua a Fome como um princípio de organização social.

Para isso, em algum momento este País precisará olhar para a imposição histórica e política da Fome, principalmente sobre a imposição que dela se faz sobre as populações mais vulneráveis – mormente os filhos e filhas de camponeses, indígenas e negros. Em algum momento será preciso pedir perdão aos mortos, sequelados e às suas famílias. Em algum momento será preciso prestar homenagens àqueles que venceram a Fome. Em algum momento precisaremos decidir enfrentar o bovarismo brasileiro (4) e abrir a caixa-preta da Fome, olhar de frente para o monstro e, como Nação, dizer: Basta! A Fome não será mais tolerada neste país!

Notas


(1) Para um panorama das Grandes Fomes Coletivas do Brasil em comparação internacional, ver DAVIS, Mike. Late Victorian Holocausts. El Niño famines and the making of the Third World. London, New York: Verso, 2001 (Há uma versão em português pela Editora Record), e DE WAAL, Alex. Mass starvation: the history and future of famine. Polity Press, 2018.

(2) Para uma biografia intelectual e política de Josué de Castro, ver MENDONÇA, Marina Gusmão de. O combatente da fome: Josué de Castro: 1930-1973. Bauru: Canal 5, 2021. 320p.

(3) Ver, por exemplo, NEVES, Frederico de Castro. O Curral dos Bárbaros: os Campos de Concentração no Ceará (1915 e 1932). Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 15, n. 29, p.93-122, jan. 1995.

(4) Ver o episódio do podcast Ilustríssima Conversa “Brasil sonha em ser outro, mas sem mudar nada, diz Maria Rita Kehl” em https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2019/01/brasil-sonha-em-ser-outro-mas-sem-mudar-nada-diz-maria-rita-kehl.shtml

 

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