Por Bruno Monteiro

Muito tem se falado sobre empatia nesses tempos nebulosos que vivemos. Alguns acontecimentos, no entanto, apontam para um abismo entre o discurso e a prática.

O governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, acaba de assumir sua homossexualidade em rede nacional. Quando li a notícia, minha primeira reação foi elogiar a atitude e admirar sua coragem. O que ele fez não é fácil para nenhuma pessoa. Menos ainda para um jovem de 36 anos que governa o estado em que nasci, que se tornou muito conservador nos últimos anos e que, mesmo com tudo que tem acontecido, segue dando elevados índices de aprovação ao atual presidente, a maior expressão do preconceito que se tem notícia. Mais uma evidência de que ele fez história com seu ato.

Para minha surpresa, no entanto, logo vi o governador no centro de um tribunal de inquisição dos setores progressistas. Nos grupos de esquerda e nas redes de muitas pessoas que admiro, logo começaram a pipocar os “mas”. “Mas ele é de direita”. “Mas votou no Bolsonaro.” “Mas prejudica o funcionalismo”. “Mas apoia as privatizações”. “Mas fez uma fala politicamente incorreta”. “Mas todo mundo já sabia”. “Mas ele é homem, branco e rico.” “Mas fez isso só pra se promover”. Não parou por aí. Teve ainda críticas à forma, ao momento, ao programa em que ele revelou sua sexualidade e até quem tenha corrido para tirar políticos de esquerda do armário – algo bem desrespeitoso, por sinal – para tentar minimizar o gesto de Eduardo Leite.

Me incomoda muito essa busca pela perfeição, que acaba sempre idealizando um modelo como certo e não consegue reconhecer gestos de adversários. Não há, pelo menos eu desconheço, um código que estabeleça como cada pessoa deve se posicionar ao assumir publicamente sua sexualidade. Muito menos que obrigue as pessoas a falarem de sua vida pessoal. Parece, no entanto, que se não for como gostaríamos, não serve. E isso me preocupa. Porque a intolerância não acontece só de lá pra cá. E o extremismo mais afasta do que agrega.

Sim, o governador do RS é de direita e declarou voto em Bolsonaro. Sim, desde que ele foi eleito prefeito de Pelotas, em 2012, muito se fala sobre sua suposta homossexualidade. Sim, ele busca um espaço na política nacional e esse gesto o diferencia de muitos, especialmente no seu campo político. Isso tudo, porém, não reduz a grandeza do seu gesto. Nem dá o direito a ninguém, por ser de esquerda, de achar que só seria perfeito se pensasse e agisse como gostamos ou se pontuar em um check list do que seria o desejável. Quantos políticos e políticas de esquerda mantém sua orientação sexual em segredo? E quantos artistas, jornalistas, esportistas, personalidades? Eu poderia citar alguns nomes. Não me cabe fazer isso porque não tenho nada a ver com a vida dos outros. E o gesto de “se assumir” é algo absolutamente individual. Até porque cada um tem o seu tempo e as suas questões pessoais. O peso do preconceito, das piadinhas, da exclusão, das desilusões e da violência é sentido por cada um, no seu íntimo, de forma individual. Eduardo Leite sabe bem disso. Quando se afastou do presidente – e agora, novamente – foi logo atacado com declarações homofóbicas. Fico pensando como foi para ele lidar com isso na sua família e no ambiente político que o cerca, sabidamente mais refratário a esses temas. Ou será que ele só mereceria solidariedade com essas questões se fosse de esquerda?

Eu quero falar de respeito. Por mais que esse país seja o lugar onde a vida dos outros sempre chame mais a atenção – seja a dos vizinhos, dos parentes, dos artistas ou de quem está no BBB – é importante compreender mais do que julgar. Isso não me faz um apoiador do Eduardo Leite. Continuarei em lado oposto ao dele na política. Provavelmente, ele nunca terá o meu voto. Reconhecer o gesto dele está longe de apoiar suas ideias e o que ele representa. Cobrar por suas práticas políticas, inclusive em defesa da população LGBTQIA+ é imperativo, independente da sua orientação sexual. Essa é uma característica essencial do Estado democrático onde ainda vivemos e espero que continuemos a viver.

Sobre um possível uso eleitoral, é cedo para avaliar. Tenho dúvidas de o quanto alguém “ganha” e “perde” com esse gesto, sobretudo num tempo de tanto ódio. Sobretudo no Rio Grande do Sul. Sobretudo após um presidente ter sido eleito inventando tantas mentiras de cunho sexual, que assustaram uma parcela significativa da população. Se houve cálculo político, também considero um avanço que este tema possa deixar de ser um tabu para parcela da direita brasileira e que a eleição de 2022 seja disputada a partir de propostas, não da vida íntima dos candidatos. Quatro anos após a malfadada “mamadeira de piroca”, será uma evolução.

É sempre bom lembrar ainda que, após Bolsonaro, as coisas não são mais as mesmas. Houve uma mudança no eixo político nacional. Vide o encontro de Lula com FHC e a foto na qual importantes lideranças de esquerda e de direita aparecem juntas defendendo o impeachment do presidente. Compreender esse momento é condição para superarmos as trevas. Não será somente “entre os nossos” que conseguiremos sair dessa.

E só um lembrete: Bolsonaro recebeu o voto da maioria dos brasileiros e brasileiras, inclusive de 29% da população LGBTQIA+, segundo o Datafolha. Derrotá-lo no ano que vem só será viável conquistando o apoio de muitos e muitas que nele acreditaram em 2018 e depois se arrependeram. E isso só acontecerá com diálogo, acolhida e respeito. Não será apontando o dedo e nem julgando.

Só avançaremos se melhorarmos. E conseguirmos ser mais empáticos com os diferentes ao invés de árbitros do comportamento alheio ou meros “canceladores”.

E ao governador Eduardo Leite, reafirmo meu respeito pelo seu corajoso e significativo gesto. Que ele seja feliz. E que sua atitude encoraje muitos e muitas a viverem seus amores com liberdade, acima de qualquer julgamento.

Bruno Monteiro é jornalista e produtor cultural

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