Nesta semana, estará na pauta do Supremo Tribunal Federal (STF) o caso da comunidade indígena Guyraroká, do povo Guarani Kaiowá, localizado no estado de Mato Grosso do Sul. O processo é paradigmático, pois retrata, de forma inusitada, a história de um povo que foi expulso de sua terra ancestral, impactado pelo colonialismo interno e pela frente de expansão agropastoril. Tudo isso aliado à (co)omissão estatal e de seus agentes que, em vez de proteger o interesse indígena, atuaram em estreita articulação com os fazendeiros da região a fim de promover a retirada dos indígenas de suas terras e de garantir o sucesso do empreendimento agrogenocida.

O caso retrata de igual modo o fenômeno da judicialização das demarcações de terras indígenas no país. Após o início do procedimento de reconhecimento formal da ocupação tradicional pela Fundação Nacional do Índio (Funai), constituiu-se o grupo de trabalho, publicando-se os respectivos estudos antropológicos e, consequentemente, a portaria declaratória, por meio de expediente do Ministério da Justiça. Em suma, seguiu-se à risca o rito legal previsto no decreto 1.775/96. O fazendeiro Avelino Antonio Donatti, ex-posseiro da fazenda Cana Verde, ingressou com mandado de segurança no Superior Tribunal de Justiça (STJ) com o intuito de anular a portaria declaratória. No entanto, seguindo jurisprudência consolidada, onde se reafirma que o mandado de segurança não é via processual adequada para o questionamento de processo demarcatório, o STJ rejeitou a ação. Irresignado, novamente o fazendeiro manejou recurso ordinário e levou o caso ao STF.

A terra indígena Guyraroká está localizada no sul de Mato Grosso do Sul, nas bacias dos “córregos Ypytã e Caracu, abrangendo parte do curso de riachos secundários, ou cabeceiras, formadores desses córregos, como o Ypo’i (água estreita), o Chagua Yry (richo da pitanga, por causa da grande concentração dessa planta em suas margens) e o Lucero” (Pereira, 2002, p. 6). Conforme disposto no estudo antropológico da Funai, realizado pelo antropólogo Levi Marques Pereira, “Guyraroká é o nome religioso como os Kaiowá denominam o local e Ypytã é o nome do córrego que corta o interior da Terra Indígena” (p. 5).

É uma comunidade indígena que detém a posse consolidada, com residências tradicionais, casa de reza e escola, desde a retomada[1] feita pela comunidade no ano de 2000. Muitos lugares antigos que eram utilizados para atividades produtivas, como caça, pesca e coleta, não existem mais. Foram destruídos pelo avanço do agronegócio no estado. Hoje, a comunidade se encontra confinada, cercada pelas fazendas de gado e soja. No que tange ao processo demarcatório, regulado pelo decreto n. 1.775/96, o mesmo está em estágio avançado, pois teve o estudo de identificação e delimitação aprovado pela Funai (Portaria n. 76/2004) e, posteriormente, expediu-se a Portaria Declaratória n. 3.219/2009, pelo Ministério da Justiça, que reconheceu a área como de ocupação tradicional, nos termo do artigo 231 da Constituição Federal de 1988.

Em 2014, a comunidade indígena foi surpreendida pela decisão da 2º Turma do STF, que acatou um recurso judicial do fazendeiro, e declarou nulo o processo demarcatório. Este é um caso clássico de processo que tramitou na justiça sem a participação da comunidade indígena. A Suprema Corte brasileira decidiu sem nunca tem oportunizado aos indígenas o direito de falar nos autos, num claro gesto de negativa de acesso à justiça, ou seja, de subjugação jurídica. Resquício da tutela que perdurou durante séculos no país, tratando os indígenas como juridicamente incapazes, esse imaginário está presente na máquina administrativa, na qual se pode decidir o futuro dos indígenas, sem ouvi-los.

Antecedentes históricos: desterritorialização, confinamento e expulsão dos indígenas

Percepção colonial – no mundo colonial, os Kaiowá eram identificados como “infiéis” e culturalmente “bárbaros”, pois se refugiavam nas matas de difícil acesso, com o intuito de fugir do processo de cristianização levado a cabo pelos jesuítas e do contato direto com os colonizadores (Meliá, Grünberg & Grünberg, 1976, p. 155 apud Pereira, 2002, p. 21).

Período imperial – até o acontecimento da guerra do Paraguai (1864 – 1870), os Kaiowá mantinham domínio pleno de todo o território que atualmente corresponde à região sul de Mato Grosso do Sul. Transitavam livremente e tinham o controle do seu território tradicional, sendo que a presença de não índios na região era esporádica. Após a guerra do Paraguai, este cenário territorial se transformou sobremaneira, tanto em relação aos Guarani Kaiowá, quanto aos Terena e Kinikinau, todos povos habitantes de Mato Grosso do Sul.[2] Com o fim da guerra, soldados e comerciantes desmobilizados, incentivados pela política de colonização do interior do Brasil, se fixaram no local. Neste período, a Companhia Matte Larangeira também se instalou na região, provocando uma profunda transformação social nas comunidades indígenas, tendo em vista que o seu interesse estava voltado para as atividades extrativas da erva mate, o que culminou na exploração da mão de obra de indígenas kaiowá.[3]

Ocupação agropastoril em Guyraroká – a partir da década de 1940, a terra que era ocupada pela comunidade deu lugar a fazendas. Em virtude do fim do monopólio da Companhia Matte Larangeira, as terras voltaram ao domínio da União, que passou a concedê-las a particulares (fazendeiros e colonos), incentivados pela política de integração do governo Vargas. Ao mesmo tempo, os Kaiowá passaram a ser expulsos de suas terras e confinados nas pequenas reservadas indígenas criadas pelo Serviço de Proteção aos Índios (SPI).[4]

O esparramo indígena (década de 1940) – informações levantadas pelo antropólogo Levi Marques Pereira dão conta de que, até a década de 1940, havia uma presença expressiva de Kaiowá habitando o local. Entretanto, logo começaram a sofrer pressão dos fazendeiros que chegavam à região para instalar fazendas. O relatório da Funai trás informações do líder indígena Papito Vilharva, que nasceu no Guyraroká, às margens do riacho Koguery. O ancião relembrou que, naquele período, o primeiro homem branco que apareceu na região com intuito de ocupá-la foi um senhor apelidado de Alemão. Depois, vieram os senhores conhecidos como Antônio Afram e Albuquerque. Se no início pareciam amistosos, logo passaram a dar tiros sobre as casas da comunidade, cujas balas chegaram a atingir um indígena. Assim começou o “esparramo” dos indígenas (Pereira, 2002, p. 38-39).

Violação estatal (atuação do SPI e Funai) – o traço marcante da atuação das agências estatais não é apenas a omissão em relação aos direitos indígenas, mas, sobretudo, os atos comissivos que violaram efetivamente os direitos dos Kaiowá. Além de serem omissas na proteção do interesse indígena, também atuaram como verdadeiros braços estatais para beneficiar a implantação do projeto agropastoril na região, em detrimento das terras indígenas. O SPI até hoje é conhecido entre os velhos Kaiowá como “serviço de perseguição ao índio”. O antropólogo Levi Marques Pereira (2002, p. 28) recuperou um documento tornado público pelo historiador Antonio Brand (1997, p. 104), o Comunicado de Serviço n. 211/9/DR/81, no qual o delegado da Funai determina o “deslocamento de um motorista e de um caminhão por um período de três dias para o P.I de Caarapó, objetivando efetuar o transporte de índios que desejam regressar ao P.I, provenientes de fazendas circunvizinhas”. Em outro documento, Ofício 046/79, “o então chefe do posto do P.I. Dourados solicita a cedência de uma Kombi para atender aos vários problemas que surgem com indígenas desaldeados, principalmente no transporte destes índios no retorno à aldeia” (Brand, 1997, p. 105).

Política de discriminação (distinção entre índios aldeados e não aldeados) – Outra marca da atuação das agências estatais foi a adoção de uma política de distinção entre indígenas aldeados e não aldeados. Para o SPI, os indígenas desaldeados estavam resistindo ao confinamento nas reservas criadas, e insistiam em permanecer em suas terras originárias. Eles eram tidos como um problema para o governo, mas também para os fazendeiros da região, que estavam instalando seus empreendimentos.

Expulsão dos Kaiowá de Guyraroká – Merece atenção a análise desenvolvida pelo antropólogo Levi Marques Pereira (2002, p. 30), quando aponta três fatores que culminaram na expulsão dos Kaiowá do seu território originário Guyraroká, sendo: a) a introdução de doenças (surtos epidêmicos de sarampo, catapora, varíola, gripes e tuberculose, no início do século passado); b) a violência física; c) violência simbólica. Chamamos atenção para a violência física que se materializou pelas pressões e ameaças dos fazendeiros para que os indígenas deixassem a terra.

Judicialização da demarcação

Como apontado, o caso retrata de modo exemplar o fenômeno da judicialização das demarcações das terras indígenas no país. O art. 5, inciso XXXV da Constituição Federal, que prevê o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, é invocado pelos fazendeiros para se questionar no judiciário um processo que deveria ser conduzido na via administrativa, conforme os preceitos do decreto 1.775/96. Mas, como visto, parece-nos que este princípio só vale para os ruralistas, uma vez que foi negado à comunidade indígena o direito elementar de participar de um processo que definirá o destino de uma coletividade.

O processo se origina quando o fazendeiro Avelino Antonio Donatti ingressou com mandado de segurança no STJ, buscando anular a portaria declaratória n. 3.219/2009, do Ministério da Justiça, que declarou a TI Guyraroká como de ocupação tradicional dos Kaiowá. Ao analisar o caso, o STJ extinguiu o processo, pois aplicou jurisprudência consolidada que preceitua que o mandado de segurança não é via processual adequada para o questionamento da demarcação de terra indígena.

Irresignado, o fazendeiro recorreu ao STF (RMS 29.087), ocasião em que o ministro relator Ricardo Lewandowski seguiu o entendimento do STJ e rejeitou o recurso. Importante consignar que a jurisprudência do STF se baseia em um vetusto e majoritário entendimento, segundo o qual mandado de segurança não é via adequada para discutir a demarcação de terras indígenas, haja visto que a complexidade da questão demanda dilação probatória. Nesse sentido, vide, a título de exemplos, 30 precedentes: Supremo Tribunal Federal. MS 28.555 (2017), MS 28.567 (2017), MS 33.821 (2016), RMS 29.193 (2015), MS 31.245 AgR (2015), RMS 27.255 (2015), MS 31.100 (2014), MS 25.483 (2007), MS 21.660 (2006), RMS 24.531 (2005), MS 24.015 (2005), RMS 22.913 (2004), MS 24.566 (2004), MS 21.891 (2004), RMS 24.532 (2004), MS 21.891 (2003), MS 21.892 (2003), MS 1.892 (2001), MS 21.649 (2000), MS 21.575 (1994), MS 20.751 (1988), MS 20.722 (1988), MS 20.723 (1988), MS 20.575 (1986), MS 20.556 (1986), MS 20.515 (1986), MS 20.453 (1984), MS 20.235 (1980), MS 20.234 (1980), MS 20.215 (1980).[5]

Contudo, o ministro Gilmar Mendes abriu divergência, sendo seguido pelos ministros Celso de Mello e Carmen Lúcia. Com esse placar, a demarcação da terra foi anulada, aplicando-se a tese do marco temporal, sem sequer ouvir a comunidade indígena. Os indígenas solicitaram ingresso no feito, mas foram barrados por decisão do ministro Gilmar Mendes, que aplicou o regime tutelar, que vigorava antes de 1988, afastando a possibilidade da participação indígena. À época, o então procurador-geral da República, Rodrigo Janot, entrou com embargos de declaração com pedido de concessão de efeitos modificativos contra decisão da 2ª Turma do STF. O Ministério Público Federal (MPF) igualmente apontou omissão e contradição no julgamento pela não participação da comunidade indígena.

O processo transitou em julgado e agora está posto o julgamento da ação rescisória,[6] protocolada pela comunidade indígena no dia 19 de abril de 2018. Em discussão, a comunidade pede a anulação da decisão da segunda turma do STF, tendo em vista que o processo transcorreu sem participação, ou seja, sem a citação dos principais interessados, que são os indígenas.

Nota-se que a decisão que anulou a demarcação da terra indígena violou frontalmente norma jurídica de proteção aos povos indígenas. Primeiro, no que diz respeito ao princípio do acesso à justiça. Até a Constituição de 1988, vigorou no Brasil o regime tutelar dos indígenas, que eram representados pela Funai. Entretanto, esse paradigma tutelar e integracionista foi superado pela atual ordem jurídica, pois o artigo 232 da Constituição reconheceu a legitimidade dos indígenas, de suas comunidades e organizações para estarem em juízo em defesa de seus direitos e interesses. Outro aspecto processual diz respeito à obrigatoriedade de citação das comunidades indígenas para integrarem os processos como litisconsórcio passivo necessário nas demandas sobre terras indígenas (ver precedente ACO 1.100, relatoria do ministro Edson Fachin).[7]

Direito ao acesso à justiça

O art. 5º da Constituição Federal da República Federativa do Brasil de 1988, inciso XXXV, assegura a inafastabilidade da jurisdição ou do acesso à Justiça, ao preceituar que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. Tem-se aí o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional ou, ainda, o princípio do acesso à justiça.

Importa salientar ainda que a palavra “acesso” evoca a ideia de ingresso, de entrada. Mas, também, traduz o sentido da possibilidade de se alcançar algo. “Acesso à Justiça”, no plano do direito, representa esse segundo sentido, ou seja, a possibilidade de alcançar algo, que é justamente o valor “Justiça”.[8] Com assento na Constituição, é uma norma-princípio posta à disposição daqueles que veem seus direitos violados ou ameaçados. O acesso à justiça deve ser interpretado à luz do contexto pluriétnico presente no Brasil, que possui mais de 305 povos, falantes de mais de 274 línguas indígenas. Cada qual com a sua respectiva organização social e modo próprio de ver e entender o mundo.  Ruiz (2018) aponta que o acesso à justiça pode ser visto sob três dimensões, a saber: (a) pela via dos meios alternativos de solução dos conflitos de interesses, (b) pela via jurisdicional (jurisdição estatal), no exercício da jurisdição de direito, e (c) pela via das Políticas Públicas.

No caso dos Kaiowá, nenhuma dessas dimensões fora observada, pois, ao mesmo tempo que se opera no Brasil um sistema jurídico positivado, que coloca à margem o sistema de justiça próprio das comunidades indígenas, este mesmo Leviatã é omisso em implementar a política pública outorgada no texto constitucional, qual seja, a conclusão da demarcação das terras indígenas e sua efetiva proteção.

E mesmo quando as comunidades tentam acessar o poder judiciário, veem-se barradas. O processo de Guyraroká reflete a realidade de muitas comunidades indígenas no Brasil, que querem ter o direito de serem ouvidas, de participar das decisões que lhes afetam e oportunizar ao judiciário o conhecimento da ótica indígena acerca da demanda posta em mesa para julgamento.

Direito originário ao território tradicional

No mérito, o processo de Guyraroká versa sobre a aplicação do marco temporal. Essa tese jurídica pretende restringir os direitos dos povos indígenas às terras que estavam ocupando na data da promulgação da Constituição, qual seja, 5 de outubro de 1988. Mais uma fez, o mesmo Estado que foi omisso e conivente com as violações perpetradas contra os Kaiowá, agora se vale de uma retórica jurídica que desconsidera o valor de justiça para negar o direito ancestral indígena. É preciso vaticinar que o constituinte originário foi categórico ao preceituar que o direito dos povos indígenas às suas terras tradicionalmente ocupadas é originário, e logo anterior a qualquer outro direito (art. 231, CF/88). “Essa a razão de a carta Magna havê-lo chamado de ‘originário’, a traduzir um direito mais antigo do que qualquer outro, de maneira a preponderar sobre pretensos direitos adquiridos, mesmo os materializados em escrituras públicas ou títulos de legitimação de posse em favor de não-índios” (Pet 3388 / RR – Rel.  Min. Carlos Ayres Britto, 2009).

Vale lembrar que a tese jurídica do marco temporal não nasceu exatamente no âmbito do Poder Judiciário. Antes do julgamento do caso Raposa Serra do Sol (2009), esta intepretação jurídica era rotineiramente suscitada nos discursos parlamentares e de juristas que advogam para os interesses do capital. Cito, por exemplo, o discurso do deputado federal Gervásio Silva (PFL-SC), proferido no dia 20 de outubro de 2005, intitulado “Acirramento de conflitos fundiários pela política de demarcação de terras indígenas da FUNAI no Estado”, discorreu: “[…] e é bom que se repita: a Constituição Federal de 1988 não fala em posse imemorial, mas em terras tradicionalmente ocupadas no presente e de habitação permanente […] à identificação de uma terra indígena, está completamente divorciado do entendimento atual do STF, externado pela Súmula 650-STF, que consolidou a jurisprudência sobre o reconhecimento de terras indígenas […] como todos sabem, esta súmula não reconhece a doutrina de posse imemorial e consagra o princípio jurídico da ocupação atual e permanente das terras tradicionais de ocupação indígena. Explicando que os supostos direitos da suposta comunidade indígena de Araçá só mereciam o abrigo constitucional se os índios lá estivessem em 05 de outubro de 1988”.

Ao que se percebe, essa interpretação restritiva aos direitos dos povos indígenas, tal como se afigura na defesa do “marco temporal”, nasceu justamente de uma leitura equivocada feita a partir da súmula 650 do STF, que preceitua: “[…] os incisos I e XI do art. 20 da Constituição Federal não alcançam terras de aldeamentos extintos, ainda que ocupadas por indígenas em passado remoto”. Entretanto, é preciso fazer uma leitura da súmula em conexão com a matéria posta a julgamento e que resultou na edição do citado verbete. O precedente da súmula 650 do STF é o RE 219.983, tendo em vista o interesse da União na solução de ações de usucapião em terras situadas nos Municípios de Guarulhos e de Santo André, no estado de São Paulo, conforme disposto no artigo 1º, alínea h, do Decreto-Lei 9.760/1946. Como bem salienta o jurista Roberto Lemos dos Santos Filho, “é necessário que os operadores do direito atentem ao fato de que aplicação da Súmula 650-STF deve ser realizada aos casos específicos a que ela tem relação, vale dizer, usucapião de terras indígenas a que se refere o Decreto-Lei 9.760/1946”.

Ainda no âmbito do legislativo, cabe citar o Projeto de Lei (PL) 490/2007, de autoria do Dep. Homero Pereira, que tem por objetivo alterar a Lei n° 6.001, de 19 de dezembro de 1973, também conhecida como Estatuto do Índio, propondo que as terras indígenas sejam demarcadas por lei. Isto é, que a demarcação passe pelo crivo do legislativo. O autor justifica a importância da proposição evidenciando que a “demarcação das terras indígenas extrapola os limites de competência da FUNAI, pois interfere em direitos individuais, em questões relacionadas com a política de segurança nacional na faixa de fronteiras, política ambiental e assuntos de interesse dos Estados da Federação e outros relacionados com a exploração de recursos hídricos e minerais”. Em 15 de maio de 2018, o Dep. Jerônimo Goergen apresentou parecer nesta proposição legislativa no âmbito da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, propondo a instituição do marco temporal por meio de lei.

Nota-se que é uma clara iniciativa da bancada ruralista implementar o marco temporal pela via legislativa, como uma espécie de retorno ao nicho de onde nasceu, mas agora com precedentes judiciais. No âmbito de discussão da tramitação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215/2000, verifica-se de forma reincidente que os parlamentares se valem do argumento do marco temporal para capitanear apoio à aprovação dessa proposta.

Entretanto, foi no âmbito do judiciário que o marco temporal encontrou terreno fértil, criando raízes e se alastrando por toda a sua estrutura. Seus frutos são decisões liminares, sentenças e acórdãos que anulam demarcações de terras indígenas e determinam o despejo de comunidades inteiras. No ano de 2009, por ocasião do julgamento da Petição 3.388 no STF, apareceu pela primeira vez, no âmbito no Poder Judiciário, a tese jurídica do “marco temporal”. Em suma, segundo esta interpretação jurídica, os povos indígenas só teriam direito às terras que estivessem ocupando no dia 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal. Diante da decisão proferida, tanto as comunidades indígenas quanto o Ministério Público Federal interpuseram recurso de embargos de declaração, buscando com isso uma nova manifestação da Corte, a fim de que a mesma se manifeste a respeito da possibilidade ou improcedência de extensão automática das condicionantes às outras terras. No ano de 2013, o Supremo analisou os recursos de embargos opostos, decidindo que as condicionantes do caso “não vincula(m) juízes e tribunais quando do exame de outros processos relativos a terras indígenas diversas (…). A decisão vale apenas para a terra em questão”.

Referências

BENITES, Tonico. Rojeroky hina ha roike jevy tekohape (Rezando e lutando): o movimento histórico dos Aty Guasu dos Ava Kaiowa e dos Ava Guarani pela recuperação de seus tekoha. Tese de doutorado (Antropologia Social). Rio de Janeiro, Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. 2014.

BRAND, Antonio. O confinamento e seu impacto sobre os Paì-Kaiowá. Porto Alegre. Dissertação (mestrado) Pontifícia Universidade Católica de Porto Alegre, 1993.

BRAND, Antonio. O impacto da perda da terra sobre a tradição kaiowá/guarani: os difíceis caminhos da palavra. Porto Alegre. Tese (doutorado em História) – PUC/RS, 1997.

ELOY AMADO, Luiz Henrique. Vukapanavo – O despertar do povo Terena para os seus direitos: movimento político e confronto político. Editora e-paper. Rio de Janeiro, 2020.

EREMITES DE OLIVEIRA & PEREIRA, J.; L. M. Duas no pé e uma na bunda: a participação Terena na guerra entre o Paraguai e a tríplice aliança à luta pela ampliação dos limites da Terra Indígena Buriti. Revista Eletrônica História em Reflexão: Vol. 1 n. 2 – UFGD – Dourados Jul./Dez., 2007.

FERREIRA, Eva M. L. A participação dos índios Kaiowá e Guarani como trabalhadores nos ervais da Companhia Matte Larangeira (1902-1952), Mestrado em História. Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD). Dourados, 2007.

MELIÁ, B., GRÜNBERG, G., GRÜNBERG, F. 1976. Etnografia Guaraní del Paraguay Contemporâneo: Los Pai-Tavyterã. Suplemento antropológico. Assunción: Centro de Estudios Antropológicos de La Universidad Católica.

PEREIRA, Levi Marques. Relatório de identificação da Terra Indígena Guyraroká. Município de Caarapó, Mato Grosso do Sul. Documentação Funai, Brasília, 2002. [mimeo]

RUIZ, I. A. Princípio do Acesso à Justiça. Enciclopédia Jurídica da PUC-SP. 2018. Disponível em https://enciclopediajuridica.pucsp.br , acesso em 28. Mar. 2021.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Petição n.  3388. Rel.  Min. Carlos Ayres Britto. Brasília. 2009.  

[1] Para entender o processo de retomada pelos Guarani Kaiowá, ver a tese de doutorado do antropólogo indígena Tonico Benites, Rojeroky hina ha roike jevy tekohape (Rezando e lutando): o movimento histórico dos Aty Guasu dos Ava Kaiowa e dos Ava Guarani pela recuperação de seus tekoha, defendida no Museu Nacional (UFRJ), em 2014.

[2] Sobre o impacto da Guerra do Paraguai nos territórios Terena, no Mato Grosso do Sul, é fundamental consultar as obras: Vukapanavo – O despertar do povo Terena para os seus direitos: movimento indígena e confronto político, de Luiz Henrique Eloy Amado, e o artigo Duas no pé e uma na bunda: a participação Terena na guerra entre o Paraguai e a tríplice aliança à luta pela ampliação dos limites da Terra Indígena Buriti, de Jorge Eremites de Oliveira e Levi Marques Pereira.

[3] Sobre o uso da mão de obra Guarani Kaiowá na Companhia Matte Larangeira, ver a dissertação de mestrado da historiadora Eva Maria Luiz Ferreira: A participação dos índios Kaiowá e Guarani como trabalhadores nos ervais da Companhia Matte Larangeira (1902-1952), publicada em 2007.

[4] Para entender o processo de expulsão dos Kaiowá e o seu confinamento nas reservas do SPI, consultar a dissertação de mestrado do historiador Antonio Brand, O confinamento e seu impacto sobre os Paì-Kaiowá (1993).

[5] Levantamento realizado pela advogada Juliana de Paula Batista, do Instituto Socioambiental – ISA.

[6] A ação rescisória está prevista nos artigos 966 a 975 do Código de Processo Civil, sendo uma ação própria e que tem como finalidade desconstituir uma decisão à qual não cabe mais recurso.

[7] Registro outros casos de comunidades indígenas que estão no STF: o Povo Kaingang de Boa Vista, do estado do Paraná, ingressou com ações rescisórias – ARs, sendo as de nº 2.750, de relatoria da Ministra Rosa Weber; nº 2.759, de relatoria do Ministro Alexandre de Moraes; nº 2.761, de relatoria do Ministro Roberto Barroso; e nº 2.766, de relatoria do Ministro Edson Fachin; a fim de anular todo os processos judiciais já finalizados, onde a demarcação foi anulada sem que os Kaingang fossem citados, por força de um vício processual insanável, ou seja, por falta de citação válida dos indígenas. Ainda, o Povo Kaingang, da Terra Indígena Palmas, sendo esta outra unidade sociológica da mesma etnia, ingressou com a AR nº 2.756, que conta com a relatoria da Eminente Ministra Carmen Lúcia e também conta com decisão liminar favorável.

[8] RUIZ, I. A. Princípio do Acesso à Justiça. Enciclopédia Jurídica da PUC-SP. 2018. Disponível em https://enciclopediajuridica.pucsp.br , acesso em 28. Mar. 2021.

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