As dificuldades em explicar, interpretar ou viver o tempo são diferentes versões da mesma dificuldade em lidar com o enigma do tempo. Esta dificuldade vem de longe. Já Santo Agostinho afirmava, “o que é então o tempo? Se ninguém me perguntar, eu sei. Se alguém me perguntar, eu não sei responder”. O tempo partilha com o corpo esta insondável característica de nada poder ser pensado sem ele e, no entanto, de ser ele próprio relativamente pouco pensado pela reflexão humanística ou científica. O tempo actual impõe-nos o enigma do tempo com uma acuidade que não pode ser ignorada. A pandemia abalou profundamente tanto as rotinas diárias como as expectativas e os planos de futuro e, consequentemente, as percepções do passado. Dizia Aristóteles que a memória era a imaginação mais o tempo. Um tempo turbulento afecta, pois, a imaginação e a memória. Quem é que nos últimos tempos não reavaliou acontecimentos, vivências e convivências passadas, antigas ou recentes? O tema do tempo salta-nos ao caminho quer quando estamos acordados quer quando dormimos e sonhamos. Neste texto, abordo apenas três questões de um tema imenso. Têm todas a ver com a experiência do tempo, o tempo vivido, aquela dimensão que mais interessa ao sociólogo. As relações entre presente, futuro e passado; a direcção do tempo irreversível; continuidades e descontinuidades.

Presente, passado e futuro. A assimetria principal entre o presente, o passado e o futuro é que só temos experiência directa do primeiro e vivemos os outros dois com imaginações temporais que vão mudando com o tempo do presente e as suas circunstâncias. Em tempos ditos normais, o presente tende a ocupar a experiência temporal das pessoas, dos grupos sociais e das comunidades. Em sociedades atravessadas por profundas desigualdades, discriminações e injustiça social, essa experiência é vivida por uns (poucos e cada vez menos) como um relativo paraíso de bem-estar terreno feito de expectativas positivas (está-se bem e vai ficar melhor) que, por reiteradas, parecem uma condição eterna ou natural; por outros (muitos, a grande maioria do povo trabalhador) é vivida como um inferno de mal-estar terreno, feito de expectativas negativas (está-se mal e vai ficar pior), aflições, incertezas, desordem e caos. Em períodos de turbulência social, esta experiência temporal tende a alterar-se; de repente, o presente deixa de ocupar o centro da experiência e as pessoas vivem, acima de tudo, as experiências do passado e do futuro. Em períodos de revolução, esta transformação da experiência temporal é bem conhecida. O presente, apesar de tão intenso, é vivido como passagem rápida de um passado que se rejeita para um futuro que se deseja e pelo qual se luta. Para os revolucionários, o passado é o pesadelo que se deixou definitivamente para trás e tudo é intensamente feito em nome do futuro que se crê próximo e auspicioso. Para os contra-revolucionários, a experiência é oposta, mas coincide com a anterior quanto à inexistência do presente como experiência estável.

A pandemia da COVID-19 não é uma revolução social, mas afecta de tal maneira as rotinas do presente que produz uma turbulência semelhante às experiências temporais revolucionárias. O confinamento, a distância sanitária, a obsessão mediática, a profunda alteração do quotidiano – tudo isto faz com que a experiência do presente, de tão diferente ou estranha, seja vivida como transitória entre um passado que não se vive como irreversível mas como uma suspensão do presente, vivida graças a uma certa inércia emocional, e um futuro concebido como tudo o que pode pôr fim à suspensão – por exemplo, a vacina.  As diferenças entre as experiências são aqui menos extremadas que as dos processos revolucionários. Mesmo assim, para a grande maioria, para quem a pandemia tem sido apenas mais um factor de vulnerabilização a acrescentar a tantos outros anteriores (pobreza, fome, guerra, racismo, sexismo, precariedade do emprego e da habitação), o passado é talvez apenas o mal menor e o futuro é a infeliz probabilidade de a pandemia do presente se transformar em repetido presente da pandemia. Para a minoria da população do mundo, que se pôde proteger durante a pandemia, o passado como suspensão do presente é uma experiência ainda mais intensa e o futuro é vivido intensamente como o fim dessa suspensão e o regresso à normalidade mais do que nunca desejada.

Direcção do tempo irreversível. Na tradição judaico-cristã, o tempo é predominantemente concebido como repetitivo, irreversível e linear. A partir do século XVI, com a expansão da modernidade eurocêntrica (capitalismo e colonialismo), a linha do tempo transformou-se na linha de progresso, e a flecha do tempo passou a distinguir entre os países, culturas ou modos de vida que vão na frente (avançados ou desenvolvidos) e os que vão atrás (atrasados ou sub-desenvolvidos), com a implicação de o futuro dos segundos dever ser forçosamente semelhante ao presente dos primeiros. Este paradigma temporal transformou radicalmente a experiência do tempo tanto a nível individual como colectivo. Limito-me a referir duas instâncias: a aceleração e a infinitude do tempo.

A aceleração. O tempo linear pode ter vários ritmos e cada um deles permite diferentes experiências sociais. Mas, sobretudo depois da primeira revolução industrial (cerca de 1830), o ritmo privilegiado passou a ser o da constante aceleração. A segunda e a terceira revoluções industriais foram instâncias de crescente aceleração; a quarta revolução industrial (inteligência artificial), que está à porta, terá certamente o mesmo efeito. Hoje, viver com o tempo é viver contra o tempo, gerir o tempo é gerir a falta de tempo. Tal como na economia capitalista, a produção de escassez é o principio básico do funcionamento do tempo no século XXI.

Há, no entanto, dois modos totalmente distintos de viver esta condição temporal. As classes e os grupos sociais dominantes vivem contra o tempo numa corrida lado a lado com ele e com a ânsia de o ultrapassar. O exemplo paradigmático desta vivência é a negociação de activos financeiros nas bolsas de valores. Pelo contrário, o povo trabalhador vive contra um tempo que vem no sentido contrário ao do seu quotidiano. Nos tempos de hoje, nem sempre há salário e, mesmo quando há, o tempo é um carro que vem na contramão e atropela as famílias a meio do mês, quando não antes, com as contas do supermercado por pagar, a comida que falta para pôr na mesa, e as prestações vencidas e em dívida. Este tempo em sentido contrário é como um vento agreste e frio que fustiga a alma, faz rugas, provoca pesadelos, desassossega a convivência familiar ou conjugal e tantas vezes entra pelas frestas da consciência e germina em tentações (não tentativas) de suicídio.

A infinitude. O tempo linear é infinito, mas esta condição obriga-o a conviver com dois não-tempos, duas temporalidades sem tempo: o instante e a eternidade. Qualquer destes dois tempos tem vindo a ganhar espaço, e tanto, que a concepção do tempo linear começa a estar em risco. O instante tem vindo a ser apropriado pelas novas tecnologias de comunicação e de informação. Os estudos de psicologia e de ciências de comunicação mostram que a capacidade de concentração é cada vez menor e que a duração da atenção aos conteúdos veiculados nas redes sociais diminui de ano para ano. O domínio do instantâneo (diferente do espontâneo), ao capturar a linha do tempo, transforma-a numa sequência frenética de instantes. Um futuro distópico poderia reduzir os nossos activos afectivos e sociais ao frenesi de uma bolsa de valores do corpo e do espirito.

O outro não-tempo é a eternidade. Desde tempos imemoriais este não-tempo tem sido um exclusivo de divindades e de mitos. As religiões foram sempre o instrumento utilizado para institucionalizar o “trabalho” dos deuses. No nosso tempo, que Charles Taylor caracteriza como idade pós-secular, as religiões, sobretudo as inspiradas por teologias conservadoras e até reacionárias, têm vindo a ocupar mais espaço na vida social profana e no poder político que a governa, e, com isso, têm vindo questionar o tempo linear, quase sempre obrigando-o ao salto qualitativo do apocalipse ou da “segunda vinda”. Por via da proliferação do instante e da eternidade, o tempo linear vai perdendo espaço. Talvez a sua aceleração seja um esforço desesperado para disfarçar ou combater a sua estagnação.

Continuidades e descontinuidades. As diferentes culturas privilegiam diferentes temporalidades. Enquanto umas privilegiam continuidades, outras privilegiam descontinuidades. A cultura ou culturas que dominam a modernidade eurocêntrica têm a este respeito duas especificidades. A primeira é que no plano teórico oscilam convincentemente entre os dois opostos. Por exemplo, na sociologia da ciência e na física quântica. Enquanto a teoria dos paradigmas da ciência, eloquentemente formulada por Thomas Kuhn, defende que a ciência moderna significa uma ruptura total com a ciência medieval e antiga, outras teorias (por exemplo, as de Pierre Duhem) defendem com igual razoabilidade a ideia da continuidade do labor científico desde o mundo antigo até aos nossos dias. No domínio da física quântica, tem sido constante o debate a respeito da descrição última da entidade quântica ou matéria, entre a ideia de partícula (descontinuidade) e a ideia de onda (continuidade). Niels Bohr referiu que essa dualidade é de facto um paradoxo, “o paradoxo da dualidade”, um dado fundamental ou metafísico da natureza.

A outra especificidade diz respeito ao modo como na vida social e política a modernidade eurocêntrica distribui desigualmente a ideia da continuidade e a ideia de descontinuidade. As classes dominadas ou subalternas tendem a viver segundo a lógica da descontinuidade. As suas lutas de resistência e as vitórias em que eventualmente se traduzem são sempre efémeras e reversíveis. Se num dado ciclo político conquistam novos direitos, o ciclo seguinte anula frequentemente essas vitórias e por vezes provoca mesmo um retrocesso em relação ao ponto de partida do ciclo político anterior. Pelo contrário, as classes dominantes tendem a viver segundo a lógica da continuidade. Concebem os seus direitos e privilégios como características permanentes da sociedade. Quando ocasionalmente estas características são postas em causa e afectadas pelas conquistas das classes populares, tal facto é visto como uma interrupção na continuidade, uma interrupção a que se deve pôr fim o mais rapidamente possível. Daí a violência com que as classes dominantes reagem às vitórias das classes subalternas.

 

 

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